Como a “restauração” coloca em risco o futuro da América Latina

Tempo de leitura: 8 min

karg

24.10.2014

Somente o governo progressista de Dilma continuará o processo de integração autônoma sul-sul

Paulo Emanuel Lopes, na Adital

A população brasileira encontra-se às vésperas de escolher seu presidente para os próximos quatro anos. A atual presidenta, Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores — PT) enfrentará neste domingo, 26 de outubro, o social-democrata e atual senador Aécio Neves (do Partido da Social Democracia Brasileira — PSDB), ex-governador do Estado de Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país.

O PT enfrenta seu maior desafio desde a chegada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder em 2003. Com o apoio de uma classe média brasileira tradicionalmente conservadora, a candidatura de Neves “surfa na onda” do antipetismo, um sentimento ideológico que levou ao assassinato de um militante petista e a agressões contra um deficiente físico paulista somente neste ano de 2014.

“Essa é a primeira eleição no país após as manifestações de 2013”, explica o jornalista e analista internacional argentino, licenciado em Ciências Políticas pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Juan Manuel Karg em entrevista à Adital. A postura do PT, entretanto, vem conseguindo relativizar o ataque de grosso calibre lançado a partir do oligopólio midiático nacional.

“No primeiro turno, [o PT] se esforçou para ‘desnudar’ as incongruências do programa de Marina [Silva, ex-candidata pelo Partido Socialista Brasileira – PSB]e foi ali, na última semana, quando Aécio conseguiu permanecer na disputa (…) No segundo turno, tanto Dilma como Lula exploraram bem o que foram as políticas [neoliberais] de [Fernando Henrique] Cardoso”, afirma Karg.

O fenômeno da “restauração conservadora”, entretanto, é uma realidade em nosso continente, e uma das maiores ameaças é romper o ciclo de integração latino-americano inaugurado pelos governos progressistas da região. “Tanto Aécio Neves quanto Lacalle Pou, candidato do Partido Nacional no Uruguai, por exemplo [cujas eleições ocorrerão também neste domingo, 26, em primeiro turno], adotam em seus programas certa ‘flexibilização’ do Mercosul (…) Tentam encerrar o ciclo iniciado em novembro de 2005 com o famoso ‘Não à ALCA’ [Área de Livre Comércio das Américas], de Mar del Plata”, defende Karg.

Caso seja reeleita, alguns dos principais desafios da atual mandatária brasileira devem ser: lutar por uma Reforma Política e por uma nova Lei de Comunicação no país. “Como pode ser que somente seis famílias tenham sob seu domínio 500 veículos de comunicação? Falo dos Marinho (Grupo Globo), Civita (Grupo Abril), Frias (Grupo Folha), Sirotsky (Grupo RBS), Mesquita (Grupo Estado), Bandeira de Melo (Grupo Associados), que controlam tanto veículos regionais como nacionais”, questiona o argentino.

Para Karg, uma provável vitória de Dilma Rousseff proporcionará ao Brasil, além de garantir as políticas sociais que beneficiam uma parcela da população antes marginalizada, a manutenção de uma política externa autônoma em relação ao imperialismo estadunidense, em nome da multipolaridade política e econômica do mundo contemporâneo.

“O conjunto dos governos pós-neoliberais da região é muito importante para amplos setores da população de nossos países. Quem consegue imaginar o Brasil, hoje, sem o programa Bolsa Família, que alcança cerca de 50 milhões de pessoas? [Uma vitória de Neves] não somente geraria uma grande preocupação com o futuro das grandes maiorias no Brasil, como poderia ser um golpe certeiro no processo de integração autônoma que América Latina e Caribe viveram esses anos”, afirma.

Adital: Nesses últimos anos, o Brasil tirou 36 milhões de pessoas da pobreza, saindo do Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas); em meio a um mundo ‘rico’ em crise, gerou empregos garantindo ganhos reais à renda das famílias; ganhou destaque internacional com a Copa do Mundo e ao criticar a atuação de Israel em relação à Faixa de Gaza; dobrou o número de estudantes universitários… Por que, na sua opinião, apesar de tantas conquistas o Partido dos Trabalhadores enfrenta sua mais acirrada eleição no Brasil?

Juan Manuel Karg: Há vários elementos que podemos analisar sobre esse ponto. Em primeiro lugar, a morte de [Eduardo] Campos afetou, profundamente, a primeira parte da eleição. Não foi uma eleição normal aquele primeiro turno, mas enfim Marina [Silva] acabou em terceiro lugar, com uma votação muito parecida com a de 2010.

Em segundo lugar, esta é a primeira eleição no país após as manifestações de 2013, que mobilizaram setores juvenis e urbanos em torno de demandas que iam desde a participação política e uma possível assembleia constituinte, até a reclamações contra o aumento na passagem do transporte público.

Dito isso, creio que o PT conseguiu atuar bem nos dois turnos da campanha, independente do resultado – que, igualmente, será decisivo para a América Latina em seu conjunto. No primeiro turno, se esforçou para ‘desnudar’ as incongruências do programa de Marina e foi ali, na última semana, quando Aécio conseguiu permanecer na disputa – mais por erros externos do que por virtudes próprias; no segundo turno, quer dizer, nessas três semanas anteriores à votação final, tanto Dilma como Lula exploraram bem o que foram as políticas de [Fernando Henrique] Cardoso, com a exposição da gestão do PSDB, em que houve aumento do desemprego e as políticas sociais eram contadas – e não estendidas e generalizadas como nos governos do PT.

Adital: Em comparação com os demais países do continente, existe algum cujas condições políticas se assemelham às do Brasil? Por quê?

JMK: Sem dúvidas. A ideia de “restauração conservadora”, que falam tanto Rafael Correa [Equador] como Álvaro García Linera [vice-presidente da Bolívia], é interessante para analisar um fenômeno de disputa que atravessa boa parte das experiências de transformações que o continente tem passado nos últimos 15 anos.

Por isso é que tanto Aécio Neves quanto Lacalle Pou, candidato do Partido Nacional no Uruguai, por exemplo, adotam em seus programas certa “flexibilização” do Mercosul, buscando ter melhores relações com o bloco de países que compõem a Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile). Brasil, Uruguai e, no próximo ano, a Argentina serão os “tubos de ensaio” dos setores conservadores para conseguir um alinhamento do continente pelo Pacífico, que lhes dê condições a ter outras experiências de transformações sociais, como na Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela, experiências que, por sua parte, tiveram processos constituintes que beneficiaram as classes sociais antes renegadas.

Adital: Quais os principais desafios que deverá enfrentar Dilma Rousseff caso reeleita Presidenta do Brasil para o período 2015-2018?

JMK: Creio que tanto Rousseff quanto Lula propuseram interessantes propostas em ambos os turnos da eleição: falo, principalmente, de uma possível Lei de Comunicação no país, e uma Reforma Política, que permitirá uma maior participação popular. Ambas as medidas serão progressivas e avançarão em questões chave [da política brasileira].

Um exemplo: como pode ser que somente seis famílias tenham sob seu domínio 500 veículos de comunicação? Falo dos Marinho (Grupo Globo), Civita (Grupo Abril), Frias (Grupo Folha), Sirotsky (Grupo RBS), Mesquita (Grupo Estado), Bandeira de Melo (Grupo Associados), que controlam tanto veículos regionais como nacionais.

Outro exemplo: como pode ser que não seja controlado o financiamento das campanhas? Falo, principalmente, do financiamento privado que, nesta campanha, se voltou principalmente para Marina Silva no primeiro turno e que, agora, foi direcionado ao Aécio Neves. Uma regulamentação estatal dos financiamentos de campanha é imprescindível para que aqueles que possuem mais recursos não dominem ‘a gosto e bel-prazer’ o cenário global de uma eleição.

Um desafio indiscutível para uma provável nova gestão de Rousseff é terminar seu mandato com fez Lula em 2010, com níveis de popularidade entre 70, 80%, com o mérito de ter governado para as maiorias do país. Isso alimentará a possibilidade do próprio Lula vir a disputar as eleições presidenciais de 2018. Mas, para isso, entretanto, falta e muito. [O PT] terá, antes, que se sair vitorioso dessa decisiva disputa de domingo, antes de pensar em 2018.

Adital: A mídia conservadora brasileira (acusada de atuar como partido político) critica forte e abertamente a administração progressista do Partido dos Trabalhadores. Como a mídia latino-americana vem cobrindo esses 12 anos de administração petista no Brasil?

JMK: Creio que houve dois momentos como esse. Um primeiro, durante o segundo mandato de Lula, quando a certa previsibilidade política e econômica que vivia o Brasil foi celebrada pelo conjunto de atores políticos da região. É interessante analisar isso. Certas figuras diziam: “o caminho não é a Venezuela, é o Brasil”. Por que diziam isso? Porque a liderança de Lula era inquestionável e, ainda por cima, das variáveis macroeconômicas do Brasil ajudavam essa análise, sem a radicalização do discurso de Chávez. Algo similar, claro respeitando-se as diferenças que possuem os dois países, o que sucede nesse momento na Bolívia, onde há uma forte liderança de Morales e um crescimento econômico acima da média da região, agora, não questionada pelos setores mais conservadores da América Latina.

Agora, ante a possibilidade de que haja uma mudança de comando no governo, a mídia nacional trata de rechaçar o governo do PT, uma das experiências de construção “a partir das bases” mais interessantes da região, mesmo com todas as críticas que se possa fazer. Os meios de comunicação conservadores da região percebem a possibilidade de mudança de governo no Brasil como o ponto de partida para se avançar sobre outros países, principalmente a Argentina, no próximo ano, onde buscarão impulsionar um candidato com maior afinidade com os mercados, que possa liderar uma política exterior diferente da que, atualmente, tem o país.

Adital: O Congresso brasileiro eleito terá uma formação muito conservadora. Igrejas evangélicas no Brasil, com um rebanho estimado em milhões de pessoas, estão entre os principais representantes da extrema-direita nacional. Assistimos a uma volta da direita conservadora ao continente ou trata-se de questões isoladas? Esse fenômeno vem se reproduzindo em outros países do continente?

JMK: O fenômeno da presença das igrejas evangélicas na política tem se dado principalmente no Brasil. Teremos que ver se isso é uma característica dessa época na região, nos próximos anos, mas, nesse momento, parece algo peculiar, específico. Nos demais países, não percebo esse fenômeno, no momento.

Quanto a uma possível volta dos setores mais conservadores na região, creio que sim, é um fenômeno de tendência regional. Tentam encerrar o ciclo iniciado em novembro de 2005 com o famoso “Não à ALCA”, de Mar del Plata, onde se enterrou a possibilidade de uma aliança de livre comércio desde o Alaska até a Terra do Fogo. Esse ciclo teve seu ponto mais alto em 2008 e 2009 com a consolidação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Agora, muitos analistas dão conta de que, provavelmente, estamos entrando em um período de estabilização.

Um novo impulso às instâncias autônomas de integração criadas nesta última década – ALBA, Unasul, Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) – pode ser importante para vincular a América Latina a um mundo crescentemente multipolar, onde os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] vão ter um papel muito importante nos próximos anos. Esse será o desafio para a região: crescer economicamente, seguir redistribuindo a renda – e ampliar essa distribuição; além de vincular-se aos novos polos de poder em nível mundial, que não pretendam dominar a região como aconteceu no passado com os Estados Unidos.

Adital: No Brasil, fala-se em garantir a vitória de Dilma Rousseff para se “evitar um retrocesso nas conquistas dos últimos anos”. Em nível de América Latina, quais seriam as consequências de um retorno das políticas neoliberais ao maior país do continente?

JMK: Se Aécio Neves conseguir impor-se nesta eleição de domingo não somente geraria uma grande preocupação com o futuro das grandes maiorias no Brasil, como poderia ser um golpe certeiro no processo de integração autônoma que a América Latina e Caribe viveram esses anos.

A “flexibilização” do Mercosul significa que o Brasil poderá propor acordos de livre comércio com a Europa e/ou os Estados Unidos em detrimento das economias regionais. Se isso acontecer, significará um câmbio de época regressivo, possibilitando o retorno ao poder político de partidos que governam em benefício de uma elite em cada um de nossos países.

Adital: Analisando criticamente, hoje, a América Latina está melhor sob administrações ditas ‘de esquerda’? Quais os principais triunfos desses governos e quais os desafios para os próximos anos?

JMK: Fazendo uma comparação com os governos neoliberais e suas políticas em conjunto, claramente, a política dos governos pós-neoliberais da região é muito importante para amplos setores da população de nossos países. Quem consegue imaginar o Brasil, hoje, sem o programa Bolsa Família, que alcança cerca de 50 milhões de pessoas? Na Argentina, por exemplo, a classe política não questiona a Asignación Universal por Hijo [algo como “Pagamento Universal por Filho”, um programa social argentino] porque considera que é uma medida progressiva, que favorece milhões de pessoas. E o mesmo ocorre na Venezuela com as missões e os mercados a preço de custo, como Mercal e Pdval; na Bolívia, com os bônus Juancito Pinto e Juana Azurduy, somado à renda dignidade. Estamos falando de amplas políticas sociais que têm transformado a vida de uma parcela majoritária da população.

Creio que um dos principais desafios desses governos será avançar no aprofundamento dessa integração que conquistamos. Que a Unasul possa se consolidar como ferramenta de nossos povos, democrática, frente a qualquer possível tentativa de desestabilização na região – como a ocorrida na Bolívia, em 2008, no Equador, em 2010, e na Venezuela, em 2014. Fortalecer a Celac, o primeiro organismo verdadeiramente continental sem a presença dos Estados Unidos e do Canadá. Dar ao Mercosul um papel não somente comercial, a partir da entrada da Venezuela e, em seguida, da Bolívia. Desenvolver instâncias em que se planejem uma cooperação não somente mercantil, como a Alba (Aliança Bolivariana das Américas), por exemplo.

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Cláudio

VOCÊS TÊM IDEIA DO QUE VENCEMOS? A direita, o $$, pig & Cia…

Ley de Medios JA ! ! ! !

Com Dilma, a verdade VENCEU a mentira assim como a esperança já venceu o medo (em 2002 e 2006) e o amor já venceu o ódio (em 2010). ****:D:D . . . . ****:L:L:D:D ****:D:D . . . . ****:L:L:D:D . . . . Lei de Mídias Já!!!! ****:L:L:D:D ****:D:D … “Com o tempo, uma imprensa [mídia] cínica, mercenária, demagógica e corruta formará um público tão vil como ela mesma” *** * Joseph Pulitzer. ****:D:D … … “Se você não for cuidadoso(a), os jornais [mídias] farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo” *** * Malcolm X. … … … Ley de Medios Já ! ! ! . . . … … … …:L:L:D:D

    Mário SF Alves

    Nessa eleição o poder de direito venceu o poder de fato.

    Nessa eleição o poder de direito que emana do povo venceu o poder de fato. Vencemos uma guerra psicológica sem precedente e jamais travada contra um partido democrático. E isso desde 2005, passando pela espetacularização do mensalão até desaguar na criminosa capa sabotadora da Veja.

    Vitória de verdade e da verdade.

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