
Mussolini e Hitler em Veneza, Junho de 1934

Cena do filme alemão A Onda, de 2008. Mostra como m experimento de classe constituiu uma verdadeira ditadura fascista e discute o quão longe o regime de Hitler realmente está dos nossos dias
Neofascismos: eles passarão? O sintoma das urnas
por Rubens Casara e Giane Álvares, no Justificando
Fascismo é uma palavra que, por vezes, aparece vulgarizada. Ela se origina de fascio (do latim fascis: feixe), símbolo da autoridade dos antigos magistrados romanos, que utilizavam feixes de varas com o objetivo de abrir espaços entre as pessoas para que passassem (exercício de poder no corpo do indivíduo).
Em sua origem, portanto, os feixes eram instrumentos a serviço da autoridade e, por essa razão, passaram a ser utilizados como símbolos do poder do Estado. Não por acaso, durante o regime fascista italiano (Fascismo Clássico) essa insígnia foi recuperada com o objetivo de simbolizar a força em torno do Estado.
O fascismo recebeu seu nome na Itália, mas Mussolini não estava sozinho. Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com a mesma receita que unia voluntarismo, pouca reflexão e violência contra seus inimigos.
Hoje, parece existir consenso de que existe(m) fascismo(s) para além do fenômeno italiano ou, ainda, que o fascismo é um amálgama de significantes, um “patrimônio” de teorias, valores, princípios, estratégias e práticas a disposição dos governantes ou de lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser fabricadas pelos detentores do poder político ou econômico, em especial através dos meios de comunicação de massa).
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Note-se que, ao comentar o surgimento do fascismo clássico, Mariátegui deixou consignado que os “fascistas provêm dos diferentes partidos e setores burgueses. O ‘fascismo’ não constitui, portanto, um conglomerado homogêneo. Em suas fileiras há elementos de filiação e origem claramente reacionárias e conservadoras”(MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens do fascismo. PERICÁS, Luiz Bernardo (org.). São Paulo: Alameda, 2010. p.179).
Para seus idealizadores e teóricos, o fascismo era uma ideia política com peso semelhante ao do socialismo ou do liberalismo (curioso notar que, ainda hoje, alguns que se afirmam liberais defendem posições que são típicas do fascismo, como, por exemplo, o boicote a artistas ligados a projetos políticos diversos daqueles a que aderem).
O discurso legitimador das práticas fascistas é de que a ideia que leva a essa prática (que, em regra, não se assume fascista) não teria surgido de abstrações teóricas, mas da necessidade de ação (da vontade de conquista). Bobbio percebeu que o fascismo italiano tinha como programa imediato “pura e simplesmente a conquista do poder” (BOBBIO, Noberto. Do fascismo à democracia: os regimes, as ideologias, os personagens e as culturas políticas. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 28).
Hoje, os neofascistas se contentam em disseminar o ódio contra o que existe para conquistar o poder, sem maiores preocupações com a formulação de um projeto alternativo (outras vezes, apostam em projetos reacionários de retorno a um passado mítico, na verdade, uma representação que funciona como “fantasia”, capaz de dar conta e suporte ao desejo fascista).
Todavia, o fascismo possui uma ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se tudo (as diferenças, as qualidades dos opositores, as conquistas históricas, a luta de classes, etc.).
O fascismo é cinza, enquanto a democracia é multicolorida. A ideologia fascista, porém, deve ser levada a sério, pois não só é tão criticável quanto todas as demais ideologias como também apresenta soluções “fáceis” para os mais variados problemas sociais modernos (nesse sentido: MANN, Michael. Fascistas. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 13).
Como ensina Bobbio, os fascistas “talvez não soubessem o que queriam, mas sabiam muito bem o que não queriam. Não queriam, em uma palavra, a democracia, entendida como laborioso e difícil processo de educação na liberdade, de governo através do controle e do consenso, de gradual e sempre contestada substituição da força pela persuasão” (BOBBIO, Noberto. Do fascismo à democracia: os regimes, as ideologias, os personagens e as culturas políticas. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 29).
Essa mistura de pouca reflexão (o fascismo, nesse particular, aproxima-se dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à ignorância) e recurso à força (como resposta preferencial para os mais variados problemas sociais) produziu reflexos no sistema de justiça criminal.
No fascismo, tanto a pena quanto o processo penal, por exemplo, orientam-se à proteção do Estado (o indivíduo é visto como um inimigo em potencial) com a ampliação do poder penal e correlata diminuição das garantias individuais. O afastamento de direitos fundamentais, a ampliação do encarceramento (com a transformação do preso em mercadoria), a correlata redução da idade penal e o incremento do controle social das populações indesejadas são medidas que sempre se adequaram ao projeto fascista.
No fascismo, o Estado apresenta-se como superior a todos os indivíduos. Estes, portanto, ficam subordinados às razões estatais e a um poder praticamente sem limites. Há uma tentativa de edificação de um Estado total, isto é, um Estado que se sobreponha ao indivíduo a ponto de anulá-lo. Não por acaso, a intolerância torna-se uma constante, o que leva à repressão da diferença (revela-se, pois, natural que sexistas e homofóbicos identifiquem-se com projetos neofascistas).
Nega-se, portanto, a alteridade e acentua-se a criação e a preocupação com os inimigos do Estado, com aqueles que criticam ou não acatam as razões do Estado. Note-se que as tentativas de solucionar os problemas de saúde pública (como as questões das drogas etiquetadas de ilícitas e do aborto) e de controlar reivindicações populares (basta pensar no fenômeno da criminalização dos movimentos sociais) através do sistema penal são manifestações desse Estatismo que se vinculam ao ideário fascista.
Outra característica marcante é o fato do fascismo se apresentar como um fenômeno racional ou mesmo natural. O fascismo e as práticas fascistas aparecem para os seus adeptos como consequências necessárias do Estado, dessa relação entre homens que dominam outros homens através do recurso à violência que se apresenta como legítima. Assim, como toda forma de ideologia, o fascismo não é percebido como tal por seus agentes: tem-se, então, a naturalização de práticas fascistas, mesmo em ambientes formalmente democráticos.
Também é reconhecida como característica dos movimentos fascistas o seu pronunciado ativismo, com o recurso à força como meio preferencial à solução dos diversos problemas sociais. Por evidente, os frequentes excessos gerados por esse ativismo passam a exigir uma ampla cumplicidade entre os membros do establishment: magistrados, promotores de justiça, policiais, militares, jornalistas, homens de negócio e etc.
Mario Sznajder, ao pesquisar sobre o fascismo, declarou que “não há dúvida de que o fascismo é uma ideologia política, baseada em certas afirmações de origem filosófica e cultural, adotada por movimentos intelectuais, sociais e políticos para transformar-se em partido e regime onde as circunstâncias históricas o permitissem. Ou ainda para proporcionar aspectos propagandísticos e operacionais a movimentos políticos que não podem ser definidos como fascistas, mas que vêem no fascismo ideológico e prático uma fonte de inspiração (…).
Também são componentes essenciais do tipo de nacionalismo que o fascismo adota e opera o seu caráter guerreiro e violento” (SZNAJDER, Mario. Fascismo e Intolerância. In: Tempos de fascismo: ideologia – intolerância – imaginário. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e CROCI, Federico. (orgs.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. p. 25).
Os vários fascismos também sempre tiveram a necessidade de um inimigo demonizado em razão do qual a utilização da força estaria legitimada. Esse inimigo é o “estranho” (no recente processo eleitoral, o inimigo era o “desinformado”, o “nordestino”, o “pobre” ou o “petralha”).
Na pós-modernidade, o estranho a ser demonizado (e, portanto, objeto em potencial do sistema penal e das práticas fascistas) é aquele que não está inserido funcionalmente na sociedade (e que, para o neofascista, nunca poderá ser inserido) de consumo ou que se opõe ao status quo.
Hoje, mostra-se cada vez mais crível a hipótese de que as crises do capitalismo fazem aflorar movimentos em direção ao fascismo. Na linha desenvolvida tanto por Leandro Konder (KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 53) quanto por Robert Owen Paxton (PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. Trad. Patrícia e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 43) pode-se afirmar que as forças capitalistas, incapazes de assegurar a expansão contínua dos mercados, o amplo acesso à matéria-prima e à mão barata (e obediente) e o controle sobre os movimentos reivindicatórios (que não interessam à logica da produção e circulação de mercadorias) por meio de operações adequadas ao modelo democrático, viram-se obrigadas a encontrar novas maneiras de alcançar esses objetivos pela força, ou seja, o projeto capitalista, não raro, tem que assumir a forma de um movimento fascista.
Hoje, vivenciam-se os efeitos de mais uma crise do capitalismo e, no Brasil, acentua-se o sentimento de que o risco de fascistização se faz presente.
O assassinato de um militante do Partido dos Trabalhadores (PT) que fazia campanha para o seu candidato, as agressões e ofensas a eleitores de vários partidos, o crescimento da bancada parlamentar que aposta tanto no recurso à violência quanto nos discursos de ódio e de negação da alteridade (fundamentalistas religiosos, “bancada da bala”, etc.), a naturalização com que foi encarada a proposta de um dos candidatos à presidência de reduzir a idade penal e as apostas eleitorais/eleitoreiras de reforma da legislação penal, com o aumento de penas e a redução das garantias processuais (como lembra o Marcelo Semer, “aderir a estado policial pode ser opção eleitoral; sair dele nunca é”), são sintomas de que a ameaça da fascistização da sociedade brasileira é real.
O grande problema é que as condutas que flertam com o fascismo funcionam como uma válvula de escape do irracional.
Quem, por exemplo, defende a redução da idade penal não pode ser convencido com argumentos racionais (como, por exemplo, a apresentação dos resultados das diversas pesquisas que apontam que os países que diminuíram a idade penal não reduziram a criminalidade), isso porque argumentos racionais só surtiriam efeito se a opção pela defesa da redução da idade penal (ou a opção eleitoral que encarna esse desejo) tivesse se dado através da argumentação, isto é, de maneira crítica, através da aceitação de argumentos racionais.
Não por acaso, os discursos nos comícios do Nacional-Socialismo distinguiam-se pela habilidade dos oradores (todos com boa dicção e presença de palco impecável) em recorrer à emoção e evitar ao máximo uma argumentação objetiva (gritos, ofensas e acusações bastavam à manipulação das massas). Não por acaso, nestas eleições, os discursos de ódio ao outro substituíram a apresentação de propostas concretas ou o confronto entre os projetos políticos que cada candidato representava.
O quadro que se avizinha não parece promissor. A nova composição do Congresso Nacional, apontado pelo DIAP como o mais conservador desde 1964, e o crescimento do potencial eleitoral dos candidatos que mais se aproximam do ideário fascista é um risco à democracia.
Impõe-se, portanto, uma postura ética que sirva de obstáculo aos movimentos antidemocráticos. Uma postura ético-poética (TIBURI, Marcia. Filosofia prática. Rio de Janeiro: Record, 2014): ética, porque entendida como um processo comprometido com o outro (em especial, com aquele que mais necessita); poética, uma vez que voltada à criação (poiesis) de vida (plena/digna), uma atitude de concretização dos direitos fundamentais de todos, como forma de resistir às tendências que apostam no ódio e na violência.
Apesar das muitas críticas que podem ser feitas à atual gestão federal, são inegáveis os avanços percebidos com o crescimento econômico, os baixos índices de desemprego, o sucesso de políticas de distribuição de renda e a redução de desigualdades tanto sociais quanto regionais. Nada justifica o ódio ao governo e a violência dirigida aos programas que criou (Bolsa Família, Mais Médicos, etc.).
Violência que, no mundo-da-vida, se volta à população que deles se beneficia.
Importante lembrar, com Zizek, que a violência não se limita à sua expressão vulgar/subjetiva (a violência em que os protagonistas são facilmente identificados), posto que existem formas simbólicas e estruturais de violência (ZIZEK, Slavoj.Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014).
Ao reforçar a tradição autoritária e elitista em que está inserida a sociedade brasileira, esses ataques aos programas sociais do governo caracterizam-se como manifestações de violência simbólica. De igual sorte, eventual eliminação desses programas, que reduziram a miséria e a desigualdade, consistiria em grave violência estrutural.
Rubens Casara é Doutor em Direito, mestre em Ciência Penais, professor do IBMEC/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano
Giane Ambrósio Álvares, advogada, mestranda em Processo Penal pela PUC/SP e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
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