Souto Maior: Quem apoiou a reforma trabalhista e a precarização na pandemia é culpado pelas 100 mil mortes

Tempo de leitura: 5 min
Algumas das favelas na cidade de São Paulo: no topo, Paraisópolis e São Remo; embaixo, Jaguaré e no bairro da Penha. Fotos: Jorge Maruta/Jornal da USP

100 mil mortes: há muito mais culpados

por Jorge Luiz Souto Maior, em seu blog

Editorial da Folha de S. Paulo de hoje defende que o “maior responsável pela tragédia se chama Jair Bolsonaro”.

E, de fato, a postura do presidente, negando, desde o princípio, a gravidade do problema, incentivando as pessoas a abandonarem o isolamento social, com base no argumento de que a economia não pode parar, contribuiu, decisivamente, para que, no Brasil, o novo coronavírus vitimasse, proporcionalmente, mais pessoas do que em qualquer outro país do mundo.

E o número de mortes, seguramente, é bem maior que esse oficialmente admitido.

Mas há muito mais culpados que devem integrar esse rol, a começar, exatamente, pelos veículos da grande mídia, assim como por políticos, governantes e profissionais da área jurídica, que estimularam o aumento da precarização das relações de trabalho fixada na “reforma” trabalhista, a qual impulsionou a ampliação da terceirização, o trabalho intermitente, a fragilização dos sindicatos e a negação do acesso à justiça, dentre outras formas de redução de direitos, e que, por consequência disso, nos legou a realidade de mais de 40 milhões de trabalhadores na informalidade, conforme se constatou no número dos que se inscreveram para receber a primeira parcela do benefício emergencial em abril deste ano.

Além disso, foram essas mesmas pessoas e instituições que (mesmo, muitas delas, colocando-se contra as políticas de saúde pública do governo e criticando a postura individual do presidente) prestaram pleno apoio às medidas do governo (respaldas pelo Congresso e sem uma completa discordância dos partidos de oposição, é bom que se diga) que, favorecendo economicamente apenas a grandes empresas, aumentaram ainda mais a precarização das relações de trabalho em plena pandemia.

Por meio das MPs 927 e 936 se permitiu às empresas imporem aos trabalhadores redução de salários, suspensão de contratos, extrapolação da jornada normal sem o pagamento de horas extras, além da possibilidade de redução de direitos por acordo individual (o que foi chancelado pelo STF, que, assim, também se integrou ao rol), tudo isso sob a ausência plena de alguma garantia efetiva contra o desemprego.

E o que isso tem a ver com as 100 mil mortes?

Tudo, porque como já se tem por revelado, as pessoas que estão morrendo são as vítimas históricas da opressão e da desigualdade social no país: pobres e pretos, sendo certo que a pobreza aumentou muito nos últimos anos e, certamente, foi impulsionada pela “reforma” trabalhista, que, ao mesmo tempo, proporcionou o aumento do lucro das grandes empresas.

Concretamente, estão morrendo os que foram conduzidos à informalidade e que, durante a pandemia, perderam toda a renda, ficando sob a dependência do auxílio emergencial (que demorou a ser pago e ao que muitos sequer tiveram acesso), os que foram conduzidos ao desemprego e os que foram obrigados a continuar trabalhando com redução de salários e aumento dos riscos no trabalho e no transporte, sem falar dos que se mantiveram trabalhando na total informalidade, caso dos entregadores, submetidos a toda série de riscos.

São essas pessoas (e seus familiares) os que compõem, majoritariamente, o número em questão.

De fato, o que se tem (e nada se fala) é um morticínio da classe trabalhadora – domésticas, enfermeiras, médicos(as), pedreiros, petroleiros(as), condutores(as), coletores(as) de lixo, trabalhadores(as) rurais, trabalhadores(as) em frigoríficos, terceirizados(as), condutores(as), entregadores etc., que apenas aparecem na grande mídia no relato formal de “heróis” e “heroínas”, além dos informais e desempregados(as)…

Importante perceber que uma das medidas do governo foi negar a doença como acidente do trabalho e, embora o STF tenha declarado tal norma inconstitucional, vez que se exigia a prova por parte do empregado que o contágio da doença se deu no ambiente de trabalho, também não se direcionou, concretamente, como seria necessário, no sentido contrário, afirmando inequivocamente que a aquisição da doença por um trabalhador em atividade é doença do trabalho e, portanto, um acidente do trabalho.

Assim, as empresas não estão emitindo a CAT e, com isso, não se tem o número estatístico de trabalhadores(as) infectados(as), inclusive por setor produtivo.

Desse modo, mais uma vez na história, os(as) trabalhadores(as) são apagados(as) e o que aparece nas estatísticas dos hospitais é a morte de um cidadão, sem vínculo com uma classe social específica.

O número de trabalhadores e trabalhadoras atingidos(as) é propositalmente negligenciado, embora tenha sido impossível deixar de reconhecer o recorde de mortes de profissionais da saúde e o altíssimo índice de infectados entre os(as) trabalhadores(as) frigoríficos.

A negligência com relação à garantia de emprego, inclusive, tem favorecido a dispensa de trabalhadores e trabalhadoras no primeiro indício da doença, o que se verifica com mais incidência ainda entre os(as) trabalhadores(as) terceirizados(as).

É faltar ao serviço por doença, ou explicitar algum sintoma, que se perde o emprego…

A ausência do Estado, também estimulada nas MPs (que foram aplaudidas ou meramente negligenciadas pela grande mídia), na fiscalização das empresas quanto a concessão de equipamento de proteção individual aos(às) trabalhadores(as), com a eficácia e a quantidade necessárias, conforme cientificamente determinado, contribuiu igualmente para o aumento do contágio entre trabalhadores(as).

E compete não olvidar que os(as) trabalhadores(as) são, certamente, transmissores para seus familiares e demais pessoas com as quais mantêm contato, sobretudo, nos transportes públicos, que continuam lotados, em muito lugares, ainda mais agora quando a vida parece ter voltado ao “normal”.

Cumpre também destacar que a política restritiva de direitos trabalhistas, com aumento da precarização do trabalho, não garantiu empregos.

Mais de 9 milhões de trabalhadores(as) perderam o emprego na pandemia e isso se deu, sobretudo, porque as medidas do governo (que receberam apoio expresso da grande mídia) só tiveram alguma serventia – e para os objetivos errados, isto é, para favorecer a preservação (e até o aumento) de lucros –, pois para pequenas empresas (como bares e restaurante, por exemplo), cujos negócios foram interrompidos na pandemia, redução de salários e suspensão de contratos muto pouco ou nenhum resultado econômico efetivo produz.

Essa avalanche social e econômica está representada no número de pessoas dependentes do benefício emergencial, que saltou de 45 milhões, em abril, para 65 milhões, em julho.

O fato concreto e insofismável é que a situação de pauperização e abandono, para favorecimento dos interesses econômicos de poucos, a que foi conduzida à classe trabalhadora ao longo da história brasileira, mas, de forma ainda mais intensa, pela “reforma” trabalhista e pelas medidas de “enfrentamento” adotadas pelo governo durante a pandemia, está diretamente ligada à tragédia sanitária e humanitária que se está vivenciado no Brasil e todos(as) aqueles(as) que contribuíram para que essas medidas se consolidassem e fossem validadas e aplicadas têm uma grande parcela de culpa na produção dessa triste realidade.

Ou, com honestidade e dignidade, reconhecemos isso e, assim, vislumbramos alguma chance de reversão desse quadro, o que exige a revogação de todas essas medidas e a formulação de um novo pacto social que efetivamente integre a classe trabalhadora, distribua justamente a riqueza socialmente produzida e respeite a vida (sem quaisquer discriminações e preconceitos), ou, assumindo a nossa incapacidade de constituirmos uma nação, estaremos condenados a, em pouco tempo, falar sobre as 200.000 mil mortes ou mais…

Trata-se, pois, de uma tarefa urgente e que está, obrigatoriamente, direcionada a todas as pessoas (pois o silêncio também é comprometedor) e, principalmente, às instituições que, comodamente, se colocam como “espectadores críticos”, que não assumem sua parcela de culpa pela produção da realidade que estamos passando e tergiversam com relação à necessidade urgente de se rever todas as políticas de precarização das relações de trabalho.


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Comentários

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Zé João

É claro q são. Afinal é preferível que as empresas quebrem e todo mundo fique sem emprego nenhum…..
Como vcs são ridículos.

Zé Maria

https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/104410?sequencia=309

A validade da MP 927 expirou no limite do prazo legal.
Mas no período em que esteve vigente fez um estrago
enorme aos Trabalhadores Assalariados, na Pandemia.
O desgoverno federal implementou a ‘Lei Thatcher’,
a Escravidão do Milênio, a normati[li]zação da Barbárie
indecentemente endossada pelo Supremo Neoliberal.
E os Presidentes da Câmara e do Senado se omitiram.
Deveria ter sido derrubada no 1º dia pelo Congresso.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Congresso/adc-92-mpv927.htm

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