Sérgio Sauer: Não há tributos sobre a propriedade da terra

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Modelo agrário e agropecuário brasileiro: processo histórico de expropriação das terras e concentração das riquezas

por Sérgio Sauer*, no Jornal dos Economistas, sugerido pela Sec Geral do MST

Análises do atual modelo agrário e agropecuário devem, necessariamente, incluir o processo histórico de ocupação das terras no Brasil. Essa ocupação foi baseada na apropriação de grandes áreas, especialmente através da expropriação dos povos originários. Essa expropriação não é só parte do passado, pois continua sendo a principal causa do etnocídio a que estão submetidos os povos indígenas, com especial destaque à contínua destruição e morte dos Guaranis Kaiowas, no Mato Grosso do Sul.

Consequentemente, o modelo agropecuário e agrário é resultado de um longo processo de expropriação e concentração da terra e das riquezas no país, que teve início com as famosas Capitanias Hereditárias, mas especialmente com a apropriação de terras no regime de Sesmarias. Esse sistema permitia à Coroa portuguesa ceder terras aos seus apadrinhados, com a única exigência de que as mesmas fossem tornadas produtivas (produção de alimentos). Isso, em muitos casos, não ocorreu, mas possibilitou a apropriação de grandes glebas, formando a base do modelo agrário latifundista no Brasil.

O sistema sesmarial, em meados do século XIX, foi substituído pela compra como único mecanismo legal de acesso a terras públicas. A criação da Lei de Terras, em 1850, antecedeu a abolição da escravidão de 1888.

Consequentemente, ao serem libertos, os escravos não tiveram acesso à terra, sendo forçados a se empregar nas fazendas ou migrar para as cidades. Podemos afirmar que a concentração da terra e os consequentes privilégios políticos de poucos estão na raiz dos conflitos no campo e na própria constituição do Estado republicano brasileiro.

O modelo agrário, baseado na concentração da propriedade da terra, se manteve ao longo do século XX, sendo base do processo produtivo no campo ainda hoje. Houve uma mudança significativa a partir dos 1960, com a implantação da chamada
Revolução Verde, a qual provocou alterações na base produtiva agropecuária, em consequência da adoção de mecanização intensiva e do uso de fertilizantes químicos e de sementes selecionadas. Essa “revolução” permitiu modernizar os latifúndios, baseando a produção em grandes extensões de terras (e não na democratização da propriedade fundiária), renovando o caráter conservador do modelo agrário e agropecuário brasileiro.

Os governos ditatoriais pós-1964 implantaram mudanças na base produtiva agropecuária, promovendo uma modernização dos latifúndios, utilizando como principal instrumento o crédito subsidiado. Foram alocados grandes somas de recursos financeiros, a juros baixos, para capitalizar os grandes proprietários, possibilitando investimentos pesados em máquinas e insumos modernos (sementes, fertilizantes, inseticidas etc.).

A implantação desse modelo agropecuário foi realizada ainda com criação de subsídios fiscais, oferta de assistência técnica (rede pública de assistência técnica e extensão rural) e promoção de pesquisas (instalação e destinação de recursos para a rede pública de pesquisa) e ensino com a criação de cursos universitários e técnicos (universidades públicas e escolas técnicas). Recursos públicos estavam direcionados ao financiamento de pesquisas e a disseminação do pacote tecnológico baseado na lógica da produção monocultora em grandes extensões de terra.

Este processo de modernização agropecuária teve dupla função econômica, ou seja, aumentou a produção e a produtividade no campo e, ao mesmo tempo, criou um mercado consumidor de máquinas e insumos, aquecendo a indústria.

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Houve um aumento significativo da produtividade de grãos no Centro-Sul, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, e um incremento da indústria de máquinas e insumos agrícolas. Essa adoção do “pacote tecnológico”, baseado na produção em grandes extensões monocultoras, no entanto, manteve e aprofundou a concentração da propriedade da terra no Brasil.

Associado aos incentivos para a modernização conservadora e à repressão política, os governos ditatoriais pós-1964 criaram o Estatuto da Terra para institucionalizar os processos de desapropriação de terras e os projetos de colonização.

Desapropriações foram feitas apenas em algumas áreas de conflito, porque a ênfase das políticas governamentais eram os projetos de colonização, possibilitando a ocupação de terras nas fronteiras agrícolas. Inicialmente, a combinação de repressão e incentivos para a ocupação de novas terras enfraqueceu demandas sociais por reforma agrária, permitindo um maior controle social e político dos movimentos e entidades sindicais do campo.

Os projetos de colonização, incentivados por propaganda e recursos governamentais, no entanto, não resolveram o problema. O país assistiu a um deslocamento de milhões de famílias, principalmente nordestinas e sulistas, em direção às regiões Centro-Oeste e Norte (Amazônia). A falta de políticas de assistência governamental, associada ao ambiente desconhecido das frentes de colonização, fez surgir novos focos de conflitos e disputas por terra, aumentando a violência no campo.

A abertura de novas fronteiras na Amazônia não se deu apenas através da destinação de glebas para famílias pobres do Sul e do Nordeste. Na verdade, os incentivos governamentais financiaram a apropriação de grandes áreas por parte de empresas urbanas e grandes proprietários do Centro-Sul. Além de investimentos em infraestrutura (especialmente na abertura de estradas), incentivos fiscais tornaram rentável a compra de grandes extensões de terras por empresários urbanos, materializando uma “aliança militar-latifundista”, nos termos de José de Souza Martins.

Incentivos fiscais eram o principal veículo na concessão de subsídios para a compra de grandes extensões de terras nas Regiões Norte e Centro Oeste. Aquisições de terra – quando não griladas, as terras eram compradas por preços irrisórios ou mesmo o acesso era via concessões públicas – eram incentivadas através de renúncia fiscal do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda das empresas e empresários urbanos. Estes investidores obtinham ainda crédito subsidiado para fazer “investimentos produtivos” como, por exemplo, o desmatamento para o plantio de pastagem e criação de gado.

Consequentemente, o atual modelo agrário e agropecuário, baseado na concentração da propriedade da terra, é fruto de políticas públicas, promovidas pelos governos federais pós-1964, que disponibilizaram recursos, especialmente crédito rural subsidiado. Esse modelo foi financiado com recursos públicos, especialmente a partir dos anos 1960, os quais possibilitaram a implantação da Revolução Verde e incentivaram a expansão das fronteiras agrícolas e o aprofundamento da concentração da terra.

Os altos níveis de concentração da propriedade fundiária são confirmados a cada Censo Agropecuário, o qual o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realiza a cada dez anos. Segundo dados do último Censo, de 2006, os 2.477.071 pequenos estabelecimentos (quase 48% do número total), com áreas de 10 hectares ou menos, detêm apenas 2,36% das terras. Na outra ponta do espectro fundiário, os grandes, com áreas superiores a mil hectares, somam apenas 46.911 estabelecimentos (0,91% do número total), mas detêm 45% de todas as terras.

Mesmo tomando os parâmetros, definidos em lei, para a agricultura familiar (e não apenas o tamanho dos estabelecimentos), a concentração fundiária se mantém. Ainda segundo o Censo Agropecuário, 84,4% dos estabelecimentos (total de 4.367.902) são classificados como familiares, detendo apenas 24,3% das terras (80.250.453 hectares). No entanto, os estabelecimentos não familiares (com grandes áreas, por exemplo) representam apenas 15,6% do total (807.587estabelecimentos), mas detêm 75,7% das terras (249.690.940 hectares). Mesmo assim, esses estabelecimentos familiares são os principais responsáveis pela segurança alimentar do Brasil.

Em 2006, esses produziam 87% da mandioca e de 70% da produção de feijão, apenas para citar dois dos principais componentes da alimentação brasileira.

Por outro lado, o modelo agropecuário brasileiro sempre teve a exportação e o mercado externo como objetivos centrais. Se, de um lado, houve contribuições econômicas para o equilíbrio da balança comercial, colocando o país como um dos principais fornecedores mundiais de matérias primas, de outro, está ocorrendo um processo de reprimarização da economia, o que coloca sérios questionamentos sobre possibilidades econômicas de manter a lógica ou perspectivas de crescimento.

É importante ter claro ainda que a contribuição econômica do modelo gera um alto custo público, ou seja, é preciso contabilizar gastos financiados pelo conjunto da sociedade. As políticas de incentivo à exportação, por exemplo, são baseadas em renúncias fiscais (isenções, redução de tarifas e alíquotas) como, por exemplo, a suspensão de contribuição de PIS/Cofins de produtos agropecuários e da comercialização de fertilizantes e insumos agrícolas, bem como a isenção de ICMS nas exportações.

Outro aspecto que deve ser contabilizado no atual modelo é a total ineficiência histórica na cobrança de tributos territoriais. O Imposto Territorial Rural (ITR) foi modificado em 1996, para desestimular o uso especulativo e a improdutividade das terras. No entanto, a arrecadação do ITR foi historicamente irrisória, pois o volume anual nunca passou de 0,2% da arrecadação federal (dados de 1996), declinando para 0,11%, em 2004. A arrecadação deve ter caído ainda mais a partir de 2005, quando a responsabilidade de arrecadação do ITR foi transferida para os municípios.

Em outros termos, não há tributos sobre a propriedade da terra no Brasil, tornando a especulação um negócio atrativo e reforçando a concentração da propriedade da terra.

* Sérgio Sauer é sociólogo, professor da Universidade de Brasília (FUP/UnB) e relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma DhESCA Brasil.

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