Nelson Nisembaum, sobre o relatório final da CPI da Covid: Por covardia, o genocídio “morno”

Tempo de leitura: 4 min
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

NEM FOGO, NEM GELO: O GENOCÍDIO “MORNO”

Por Nelson Nisembaum*, em seu perfil de rede social

A decisão do “G7”, grupo majoritário da CPI da Pandemia que representa a força acusatória contra o delinquente da República e seus não menos delinquentes pares, de retirar do relatório final as acusações de genocídio e homicídio e que deixam os mais graves crimes focalizados no enquadramento de crime contra a humanidade pode fazer, sim, sentido para o formalismo jurídico e para uma certa cautela e prudência para que se evite um certo vexame em algum momento de outras instâncias pós-CPI.

Mas também reforçam o sentido de uma já antiga máxima deste autor, que reza que o Brasil é um país onde nada esquenta a ponto de pegar fogo e nada esfria a ponto de congelar. É tudo morno.

O mal de tudo isso é que a grande força subjacente para que tudo siga na tropicalidade é tão simplesmente a covardia, que sempre está a postos para impedir que o país enfrente com a necessária crueza e contundência os seus problemas mais profundos.

No contexto atual, nada poderia ser mais perverso do que não vislumbrar a clareza da perversidade que moveu (e move) Bolsonaro na condução macabra desta pandemia, algo que, por sinal, em nada surpreende aquele que observou minimamente a biografia profética deste patológico algoz, que usou a pandemia para executar a sua política de reforma do estado baseada na eliminação pura e simples de setores da sociedade.

Por outro lado, o relatório da CPI não é uma peça acusatória jurídica, e sim, um inquérito político que constitui a versão oficial de estado dos fatos e reúne idealmente a melhor documentação sobre os fatos.

As peças jurídicas caberão às instâncias jurídicas, e estas poderão concordar, discordar ou simplesmente divergir do eixo do relatório mediante a releitura das provas e a ressignificação dos contextos, de modo a confirmar, refutar e/ou criar peças e fundamentos acusatórios.

Daí, no modesto e despretensioso entendimento deste clínico, não se justifica a falta de coragem da CPI em cometer algum “deslize” por “licença poética” e ressignificar os fatos apurados em um contexto de uma inadmissibilidade que finca estacas e amplia fronteiras ao longo do tempo decorrido de outros genocídios assim reconhecidos.

Sem a compreensão de que o conceito de genocídio tem o dever de ser pedagógico e que seus perpetradores sofisticam seus métodos com o passar do tempo como qualquer participante do crime organizado e assessorado justamente para fugir dos enquadramentos jurídicos, deixaremos abandonadas as milhões de almas vítimas de outros genocídios (reconhecidos ou não como tal) a ver novamente o filme da banalização do mal.

Pois não há nada que banalize mais um genocídio (e no caso particular dos judeus, o Holocausto) do que não reconhecer na situação brasileira atual as sombras e as marcas da perversidade e do mal absoluto que se esgueiram pelas filigranas e cipoais jurídicos que nos são tão próprios.

Em fevereiro de 2020, já estava disponível ao planeta o conhecimento de que as populações de risco de morte pela COVID-19 eram a dos idosos, a dos obesos, e de pacientes crônicos de diabetes mellitus e hipertensão arterial, a saber, as mais frequentes do mundo ocidental, e respectivamente dependentes dos sistemas previdenciários e de saúde pública, estes por sua vez construídos sob valores dos direitos fundamentais de nossa Constituição, que por sua vez, são tidos como “peso para o estado” para Hitler e Bolsonaro, e seus respectivos co-líderes e seguidores.

Na outra ponta, e de forma exposta às escâncaras nos trabalhos da CPI, uma política de governo baseada na (bem sucedida) imunidade de rebanho por infecção, que, como vimos acima, previsivelmente (e no caso, deliberadamente) produziria o efeito morte, com o conhecimento de quais grupos seriam excluídos da vida, somando-se ainda que em pouco tempo saberíamos também que pobreza e raça seriam determinantes ainda mais fortes que os primeiros.

Não seria qualquer exagero ou ilação indevida atribuir a Bolsonaro e seus cúmplices ativos e passivos a ideação homicida em massa, se confrontarmos os fatos com o arcabouço ideológico perverso e manifesto de longa data deste patético canalha, que ao contrário de seus congêneres históricos não é dotado intelectualmente o suficiente para deixar na sutileza suas intenções e instintos.

Ficará assim a CPI com um gosto de oportunidade perdida de um enfrentamento da situação com o necessário senso de proporção.

As grandes tragédias históricas causadas pelo homem não são lápides estáticas e as lições do passado devem ser vividas como um texto a ser permanentemente escrito, lido e reinterpretado, de forma que, presumidamente, a responsabilidade e a extensão dos significados morais e legais é dinâmica e progressiva, e as transgressões que colocam as vidas e a democracia em risco devem ser percebidas com rigor cada vez maior, pois também, presumidamente, o conhecimento e o tempo nos cobram tal comportamento.

Daí o senso de proporcionalidade: jamais se justificaria (e não se justifica) qualquer leniência na compreensão de situações que colocam em risco e que resultaram em mais de 600 mil mortes.

Teríamos, sim, que proceder com um mínimo de ousadia e dar um passo adiante da atual compreensão formal do termo “genocídio”, sob o risco de não deixar uma clara mensagem para a história das democracias e, assim, renunciar à função pedagógica da história.

E se deixaremos esta dívida na questão de método, assim também o faremos na questão prática, se olharmos com cuidado o que ocorreu com as populações indígenas que viram seu destino ruir com o desaparecimento de seus líderes, que ainda que em números não tão dilatados, verão a extinção de suas culturas línguas e tradições, constituindo, assim, o significado mais puro do que seria a eliminação de um gênero – ou genocídio.

Infelizmente, no que depender do relatório final da CPI da Pandemia, não será desta vez que verei um incêndio ou um congelamento. Seguirei, involuntariamente, neste “tropicalismo”.

*Nelson Nisenbaum, 61 anos, médico e escritor, especialista em clínica médica. Trabalhou 25 anos no sistema de urgência e emergência da Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP). Foi delegado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).


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Fabia Cintia

O Omar Aziz a-ma-re-lou.
Só isso.
Mas os chineses não vão amarelar e vão estrangular o Bozo.

Zé Maria

Excertos do “Relatório Final” da “CPI da Pandemia” no Senado Federal:

7. INDÍGENAS
7.1 O impacto da pandemia sobre os povos indígenas

Denúncias sobre a ocorrência de genocídio contra povos indígenas começaram
a surgir ainda em 2019, para a incredulidade de muitos.
Afinal, é comum o uso de hipérboles em disputas políticas.
Mas fatos novos, documentos e pareceres trazidos à atenção da Comissão Parlamentar
de Inquérito durante a pandemia constituem indícios fortes de que crimes
contra a humanidade estejam, de fato, em curso. Especialistas em saúde,
demógrafos e renomados juristas trazem dados e análises que respaldam
essa imputação.

Apesar do progressivo reconhecimento de direitos em favor dos povos indígenas
ao longo das últimas décadas, ainda é grande sua vulnerabilidade.
Muitos ainda não têm as terras demarcadas e mesmo as já homologadas são
mal protegidas.
Os indígenas sofrem com a discriminação e a falta de assistência adequada,
além de serem acossados por invasores que cobiçam as riquezas naturais de
suas terras.
Nos últimos anos, os ataques armados a indígenas têm crescido e vitimaram
diversas lideranças, enquanto o governo prepara medidas que erodem o
conceito jurídico de terra indígena e abrem possibilidades para sua exploração
econômica por agentes externos, inclusive mediante arrendamento e legalização
da mineração.

Anexa ao Documento nº 653 submetido à CPI, consta pesquisa elaborada pelo Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância Epidemiológica do PROCC/Fiocruz
e de EMAp/FGV, pelo Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica
e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de covid-19 e
colaboradores, publicado em 5 de maio de 2020.
Esse trabalho aponta desvantagens dos indígenas em relação à população
não-indígena, como menor nível de escolaridade, menor acesso ao saneamento,
elevada mortalidade precoce, somadas a vulnerabilidades sociodemográficas
e sanitárias.
Além disso, alerta que os indígenas que vivem em zona urbana residem,
majoritariamente, em áreas com alto risco de contágio.
[…]
Por outro lado, no caso dos indígenas, o vírus se apresentou como oportunidade para intensificar uma ofensiva multifatorial que já estava em curso, patrocinada
pela atual gestão.

O estímulo à presença de intrusos nas terras indígenas e a negligência deliberada
do governo federal em proteger e assistir os povos originários foram aliados
do vírus, produzindo efeitos combinados.

A pesquisa mencionada, da Fiocruz e da FGV, de maio de 2020, mostra que
a hospitalização por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em populações
indígenas já apresentava um crescimento em relação à série histórica, com
elevação da proporção de internações de indígenas na Amazônia Legal e
mudança no padrão de internações por idade, o que sugeria a presença da
covid19 em comunidades indígenas no País.

Esses receios, longe de serem infundados, foram confirmados pelos fatos
observados ao longo da pandemia.
Pesquisa de soro-prevalência de anticorpos realizada pela Universidade Federal
de Pelotas [UFPEL] mostrou que, ainda no final de junho de 2020, os indígenas
chegavam a ter quatro vezes e meia [4,5x] mais chances de infecção do que brancos.

Mais recentemente, uma análise retrospectiva de 250.000 dados de hospitalização
realizada pelos pesquisadores Otavio Ranzani, Leonardo Bastos, João Gabriel Gelli,
Janaina Marchesi, Fernanda Baião, Silvio Hamacher e Fernando Bozza,
publicada no periódico The Lancet Respiratory Medicine em 15 de janeiro de 2021,
mostra que a mortalidade hospitalar entre os indígenas foi proporcionalmente
a mais alta entre os grupos pesquisados, superando inclusive a de pretos ou
pardos em quase todas as faixas etárias: [Gráfico à página 528].

Esses dados são consistentes com o levantamento realizado pelos
pesquisadores Eduardo A. Oliveira, Enrico A. Colosimo, Ana Cristina Simões e Silva,
Robert H. Mak, Daniella B. Martelli, Ludmila R. Silva, Hercílio Martelli Júnior e
Maria Christina L. Oliveira, publicado na revista The Lancet em 10 de junho de 2021,
que apurou que crianças e adolescentes indígenas têm risco de morte por covid-19
três vezes [3x] maior do que os não-indígenas.

Na mesma linha, a edição do Boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz que
analisou dados disponíveis após seis meses da chegada da pandemia ao Brasil
chama atenção para o fato de que, a partir da faixa etária de 50 anos, quando
começam a se concentrar os óbitos, a taxa de mortalidade entre os indígenas
(não apenas a hospitalar, registrada na figura acima) era até 150% mais elevada
do que entre não-indígenas.

Outro estudo, conduzido pelos pesquisadores Gustavo Hermes Soares, Maria Gabriela Haye Biazevic e Edgard Michel-Crosato, da Universidade de São Paulo,
e Lisa Jamieson, da Universidade de Adelaide (Australia), mostra que, no ano
de 2020, o excesso de mortalidade apurado entre os povos indígenas foi da
ordem de 34,8%, ao passo que, na população em geral, ficou em 18,1%.

Esse estudo, conduzido a partir de dados oficiais de 2015 a 2020 e considerando
mudanças demográficas, tendências observadas no tempo e efeitos sazonais,
salienta a importância de medidas que compensem a maior vulnerabilidade
dos indígenas à pandemia.
Esses resultados contrastam com as taxas de mortalidade brutas observadas
entre indígenas e não-indígenas, que levam a crer que os indígenas são menos
afetados.
Mas essas taxas brutas escondem o problema da disparidade de sub-notificação, que é afetada pela frequente desconsideração da identidade étnica dos indígenas
urbanos, e pela falta de registro de mortes ocorridas em locais remotos, sem que
testes tenham sido feitos para detectar o vírus.

Ademais, mesmo se descartarmos esses fatores, a análise comparativa das taxas
de mortalidade deve considerar um aspecto elementar da demografia:
a pirâmide etária indígena (abaixo, à direita), com população mais jovem, é mais afunilada do que a da população geral (abaixo, à esquerda): [Gráficos na página 530].

Como as mortes por covid-19 estavam concentradas nos idosos, uma população
globalmente mais velha terá uma taxa de mortalidade mais alta do que outra
mais jovem.
Mas isso não quer dizer que os indígenas tenham morrido proporcionalmente
menos.
Para avaliar o impacto da covid-19 nesses grupos distintos, é necessário comparar
as taxas de mortalidade por faixa etária, conforme explicamos pesquisadores
Ana Lucia de Moura Pontes, Andrey Moreira Cardoso,Leonardo S. Bastos e
Ricardo Ventura Santos.
Ao decompor os dados por faixa etária, vemos o seguinte: [Gráfico à página 531].

Nesse gráfico, a linha que registra a razão de taxas por faixa etária mostra que
os indígenas morrem proporcionalmente mais em todos os grupos etários,
com exceção do correspondente à faixa entre 30 a 39 anos.
Crianças indígenas, por exemplo, apresentavam mortalidade até sete vezes maior
[7x+] do que as não-indígenas.
Já quanto aos idosos, que também morreram quase duas vezes mais [2x+]
nas comunidades indígenas, o que os números não mostram é a perda desses
que eram bibliotecas vivas do conhecimento tradicional, dos usos das plantas,
das técnicas artesanais, das línguas, dos rituais e da história – uma perda para
toda a humanidade.

Condições exclusivamente biológicas não explicam a mortalidade proporcionalmente
mais elevada dos indígenas, pois a população geral também é suscetível a esse
novo vírus.

O caráter sindêmico da covid-19, já mencionado, ajuda a explicar parte desses
resultados. Mas, em quase todas as faixas, os indígenas aparecem em situação
ainda pior do que os pretos ou pardos, que também enfrentam grave
desigualdade e racismo estrutural.
Outros fatores bem conhecidos, como a existência de barreiras geográficas e
linguísticas aos serviços de saúde, a dificuldade de manter o isolamento diante
das crescentes invasões e o acesso insuficiente à água, ao saneamento e a
materiais de higiene, explicam a elevação desse impacto.
Como os indígenas têm afirmado em suas manifestações, não é só o vírus que
os ameaça.

Além da desigualdade, há perseguição ativa, instigada e promovida pelo governo,
que tem o dever de proteger, mas elege os indígenas como alvo de uma campanha
de desvalorização, com o intuito de suprimir sua autonomia e sua diversidade,
almejando abrir suas terras para exploração econômica.

Quando a pandemia chegou, encontrou os indígenas já fragilizados, mal assistidos
e acossados.

A Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) encaminhou à CPI parecer da lavra do Dr.
Paulo Machado Guimarães.
De maneira muito clara, esse parecer salienta que os gestores públicos da União
não têm o poder discricionário de decidir se demarcam, ou não, uma terra
tradicionalmente ocupada por indígenas, ou protegem, ou não, os bens desses
povos.
Trata-se de comandos constitucionais expressos no art. 231 da Constituição,
aos quais o Presidente da República, na percepção da OAB, tem resistido.

Essa deslealdade à Constituição transparece de diversas formas.
Um princípio basilar das políticas públicas é o de que os mais frágeis devem
receber atenção prioritária.
Como a vulnerabilidade social é um fator de risco nesta pandemia, justifica-se
a adoção, pela União, de medidas extraordinárias de socorro.

No caso dos indígenas, isso envolve desde o fornecimento de insumos simples,
como água limpa, sabão e álcool para higiene, até a demarcação e proteção das
suas terras, passando pela assistência à saúde e a prioridade na vacinação.
Alguns desses elementos foram recusados, enquanto outros foram oferecidos
de modo insuficiente, o que ajudou a produzir o impacto desproporcional
de que tratamos.

A gravidade da pandemia era conhecida e a conjunção de múltiplos fatores
que expõem os indígenas a risco ainda maior foi abundantemente apontada.
Contudo, nesse momento de extremo perigo em que os indígenas precisavam
de mais proteção, seguiram sofrendo com desassistência e intrusão em suas terras.
Por esse motivo, desde o início da pandemia houve um grande clamor pela
elaboração de um plano de enfrentamento da covid-19 junto aos povos indígenas.

O plano de contingência apresentado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI) foi criticado por diversos especialistas e por indígenas como sendo excessivamente genérico, sem apresentar claramente recursos, datas e metas.

Diante da ameaça do vírus e da negligência de quem tem o dever de proteger,
a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Clínica de Direitos Fundamentais
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ] e seis partidos políticos
levaram a questão ao Supremo Tribunal Federal [STF], por meio da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, cujo objeto
é assegurar medidas efetivas de proteção aos indígenas.

Paralelamente, conforme consta do documento nº 824, encaminhado à CPI
pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA), em julho
de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos adotou a Resolução
nº 94/2020, chamando a atenção para os riscos aos quais os indígenas brasileiros
estavam expostos, solicitou ao Brasil que implementasse, de uma perspectiva
culturalmente apropriada, medidas preventivas contra a disseminação da covid19,
e que fornecesse assistência médica adequada em condições de disponibilidade,
acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros
internacionais aplicáveis.
Entretanto, até hoje as ações do governo são avaliadas pela Justiça brasileira
como incompletas ou insuficientes.

Como resultado, os povos indígenas ficaram, desde os primeiros meses de 2020, sem algumas das medidas que pleiteavam para ajudar a conter a pandemia.
Já em 2021, foram afetados, também, pela recusa do governo em vacinar os indígenas urbanos, que são aproximadamente metade do total, e por campanhas
de desinformação quanto à vacinação e à suposta existência de um tratamento
precoce para a covid-19, que não tem respaldo científico – a menos que aceitássemos,
como tal, experimentos in vitro, evidências anedóticas e metanálises focadas
na sua aprovação.
Tanto as omissões quanto as campanhas de desinformação prosseguem ainda
hoje, sendo ostensivamente patrocinadas pelo Presidente da República,
endossadas ou consentidas pelos titulares dos ministérios e demais órgãos
pertinentes, até produzirem seus efeitos com o contágio e a morte de indígenas.

Numa administração onde, notoriamente, um manda e outros obedecem,
fica nítido o nexo causal entre o anti-indigenismo do mandatário maior
e os danos sofridos pelos povos originários, ainda que não tenha ele assassinado
diretamente pessoa alguma.
Deixando o vírus agir, propagando a segurança ilusória de um tratamento precoce,
instigando invasores e recusando-se a proteger, produziu morte e sofrimento
à distância.

O acossamento constante e a negligência proposital, associados à pandemia,
foram piores do que as armas.
Se o governo tivesse sido apenas incompetente, mas bem-intencionado, o dano
teria sido menor.
Se desse um passo além, mas fosse apenas omisso, ainda assim adoeceriam
e morreriam menos indígenas.
Mas o Presidente Jair Bolsonaro comandou uma política anti-indígena que
deliberadamente expôs os povos originários à desassistência, ao assédio,
a invasões e violência desde antes da pandemia, intensificando esses atos
de franca hostilidade, somados à desinformação, após a chegada do vírus.

As más ações agravaram a omissão e a incompetência.

O governo, incumbido do dever de proteção, age de modo tão desencontrado que não há sequer consenso sobre o total de indígenas mortos.
A Sesai registra pouco mais de 800 mortos, enquanto a Associação dos Povos
Indígenas do Brasil [Apib] estima mais de 1200.

A discrepância acontece porque, além de haver dificuldades no rastreio e
no registro de óbitos ocorridos em locais remotos, de limitações à busca ativa
e da baixa taxa de testagem, a Sesai e as organizações indígenas não concordam
sobre a inclusão de óbitos de indígenas em meio urbano nesse total.

Dessa forma, se considerarmos apenas os critérios da Sesai, que considera
indígenas urbanos como pardos, a mortalidade entre indígenas é inferior
à observada na população em geral; mas se considerarmos os indígenas
que vivem em cidades ou em territórios não-homologados, essa relação
se inverte, o que é mais consistente com as notórias desvantagens sociais
que esses grupos enfrentam e com dados publicados por diversos especialistas,
a exemplo das pesquisas já citadas.

Chegaram a esta CPI documentos com indícios robustos de que os indígenas
foram discriminados, desrespeitados e que as ações e omissões do governo
contribuíram para que vidas fossem perdidas.
Paralelamente, há, na sociedade e no meio jurídico, inclusive em âmbito
internacional, uma discussão sobre a possibilidade de que a forma como
o governo federal lidou com os povos indígenas no contexto da pandemia
configure o crime de genocídio ou crimes contra a humanidade, pelo qual
denúncias já foram oferecidas dentro e fora do Brasil.

Nesse sentido, vale mencionar a nota “Povos e Comunidades Indígenas Isoladas
no País sob Risco de Genocídio”, da Associação Brasileira de Antropologia, de
25 de maio de 2021, trazida à atenção desta Comissão pela Comissão Especial
de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB, na qual a entidade expressa
“sua preocupação com a grave ameaça que paira sobre a vida e os territórios
ocupados por povos e comunidades indígenas isoladas no País” e “insta o
Ministério Público Federal – MPF para que, seguindo seu papel institucional,
interceda preventivamente diante do risco de genocídio.”

[Vide item 7.2 a partir da página 537 deste Relatório:
“7.2 Definição legal de genocídio e de crimes contra a humanidade”]

Compreendemos que a acusação possa soar estranha ou exagerada, já que os
indígenas são uma parcela relativamente pequena do total de vítimas da covid-19.
De fato, diluído em mais de seiscentos mil óbitos, o número absoluto de
indígenas mortos pela covid-19 pode não parecer particularmente vultoso,
ressalvadas as distorções já apontadas.

Mas há razões pelas quais a grande mortandade de brasileiros, de modo geral,
não possa ser, tecnicamente, descrita como genocídio, enquanto há elementos
que sustentam a plausibilidade da ocorrência de crimes contra a humanidade
contra os povos indígenas, em sentido estritamente jurídico, e não retórico.

Não se trata, aqui, de descartar ou de acolher a acusação de antemão, mas de
analisar a sua plausibilidade e os dados disponíveis até o momento, para então,
se for o caso, encaminhar as conclusões da CPI às instâncias competentes.

[…]

“7.3 A perseguição aos indígenas antes da pandemia

O processo de construção de uma ordem política democrática e plural,
consagrado na Constituição de 1988, tem sido revertido de modo acelerado pelo
governo Bolsonaro.
Isso é nítido com relação à política indigenista.
Está em curso um processo que nos remete a um passado sombrio, de franca
ofensiva contra os povos originários.
As normas que protegem os povos indígenas são alvo constante do atual governo,
mas a perseguição não se iniciou, evidentemente, nos últimos anos.

Desde a chegada dos europeus, os povos originários perderam terras, passaram
por escravização, extermínio e assimilação cultural.
Esses processos eram, e ainda são, ancorados na mentalidade colonial, que via
africanos e indígenas como povos bárbaros, cabendo aos europeus redimi-los
de seu suposto atraso cultural e religioso, integrando-os à sua civilização como
escravos ou subalternos, quase como se isso fosse um favor a eles prestado.

A ideia de que dominar, integrar e dissipar culturas seria um processo
benevolente e civilizatório apenas mascara a dominação do mais fraco
pelo mais forte, agravada pela supressão de culturas, que hoje denominamos
etnocídio.

Submeter a sociedade a modelos culturais, raciais e religiosos de matriz europeia,
integrando marginal e subalternamente todos que não se encaixem nesses
padrões, é típico do colonialismo ou do totalitarismo.

Na contramão dessa ideologia, o pluralismo democrático está assentado sobre
a dignidade humana universal.

Como a soberania popular é atributo de todo o povo, e não apenas da maioria,
é imperativo que haja respeito à diversidade e às minorias, sob a forma de direitos
fundamentais imunes à vontade majoritária.

No caso dos indígenas, alguns dos principais direitos são a autonomia
para decidir sobre o próprio modo de vida, a proteção à sua cultura e
a demarcação das terras necessárias para sua reprodução física e cultural.

Ainda que, no último século, os indígenas tenham tido o importante
apoio de personagens como o Marechal Cândido Rondon, os irmãos Villas Boas
e o antropólogo e político Darcy Ribeiro, sofreram muitos ataques e foram
estigmatizados ao longo da história do Brasil.

Mesmo após a Constituição de 1988, persistem tensões com madeireiros,
garimpeiros e fazendeiros que disputam a posse das terras reivindicadas
pelos indígenas.
Registre-se que muitas pessoas, em boa-fé, receberam do Estado títulos
de propriedade de terras consideradas devolutas, apenas para descobrir,
às vezes muito tempo depois, que eram habitadas ou pleiteadas por indígenas.
Longas disputas judiciais se seguiram, paralelamente à tensão armada,
que aflora em eventuais atos de violência. A existência de demarcações pendentes e a falta de solução justa para os ocupantes de boa-fé contribui
para a insegurança jurídica que alimenta esses conflitos.

Além disso, há quem veja os indígenas simplesmente como um obstáculo
ao desenvolvimento, cobiçando suas terras e rejeitando sua alteridade.
Temem que a existência de culturas e línguas distintas no mesmo país
enfraqueça a unidade nacional.

Não admitem a diferença e pretendem simplesmente assimilar os indígenas
à sociedade circundante, impondo a própria cultura, crenças e costumes.

Um exemplo disso é a fala do então Ministro da Educação, Abraham Weintraub,
na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, tornada pública.

Sem o pouco verniz de civilização que mantinha para disfarçar suas reais
convicções, afirmou o seguinte:

“Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio.
‘Povos ciganos’… Só tem um povo nesse país.
Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro,
só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco,
pode ser japonês, pode ser descendente de índio,
mas tem que ser brasileiro, pô!
Acabar com esse negócio de povos e privilégios.”

O ex-Ministro Weintraub e sua facção ideológica não compreendem que a
nacionalidade brasileira une, sob a mesma bandeira, diversos povos e suas
culturas.

Nosso país é politicamente unido, mas culturalmente diverso.

Desde a independência, o Brasil se organizou como império, e não como um reino, exatamente porque tínhamos muitos povos numa única pátria.

Essa união, hoje refletida na forma federativa do Estado e no pluralismo
constitucional, foi defendida a ferro e fogo no período imperial.

Os indígenas são tão brasileiros quanto quaisquer outros e historicamente ajudaram
a defender nossas fronteiras, como fazem até hoje, inclusive nas fileiras das Armas.
Um exemplo disso foi a Força Expedicionária Brasileira, composta por compatriotas
de diversos credos, ideologias e raças, inclusive indígenas.
Os pracinhas terenas tinham até mesmo grito de guerra próprio, na sua língua original.
Assim como os negros, sofreram discriminação, mas lutaram unidos a todos
os demais brasileiros.
Esse exemplo de união entre brasileiros diversos contrastou com a segregação
nas tropas aliadas, ajudando, modestamente, a fomentar o movimento pelos
direitos civis nos Estados Unidos da América.
A luta da FEB pela democracia na Europa também impactou, imediatamente,
a política brasileira.
Ainda na Itália, um grupo de quase trezentos oficiais assinou manifesto com
a seguinte denúncia: “a obra criminosa dos sabotadores internos, agentes
nazi-integralistas, desmascara os elementos confusionistas, forjadores de
vis intrigas, com o objetivo de perturbar a união pacificadora da família brasileira.” Poucos meses depois, caía o Estado Novo, que tinha entre seus valores o repúdio
à infiltração comunista e a integração dos indígenas à economia nacional como
trabalhadores agrícolas, para que, conforme propunha um documento oficial da época, “se tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civilizadas”.
É lamentável que o totalitarismo ideológico, cultural e racial de então siga vivo,
indevidamente enrolado na bandeira brasileira.

A bandeira pertence a todos os brasileiros, de todas as raças, convicções políticas
e credos.

Mas a facção radical autoproclamada dona do patriotismo, que sequer conseguiu
fundar um partido político – o que não é particularmente difícil no Brasil –,
sequestrou esse símbolo nacional como se ele refletisse não um país, mas a sua
ideologia ultraconservadora.

A respeito desse esbulho, vale a eloquência de Castro Alves,
no Navio Negreiro VI:

“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!” …

Prossegue o poema, numa acusação aos que indevidamente usam
a bandeira enquanto provocam morte e sofrimento ao povo:

“Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!”…

A conclamação a morrer de pé na pandemia, zombando do luto alheio e das cautelas
recomendadas pela ciência, fez da bandeira, injustamente, a mortalha de milhares
de brasileiros.
Precisamos colocar as coisas nos seus devidos lugares.
Verdadeiros patriotas são os que defendem e edificam o país ao qual pertencem,
não os que incitam divisões e ódios sectários, insensíveis às mortes alheias.

Usar o patriotismo como justificativa para esbulhar terras, suprimir identidades e
buscar a integração forçada é negar aos indígenas seu justo lugar como parte
de um povo soberano, unido na diversidade.

Reconhecer que há povos distintos e fazer o possível para os incluir numa união
pluralista é o que constrói uma sociedade democrática, na qual os direitos das
minorias não fiquem à mercê dos caprichos da maioria.

Em contrapartida, dividir a nacionalidade em raças superiores e inferiores para
impor segregação ou integração forçada é uma atitude totalitária, muito distinta
de reconhecer a diversidade para promover a inclusão dos desfavorecidos.

O mito da superioridade benevolente, que remonta aos primórdios da colonização, ameaça os indígenas.

Logo após sua eleição, Jair Bolsonaro expôs que “nosso projeto para o índio
é fazê-lo igual a nós.”
Todavia, a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas,
de 2007, dispõe, em seu art. 8, que os povos e as pessoas indígenas têm direito
a não sofrer a assimilação forçada ou a destruição de sua cultura.

O narcisismo por trás do integracionismo é fundamentalmente racista.

Quem se orienta por ideias como a de “branqueamento da raça” normaliza,
por exemplo, que não seja dada a devida atenção aos mais vulneráveis
– pretos, indígenas e pobres – atingidos desproporcionalmente por um vírus
que, por sua natureza, não distingue as vítimas. Mas a desigualdade coloca
essas pessoas sob maior risco.
O governo submeteu toda a população ao seu intento de atingir a imunidade
de rebanho por contágio, indiferente ao número de mortes que, apesar de
não ser desejado, foi aceito como dano colateral para preservar a economia.

Nesse processo, o modo como negros e pobres foram mais atingidos reflete
sua posição numa sociedade desigual.

No caso dos indígenas, indo muito além disso, o governo agiu de modo a agravar
esse risco, retirando deles, por conveniência, até o direito à água.

Colocar interesses políticos acima da defesa da vida é indesculpável.

Houve, no passado, um capitão paraquedista que foi convidado a participar
de um plano para detonar explosivos em alvos civis e causar a morte
de milhares de brasileiros, apenas para angariar apoio político a uma causa.

Esse oficial, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, postumamente promovido
a brigadeiro, rejeitou o plano por considerá-lo imoral e por representar uma
traição ao seu dever de proteger, e não atacar, civis inocentes.

Anos mais tarde, outro capitão paraquedista, reformado após praticar atos
de indisciplina e deslealdade, lamentou que a ditadura não tenha exterminado
os indígenas e não tenha matado mais opositores políticos.

Alçado à Presidência da República, demonstra absoluta falta de freios éticos
ao facilitar um morticínio inédito na população em geral e, especificamente,
favorecer o contágio entre os indígenas. Esmerou-se em criar essa desproteção.

O Presidente da República jamais escondeu seu desapreço aos indígenas e
seu plano integracionista, que vêm de longa data. Já afirmara, em 1998, que
o Brasil foi incompetente na tentativa de dizimar os indígenas, indicando que
a cavalaria dos Estados Unidos da América teria sido mais bem sucedida
nessa empreitada.

Em 2015, afirmou que “os índios não falam nossa língua, não têm dinheiro,
não têm cultura.”

Após sua eleição, comparou os indígenas a “animais em zoológicos”, criticando
a demarcação de terras.
No dia seguinte à sua posse no Executivo, chamou as terras indígenas de “lugares
isolados do Brasil de verdade”, prometendo “integrar esses cidadãos”,
transferindo,
para esse efeito, a competência de demarcar terras indígenas para o Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Medida Provisória nº 870,
de 2019, decisão essa que foi revertida pelo Judiciário.

Seu menosprezo continua a ser revelado em diversas declarações.

Em reunião com os governadores da Amazônia Legal, em 2019, afirmou que
os indígenas eram usados por potências estrangeiras como massa de manobra
numa guerra para inviabilizar o progresso brasileiro, acrescentando que “já se
extrapolou essa verdadeira psicose no tocante a demarcações”.

Logo antes de a pandemia chegar ao Brasil, disse que “cada vez mais, o índio
é um ser humano igual a nós”, e que estariam evoluindo, o que reforça sua visão
de que seriam “homens das cavernas” –, expressa poucos meses antes, na
abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

E a intenção do Presidente da República de ignorar os direitos dos indígenas
já era assumida, pública e notória, tendo sido fielmente cumprida a promessa
de campanha, reafirmada em viva voz após a posse, de não demarcar mais terras
indígenas e tentar integrar os povos originários, sem qualquer respeito à sua
autonomia e ao arrepio do que determina a Constituição.

Essas manifestações não são mero exercício da liberdade de expressão.
Tampouco são opiniões inocentes.
Constituem um discurso reiterado por meio do qual se tenta desumanizar
os indígenas, estigmatizar suas culturas, deslegitimar seus direitos fundamentais
e justificar o descumprimento deliberado dos deveres constitucionais e legais
de demarcar e proteger as terras das quais os povos originários dependem
para sua sobrevivência física e cultural.

São declarações públicas e voluntárias que demonstram a intenção de submeter
os indígenas a processos de assimilação ou destruição.

Como bem lembrou a Conselheira Especial das Nações Unidas para a Prevenção
do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, “não há um único genocídio que não tenha
sido precedido por discurso de ódio.”

Esse alerta é igualmente válido para os crimes contra a humanidade.

A liberdade de expressão não pode ser condicionada por censura, mas
quem abusa dessa liberdade para praticar ou incitar a prática de crimes
está sujeito às sanções legais.

O Estado Democrático de Direito não é uma terra de ninguém, onde se possa
atacar os outros impunemente, pois a liberdade sem responsabilidade
nada mais é do que o império da força.

A livre manifestação de opiniões não justifica o racismo e não pode ser usada
como pretexto para campanhas discriminatórias.

Apesar das lições históricas e contemporâneas sobre esses temas,
a tolerância com os intolerantes tem estimulado ataques por particulares
e produzido efeitos nítidos nas políticas públicas.

O anti-indigenismo de Bolsonaro, confrontado com meras notas de repúdio,
se acomodou no governo.

Em 2019, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chegou a advertir que
“nós estamos assistindo a uma espécie de ofensiva final contra os povos indígenas.”

Desde o início do atual mandato presidencial, as diretrizes norteadoras
da política indigenista passaram da inclusão e da proteção para a integração e
a tentativa constante de abertura para o garimpo, a agricultura e a geração de
energia hidroelétrica. Um exemplo disso é o Projeto de Lei nº 191, de 2020, de
autoria do Executivo, que tem por finalidade legalizar a mineração em terras
indígenas, sem que os indígenas fossem ouvidos.
Um mês antes, em janeiro de 2020, o governo federal iniciara a revisão de dezessete
processos demarcatórios já avançados, sob pretexto de submetê-los à tese do
marco temporal.
A intenção de explorar as riquezas das terras indígenas, independentemente
do que queiram os próprios indígenas ou do que determine a Constituição,
foi claramente exposta por Jair Bolsonaro durante um evento realizado em
5 de abril de 2017, no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro.
Disse o então Deputado Federal, apontando para um mapa de terras indígenas
no Brasil:

“A área mais rica do mundo é exatamente demarcada como terra indígena (…)
Um país que tem tudo isso aqui, com boas parcerias, com bons acordos,
com bons países, nós temos como vencer essa crise. Aqui apenas… são reservas
indígenas no Brasil, né? Onde tem uma reserva indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí. Mas nós não temos, hoje em dia,
mais autonomia para mudar isso daí.
Entregou-se tanto a nossa nação que chegamos a esse ponto. Mas dá para
mudar o nosso país. (…) Se a gente esperar que isso vai se acomodar, com
essas pessoas que têm se apresentado como pré-candidatos por aí, que
vão continuar a fazer exatamente o que os seus antecessores fizeram…
se a gente acreditar nisso, o nosso destino vai ser um dia sair do Brasil.
Aí eu vou lá para a Itália, se é que vão me aceitar lá… não sei… e a gente
sair do Brasil.
Nós temos batido recorde, nos últimos anos, de pessoas que pedem
a dupla cidadania. Nós temos como resgatar o nosso Brasil. (…)
Mas eu falo, como vocês falam, que nós somos brasileiros, como em
alguns países se fala também, porque as pessoas são patriotas…
é a maneira que nós temos de nos unirmos e buscar dias melhores
para a nossa nação, e não dividir. (…)
Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para
quilombolas! (…) Mas nós somos a maioria, nós acreditamos em Deus…
a cultura judaico-cristã está em nosso meio… nós aqui somos brasileiros.”

Nessa fala, fica delineado o intento de tomar posse das riquezas das terras
indígenas, apelando a um discurso demagógico e alarmista de “nós ou eles”
como se o Brasil estivesse sob risco de ser totalmente entregue aos indígenas,
restando aos demais o exílio.
O apelo à união e ao patriotismo, sob o pretexto de não dividir o Brasil,
é um chamado à integração forçada dos indígenas e à supressão
de sua diversidade, ou mesmo à eliminação física.
Prega o totalitarismo mascarado como patriotismo, apelando ao fantasma
de um inimigo interno, convenientemente identificado como uma minoria
, que impede o nosso progresso e deve ter suas riquezas tomadas.

Muito além do desprezo, Bolsonaro nutre, há anos, a intenção de destruir
os povos indígenas como tal, almejando tomar suas terras.
Já empossado na Presidência, Jair Bolsonaro dá sequência a esse plano.

Um claro exemplo disso é a publicação, em dezembro de 2020, da Carta de
Anomalias produzida pelo Serviço Geológico do Brasil, ligado ao Ministério
das Minas e Energia.
Essa ferramenta, destinada a estimular a prospecção mineral e fomentar
investimentos privados, mostra os locais prováveis de ricos depósitos
minerais, especificamente no Norte do Mato Grosso e em partes do Leste
de Rondônia, inclusive em terras indígenas.
Forneceu, na prática, mapas de tesouro para mineradoras e garimpeiros.
Com efeito, 63 novos pedidos de mineração foram apresentados após essa publicação, cercando as terras indígenas, à quais estão sobrepostos, ainda
55 pedidos de exploração.

Paralelamente às cooperativas formais, é sempre presente a ameaça dos
garimpeiros ilegais.
A área onde vivem isolados e quase extintos os Piripkura, protegida por portaria
de restrição de acesso, está abrangida nessa corrida do ouro estimulada pelo
governo.

Após intensa pressão, inclusive do Ministério Público Federal, a Funai renovou
essa portaria por apenas seis meses, quando a praxe era de alguns anos, mantendo a tensão no local.

Ao final desse semestre, sem a continuidade desta CPI e já em ano eleitoral,
os Piripkura estarão expostos a novo risco de extermínio.

Além de instigar invasores, o governo tem enfraquecido os mecanismos de
proteção.

A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), principal órgão indigenista do Brasil,
foi entregue a gestores que não têm contribuído para evitar violações aos
direitos dos povos originários – ao contrário, movem ações contra indígenas
que criticam sua gestão, acusando-os de difamar o país.

No lugar de técnicos experimentados, militares e religiosos assumem cargos
importantes na Funai.
… é sabido que, historicamente, esses mesmos grupos também produzem
tensões.
O trabalho missionário, quando feito de modo açodado e sem respeito à cultura
indígena, pode levar a cizânia para dentro das comunidades, possivelmente
deflagrando conflitos internos.

Diante desse risco, foi inquietante que, em fevereiro de 2020, quando já se
discutia o risco da pandemia, a Funai tenha nomeado, para sua Coordenação
Geral de Índios Isolados e de Recente Contato Ricardo Lopes Dias, um
ex-missionário que atuara na conversão de indígenas no Vale do Javari,
sob acusações de incitar divisões religiosas.

Já os militares … foram responsáveis, historicamente, por violações de seus
direitos.
A sombra desse passado ressurge em episódios como o caso recente de
um tenente da reserva, nomeado Coordenador da Funai no Vale do Javari,
que se dispôs a “meter fogo nos isolados” que importunem o povo Marubo.
O órgão supostamente indigenista diz não compactuar com tais atitudes,
mas tampouco se prontificou a exonerar o autor das ameaças.
É preocupante que a Funai, criada para demarcar, proteger e assistir, seja
instrumentalizada para defender a assimilação ou atacar os indígenas,
quando deveria prestar o apoio de que eles necessitam para exercer seu
direito constitucional de usufruir suas terras e decidir sobre seu modo de vida.

No documento nº 2.770, a Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos
Indígenas da OAB relata outro exemplo de integracionismo, no qual o capitão
reformado José Magalhães Filho, no exercício do cargo de Coordenador Regional
da Funai, afirmou que “nós temos que preparar esse indiozinho, essa indiazinha,
para frequentar a escola urbana. E assim a namorar com um pretinho, um
branquinho.

E essa integração vem surgindo automaticamente. Essa forma é nossa política
a ser implantada”. Na mesma ocasião, completou seu raciocínio confirmando
que o “objetivo do governo é a integração do índio à sociedade”.

Avessa às críticas, a Funai publicou em maio de 2020, já durante a pandemia,
um comunicado intitulado “Os fatos”, no qual anunciava sua ruptura
com a “velha política indigenista socialista, assistencialista e de paternalismo,”
pedindo respeito às diretrizes adotadas pelo Presidente democraticamente
eleito.

Dizia trabalhar pelo etno-desenvolvimento, como se estivesse alheia aos riscos
da pandemia, omitidos no documento.

Ao responder a esse comunicado, o representante do Conselho Indigenista
Missionário, Dom Roque Paloschi faz a seguinte advertência:

“Estamos suplicando desde o primeiro momento que o governo tomasse ações
sérias e efetivas para evitar que o vírus se propagasse no meio das comunidades.
Mas pelo contrário, estão atuando para que a mortandade cresça.
Um vírus que chega em uma comunidade indígena pode levar a uma tragédia”.

Mas os alertas não demoveram a Funai de seguir as diretrizes superiores.

O próprio Presidente da Funai acaba de ser tornado réu por atos de improbidade
administrativa consistentes em descumprir acordo com o Ministério Público
Federal e seis decisões judiciais referentes à demarcação de terras ocupadas
pelos Munduruku.

A Comissão especializada da OAB vê despreparo, desídia e prevaricação
na postura do órgão indigenista durante o governo Bolsonaro.

Outro exemplo prático da inversão do papel institucional da Funai
foi a Instrução Normativa nº 9, de 2020, publicada já em plena pandemia,
que estabelecia como finalidade da Declaração de Reconhecimento de Limites
a certificação de que os imóveis de proprietários ou possuidores privados
respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas
e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas. Mas exclui as terras
indígenas em estado de reconhecimento menos adiantado, legalizando
potenciais esbulhos.

Seria uma forma de respaldar atos nulos, à luz da Constituição, em desfavor
dos indígenas.

Mais um exemplo de integracionismo disfarçado pode ser encontrado
na Instrução Normativa Conjunta nº 1, de 24 de fevereiro de 2021,
que prevê empreendimentos agrícolas extensivos nas terras indígenas,
em parceria com não-indígenas.
A respeito dessa iniciativa, o Prof. Dr. Ricardo Verdun, em texto citado
pela Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB,
no documento nº 2.770, afirma que “a figura do arrendamento de parcelas
de terras no interior das TIs reaparece em cena camuflado com um discurso
que enfatiza a intenção de promover a ‘autonomia’, ‘autossuficiência’, ‘geração
de renda’, ‘sustentabilidade’ e o ‘protagonismo indígena’”.

Não se trata de protagonismo indígena, ou de emancipação, como o governo
federal e a Funai tentam fazer crer. Se fosse esse o caso, teria havido a necessária
consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas para a elaboração desse
ato normativo, como exige a Convenção nº 169, da Organização Internacional do
Trabalho.
Mas o Presidente da República, em discurso proferido no dia 8 de outubro,
identificou publicamente essa norma, que protege os direitos dos povos
indígenas, como um problema a ser superado, possivelmente após o término
desta CPI.
Enquanto a Constituição manda proteger e respeitar, temos visto o governo subverter essa ordem sem maiores consequências além de reveses pontuais
no Congresso e no Judiciário, somados a inúmeras notas de repúdio.

Ocorre que a escassez de reações mais contundentes por parte das instâncias
dotadas de função censória, inquisitorial ou de controle encoraja novos ataques
e omissões, que se avolumavam antes mesmo da pandemia.

Os órgãos incumbidos de controlar a legalidade dos atos do governo cultivam
uma complacência imprudente com atos de negligência ou de franca hostilidade
contra os povos indígenas, negando às volumosas denúncias a mínima diligência
de consideração em algum inquérito, descartando-as de antemão.
Seja por incapacidade ou por falta de vontade de investigar e punir, nenhum fato
parece abalar a presunção de inocência [ou de isenção de culpa] do Presidente
da República, mesmo que ele tenha declarado publicamente seus objetivos
e promova atos que concretizem essas intenções.

Com isso, o governo federal, que podia e devia proteger os indígenas, teve ampla
liberdade para violar o dever de cuidado e, ao proceder dessa forma, praticou
omissões penalmente relevantes, conforme disposto no art.13, § 2º, c, do Código
Penal, criando e agravando riscos de ocorrência de resultados adversos.
[…]
Durante a gestão do ex-Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, servidores
responsáveis por operações contra o garimpo em terras indígenas foram
exonerados, sob protesto de fiscais ambientais.
Nesse episódio, também relatado pela Comissão Especial de Defesa dos Direitos
dos Povos Indígenas da OAB, no documento nº 2.770, os coordenadores das
operações de fiscalização foram exonerados em razão do êxito de operações
que interromperam o desmatamento na Terra Indígena Ituna-Tatá, após a área
desmatada ter crescido oito vezes de 2018 para 2019.

Noutro episódio, operações de repressão ao garimpo ilegal chegaram a ser
suspensas a pedido dos supostos infratores, que o Ministério afirmou serem
os próprios indígenas.

Seria como a polícia interromper uma operação contra o tráfico de drogas
a pedido dos criminosos, sob o pretexto de que seriam moradores do local
onde desejam exercer impunemente suas atividades ilegais.

Assim, diuturnamente, o governo federal tentava encontrar formas de fugir
ao cumprimento do seu dever de proteger os indígenas e suas terras,
violando a Constituição, as leis e os tratados firmados pelo Brasil para impor
suas convicções integracionistas e favorecer os interesses de seus aliados.

Até chegarmos em 2020, já havia uma tendência ao agravamento das violações.
Quando a covid-19 se somou a essa equação, o contágio foi facilitado pela recusa
do governo em oferecer os principais elementos de proteção, ainda que,
reconhecidamente, alguma assistência tenha sido prestada.
Mas exonerar o governo de responsabilidade pelos erros com base nos acertos
seria como desculpar um sequestrador pela restrição à liberdade da vítima sob
o pretexto de que o criminoso tenha fornecido a ela abrigo e alimento durante
o cativeiro.
Punam-se os erros, não os acertos.

7.4 Fatores de risco e indícios de atos preparatórios para crimes
de atrocidade contra povos indígenas

A Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, em 2014, uma ferramenta útil
para a identificação de fatores de risco para a ocorrência de crimes contra a
humanidade.
Trata-se do Marco para Análise de Crimes de Atrocidade, que podemos aplicar ao contexto dos povos indígenas brasileiros para averiguar a plausibilidade da ocorrência desse crime.

Entre os fatores de risco previstos nesse Marco, identificamos a presença
dos seguintes no Brasil:

– um vasto histórico de violações, que podemos identificar desde a
colonização até os dias atuais;

– motivação política, consistente na constante negação da
legitimidade da existência dos povos indígenas como grupos
culturalmente distintos;

– incentivos econômicos, dado que o governo endossa a cobiça de
garimpeiros, madeireiros e fazendeiros sobre terras indígenas que
pretendem explorar, ou já exploram ilegalmente, tendo chegado a
tentar atribuir ao Ministério da Agricultura a competência para
demarcar terras indígenas, num evidente conflito de interesses;

– limitação de fatores mitigantes e preventivos, tendo sido
restringidas a identificação, a demarcação e a homologação das
terras indígenas, além do patrulhamento insuficiente contra
invasores e a falta de respeito à alteridade, substituída
ostensivamente pela pretensão integracionista;

– indícios de circunstâncias habilitantes e de atos preparatórios,
revelados na edição de medidas provisórias e decretos e na
apresentação de proposições legislativas por meio das quais se
pretende erodir o conceito de terras indígenas, permitir a sua
exploração por não-indígenas e estabelecer critérios de
hetero-identificação dos próprios indígenas;

– fatores que podem servir como gatilho para violações mais sérias,
tais como ataques armados, conflitos religiosos, incitação à
violência, propaganda de ódio, epidemia e tentativa de exploração
de recursos naturais por agentes externos, sob a complacência de
órgão governamentais que deveriam atuar na defesa dos povos
indígenas;

– tensão interétnica e discriminação, que já existiam antes, mas são
atualmente estimuladas;

– registros de intenção de eliminar grupos protegidos;

– favorecimento e tolerância à invasão, bem como falta de ações
eficazes para conter invasões e violência;

– promoção de crença religiosa específica – no caso, cristã –, como
determinante para o reconhecimento da identidade nacional, o que
transparece no lema de campanha repetido constantemente pelo
governo e na rejeição explícita de Jair Bolsonaro à laicidade do
Estado, como quando disse que “não tem essa historinha de estado
laico, é estado cristão”, somada à declaração de que “as minorias têm
que se curvar à maioria”;

– desumanização dos indígenas, apresentados pelo Presidente da
República como “fedorentos”, “animais em zoológicos” e “homens
das cavernas” caso vivam conforme seus costumes tradicionais, ou
tratados como “falsos índios” caso adotem hábitos e instrumentos
originários da sociedade circundante, como usar telefone celular e
adquirir veículos, tendo, ainda, declarado que “cada vez mais o índio
é um ser humano igual a nós”, como se já não fossem;

– acusação reiterada de parcialidade de organizações não
governamentais e humanitárias, acusadas, principalmente pelo
Presidente da República e seu ex-Ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, de buscar a internacionalização da Amazônia e de
difamar o governo.

Esses atos preparatórios surtiram efeito desde antes da pandemia.

Relatório do Conselho Indigenista Missionário referente ao ano de 2019 descreve
como, em alguns ataques a terras indígenas, os invasores alardeavam o apoio
do Presidente Jair Bolsonaro, sentindo-se incentivados e seguros da impunidade.

Recentemente, em 28 de junho de 2021, durante reunião do Conselho de Direitos
Humanos [da ONU], a Conselheira Especial citou o Brasil em seu relatório,
pela primeira vez na história, como foco de preocupação, especificamente com
a situação dos indígenas, pedindo ao governo que proteja as comunidades
e garanta a responsabilização pelos crimes cometidos.

Os fatores de risco analisados evidenciam que os povos indígenas têm
a legitimidade de sua existência questionada, vivem sob risco de ataques,
são percebidos como obstáculo ao desenvolvimento e à cobiça de agentes
externos e são alvo de políticas integracionistas, não sendo respeitados sua
identidade cultural e seu direito à terra, com usufruto exclusivo de suas riquezas,
como garante a Constituição.

Tendo o governo federal admitido sacrificar milhares de brasileiros para não prejudicar a economia e suas pretensões políticas, não há razão para supor
que fosse ter escrúpulos para expor os indígenas, desde sempre antagonizados, aos riscos trazidos pela pandemia, como de fato fez.

É doloroso constatar que a introdução de doenças nas comunidades indígenas
não é nem ao menos uma novidade.
Na obra “Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas”, o geógrafo
Jared Diamond explica que: “Foi a história das interações entre povos distintos
que deu forma ao mundo moderno, por meio de conquistas, epidemias e genocídio”.

Esses enfrentamentos produziram consequências que ainda não desapareceram
depois de muitos séculos, e que continuam ativas em algumas das mais
problemáticas áreas do mundo atual.”

Desde a colonização, doenças trazidas pelos europeus esvaziavam as áreas
de indígenas, assim como o fogo “limpava” a vegetação para dar lugar a
pastagens
e plantações.

Essa ferramenta era utilizada para submeter e eliminar os grupos considerados
como obstáculos à expansão econômica.

O atual governo repete essa crença retrógrada, de que o indígena nada mais é
do que um empecilho ao desenvolvimento, que deve ser diluído na mestiçagem,
aculturado ou simplesmente eliminado.
Ignora a economia verde, a agroecologia e a riqueza da biodiversidade, que inclui
conhecimentos tradicionais sobre patrimônio genético e variedades localmente
adaptadas, para favorecer uma agropecuária ultrapassada, baseada na expansão
de pastagens sobre florestas, já abandonada pelo agronegócio moderno,
sujeitando nossos exportadores a sanções comerciais.

O governo ostenta suas intenções anti-indígenas, traduzidas em políticas
integracionistas ou na inobservância de seus deveres de proteger e assistir.

O Presidente da República, num aparente narcisismo, declara repetidamente
que os indígenas querem ser como nós, enquanto continua a vandalizar os
direitos e garantias duramente construídos.

Registre-se que esses atos preparatórios ou em pleno curso, inclusive
transformados em projetos e políticas públicas, configuram perseguição
sistemática contra o grupo racial ou étnico, com o intuito de privar os povos
indígenas de seus direitos constitucionais à terra, à vida e à diferença no seio
de uma democracia plural.

Dessa forma, e com o posterior agravo da pandemia, o governo federal sujeita
os indígenas a condições passíveis de causar a destruição parcial da sua
população, o que nos remete à definição de crimes puníveis conforme normas
internacionais, contra a humanidade, como já mencionamos. [Vide item 7.2
a partir da página 537 deste Relatório].
[…]
“Entende-se, hoje, que a covid-19, mais do que uma pandemia,
é uma sindemia, pois o perfil dos mortos e infectados não é aleatório,
variando conforme condições socioeconômicas que deixam alguns
segmentos demográficos mais vulneráveis do que outros.

A população entre a qual o vírus circula não é homogênea e condições sociais
e ambientais adversas fazem com que a doença atinja desproporcionalmente
comunidades desfavorecidas e grupos étnicos ou raciais marginalizados, como
indígenas e negros.

Numa sindemia, a desigualdade se torna uma comorbidade, pois a insegurança
alimentar, a falta de condições dignas de moradia e de acesso ao saneamento
faz com que essas pessoas fiquem mais suscetíveis ao contágio.
… a exposição a ambientes com maior aglomeração [inclusive no trabalho,
em muitos casos] e a necessidade de utilizar o transporte público, também
favorecem que os mais pobres sejam mais contaminados.”
[…]
“Quando a pandemia chegou, o vírus foi mais uma arma, a mais mortífera,
nessa campanha que já estava em curso.
Estudos demográficos mostram como os indígenas, que são uma pequena
parcela dos mortos em termos absolutos, foram mais intensamente atingidos
em todas as faixas etárias que o restante da população, com exceção da que vai
de 30 a 39 anos.
O governo se recusou a fornecer insumos vitais, como a água, e usou a pouca assistência oferecida como álibi para tentar esconder as omissões deliberadas
no seu dever de proteger.
Sempre que foi instado, mesmo judicialmente, a criar planos robustos
de proteção, manteve uma atitude ambígua e recalcitrante.
Mesmo a prioridade dada aos indígenas na vacinação foi parcial, abrangendo
apenas os aldeados, que são metade do total.
Quando o Supremo Tribunal Federal determinou a vacinação abrangente,
o governo resistiu.
As campanhas oficiais de vacinação contrastam com a ofensiva extraoficial
que o Presidente Bolsonaro instiga contra as vacinas, criando boatos que
seus apoiadores replicam nas redes sociais e fazem chegar aos indígenas.”
[…]
“Não é segredo que o governo federal praticou atos deliberadamente voltados
contra os direitos dos indígenas.
Somou, à retórica anti-indigenista que o Presidente Jair Bolsonaro já difundia
desde os tempos de seus mandatos de deputado federal, a promessa de
não demarcar mais terras durante seu governo.
Empossado, atuou para erodir as garantias constitucionais e legais que protegem
os indígenas, além de instigar invasores, num assédio constante.”

Íntegra do Relatório Final da CPI da Pandemia no Senado:
(https://pt.scribd.com/document/533943312/Relatorio-final-da-CPI-da-Covid)

Francisco de Assis

A verdade é que genocida não é apenas o terrorista adorador de torturadores Jair Bolsonaro.

Não seriam genocidas estes políticos – do G7 da CPI e fora dele – beneficiários do genocídio secular dos povos indígenas e que, sobre este massacre, conquistaram o poder de mando e de retalhamento de toda a Amazônia?

Não seriam genocidas também os ministros do STF que votam para instituir o marco temporal e assim exterminar mais alguns povos indígenas, que assim perderão as suas terras e virarão favelados nas cidades?

E essa corja de generais e outros oficiais do exército de ocupação do Brasil, herdeiros e continuadores da política genocida dos militares da ditadura e dos bandeirantes e outros facínoras contra os povos indígenas?

E tantos outros mais, banqueiros e tantos outros escroques do dinheiro grosso, secos para se apossar do território indígena restante e expulsar os seus povos, não são genuínos genocidas?

A verdade é que a consequência dessa covardia dos senadores da CPI é só uma, a continuidade impune do genocídio secular dos indígenas no Brasil, até que sejam destruídos enquanto povos.

E outro resultado concreto disto poderá ser, em breve, a declaração do marco temporal pelos genocidas do supremo, que poderão fazê-lo agora com a consciência tranquila, pois, afinal de contas, se um assassino em massa, responsável pela morte de centenas de milhares de brasileiros e pela clara tentativa de exterminar, no que for possível, os indígenas, aproveitando-se de uma doença , se um verme desses não é classificado como um genocida, por que um ministro do supremo o será por um “detalhe” temporal, já que, segundo os genocidas todos, os “indígenas já têm terra demais”?

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