Maurício Korenchendler: Sobre Losurdo, Petkovic e o banqueiro que envenena a esquerda

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Quem decide sobre o estado de exceção, suscetível de justificar a suspensão das regras do jogo, é sempre o Ocidente liberal, capitalista e imperialista. Domenico Losurdo

A URGÊNCIA DE SUPERAÇÃO DO MITO DO FIM DA HISTÓRIA

Por Maurício Korenchendler

O presente artigo é fruto de uma reflexão concluída no final do ano passado pegando a queda do Muro de Berlim como gancho para uma análise dos rumos da esquerda em eterna autocrítica desde então.

O cenário nacional e internacional atual exige um exame que destrinche sua raiz.

A escalada do golpe na Argentina, os ataques massivos de Bolsonaro aos trabalhadores brasileiros, a revolução colorida em Belarus são fatos que estimulam o pensamento crítico sobre a postura que a esquerda deve tomar, para além da crença das instituições democráticas burguesas vencendo o canhão.

A metáfora do muro contra a continuidade da história

Tem sido muito disseminado no ambiente acadêmico de história, e se espraiado para outros campos sociais, que a verdade não existe.

Ela seria, portanto, mera criação da linguagem.

Alguns mais radicais afirmam taxativamente que a realidade só existe graças à linguagem.

Surpreendente que tal afirmação tenha por base um encantamento teórico a tentar justifica-la. Inúmeras são as falhas e brechas.

São os acontecimentos do presente que nos interessam, no momento.

Se a realidade só existe em razão da linguagem, como podemos explicar experiências históricas que vivemos e testemunhamos?

Somos apenas escritos em língua digital aparecendo em uma tela, como no filme Matrix?

As revoltas na América Latina ou a queda do Muro de Berlim são apenas linguagem?

Evidente que não!

O que existe são interpretações sobre os eventos sob a realidade das tensões de classes.

De um lado a classe dominante buscando construir sua versão da história, negando toda e qualquer experiência contrária aos seus interesses.

A queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, é um excelente arquétipo da dinâmica tensionada entre os campos da direita e esquerda.

O jornalista Pedro Bial [1], da Rede Globo, que cobriu a queda do Muro de Berlim construiu uma narrativa impregnada de conteúdo moral, com destaque para a euforia da unificação, principalmente da população do lado oriental, pautada no mito do fim da história.

Vale destacar que o repórter faz uma equivalência moralista entre a extrema esquerda e grupos neonazistas, já evidenciando como seria a utilização política da queda do muro.

O mito do fim da história teve como fundador teórico Francis Fukuyama, que, por meio de uma perspectiva hegeliana, classificou a queda do muro e da URSS como a vitória natural do capitalismo/liberalismo sobre o socialismo.

As tensões de classes teriam se evaporado e todas as forças contrárias ao capitalismo aceitado sem tenacidade a vitória inquestionável do liberalismo.

De fato, grande parte da esquerda foi hipnotizada pelo canto da sereia com a melodia do fim da história.

A euforia descrita pelos repórteres globais que fizeram a cobertura da unificação alemã tomou não somente parte da população da Alemanha Oriental como também grande parte da esquerda mundial.

Esse otimismo dos alemães orientais mostrou-se inocente demais, já que, crédulos em um fim da história, foram incapazes de prever, com base em análise concreta da história do capitalismo, que suas reivindicações seriam utilizadas pelos capitalistas para implodir a Alemanha Oriental e destruir todas as suas conquistas sociais.

O mito do fim da história pressupunha uma data derradeira para o fim do embate entre capitalismo e socialismo, do qual o primeiro teria saído vencedor.

Tal reducionismo desconsiderava as lutas dos povos em diferentes localidades e servia apenas aos capitalistas que, através de seus representantes, robusteceram sua construção historiográfica de modo a demonizar toda e qualquer experiência contra hegemônica, equiparando o socialismo ao nazismo.

Desta forma, a queda do Muro de Berlim funcionou como uma intervenção traumática que soterrou o espírito revolucionário de grande parte da esquerda que, uma vez descrente em si, negou seu passado de luta, aceitando sua derrota.

A hegemonia na esquerda passou a ser a defesa de uma social democracia, cuja viabilidade só foi possível em razão do contraponto socialista.

Obviamente, a esquerda também esqueceu que era o contraponto socialista que obrigava o capitalismo a vestir-se como humano.

É dizer, o capitalismo não concede por voluntarismo, bondade inata tampouco por altruísmo ou empatia imanente, mas apenas pela ameaça que representa a existência do socialismo.

O socialismo é, portanto, contraponto que serve como referência para a pressão que os movimentos operários e populares exercem nas lutas contra a classe dominante, enfim, contra o capitalismo.

Em reportagem na Le Monde Diplomatique [2], escrita por Rachel Knaebel e Pierre Rimbert, intitulada Alemanha Oriental, a história de uma anexação fica evidente que o avanço capitalista se aproveitou das abstrações dos movimentos que exigiam liberdade política para suprimir qualquer avanço no campo da igualdade social material.

A crença da maioria de esquerda, que aqui será chamada de hegemonia da esquerda institucional (HEI) ou esquerda liberal, transformou as reflexões materiais em fraseologias morais com reivindicações ontologicamente burguesas.

Desta forma, inegável a contribuição da HEI para o campo capitalista, uma vez que negam suas experiências ao descontextualizá-las e moralizá-las.

A despeito da crítica moral tecida nas linhas da reportagem citada, afinal é preciso falar o aceitável, evitando pecha revolucionária já que, diante da incorporação de pautas de matriz liberais (direitos humanos e valores universais) acriticamente, soaria deveras paradoxal, os dados trazidos são importantes para confirmar o projeto da Alemanha capitalista que atuou de forma avassaladora sobre o campo socialista alemão.

A concepção de revolução pacífica, atribuída a reunificação capitalista da Alemanha, já encontra questionamento na maioria dos alemães orientais que, em outubro do presente ano, compreendem que não estão protegidos da violência do Estado.

Em alguns momentos, os autores parecem acreditar no mito do fim da história: “No outono de 1989, a população da Alemanha Oriental escreveu sua própria história. Sem auxílio externo, manifestações maciças em Berlim, Leipzig e Dresden destituíram o Estado-partido comandado pelo Partido Socialistas Unitário da Alemanha (SED), sua polícia política, sua mídia submissa.”

No Estado capitalista, tanto a mídia quanto a polícia representam os interesses da classe burguesa, isto é, são necessariamente políticas e, de certa forma, submissa aos interesses de uma classe e suas frações.

Para dar falsos ares democráticos, no caso das mídias, permite, limitando o alcance, que pequenas mídias circulem ou atuem no meio social.
Jamais permitem que qualquer mídia que seja materialmente opositora tenha a amplitude de seu alcance ampliada.

O Estado capitalista fortalece as mídias e outros aparelhos que servem aos interesses da classe dominante, a burguesa, permitindo que, para justificar seu caráter democrático, vozes dissonantes ocupem um espaço mínimo.

A lógica estabelecida consiste em garantir a ação forte da mídia, polícia, judiciário em consonância com os interesses da hegemonia liberal, marcando que pulsa uma democracia, por existir um ínfimo contraponto que, por sua vez deve buscar seu crescimento e alcançar a amplitude da mídia hegemônica por seu próprio esforço.

Em linhas gerais, a lógica do Estado liberal não ignora a existência da luta de classes e é por isso que elabora disfarces que servem de comparativo para condenar as experiências contrárias, sendo assim, os aparelhos de hegemonia do Estado liberal estão sempre a serviço dos capitalistas, isto é, da classe dominante burguesa.

Ora, assumir que o Estado liberal, sob a égide do capitalismo, com uma mídia submissa aos interesses de classe da burguesia, que impede o fortalecimento de vozes antípodas sobre os fatos, é contraponto democrático a um Estado que, seguindo a mesma lógica de ter uma mídia e outros aparelhos a serviço da classe dominante, no caso a trabalhadora, constitui defesa intrínseca da meritocracia liberal.

As críticas morais tecidas à Alemanha Oriental e ao bloco socialistas são em geral impregnadas pela matriz liberal, por desconsiderarem a existência de luta de classes que segue a lógica da dominância de uma sociedade.

Se em uma sociedade capitalista as instituições e todos aparelhos são submissos aos interesses capitalistas, da mesma forma, em uma sociedade socialistas, as instituições e demais aparelhos, inclusive a mídia, serão “submissos” aos interesses socialistas, no caso, aos interesses dos trabalhadores.

Se no Estado capitalista, a classe trabalhadora precisa mover esforços hercúleos para conquistar o lugar ao sol em meio aos aparelhos de hegemonia burgueses, na sociedade socialista, a burguesia que lute (e lutam, com a famosa contrarrevolução).

A lógica estabelecida pela crítica da reportagem ignora os embates de classe, fazendo, assim, um ataque mecânico ao avanço capitalista que destruiu as décadas de lutas: todas as conquistas sociais e trabalhistas e o desejo dos alemães orientais que “queriam as liberdades políticas e a prosperidade, mas sem renunciar as características de sua sociedade” se tornou arma para a destruição capitalista e fraseologia improfícua para a esquerda.

A falta de leitura material da importância que a URSS e demais países socialistas representavam para o confronto de classes impregnou de falsas esperanças tanto a população da Alemanha Oriental quanto a Esquerda Hegemônica mundial.

As concessões do capitalismo não são fruto de sua boa vontade, mas resultado de muita luta interna perpetrada pelos movimentos dos trabalhadores que ecoaram para inúmeras localidades.

Nesse sentido, a crença dos alemães orientais de que com o fim do socialismo, o capitalismo seria benéfico e democrático, trata-sede uma ilusão que a reportagem e a história confirmam.

O que segurava o ímpeto predatório absoluto do capitalismo (ou da “Terapia de Choque”, no caso da Alemanha Oriental) era a existência do bloco socialista, o estabelecimento de uma opção de real contraposição.

Não se trata de fazer uma defesa de política de muros, mas compreender o que representou a queda do muro de Berlim e da URSS para o movimento de luta dos trabalhadores com base nos desdobramentos dos 30 anos que se seguiram.

A luta pela liberdade política nos moldes liberal que levou a destruição avassaladora das conquistas dos alemães orientais transformou-se em uma luta contra o projeto liberal do lado ocidental.

Esta é a metáfora do muro cuja queda prometia esperança, mas a realidade só trouxe o totalitário capitalismo para o lado oriental alemão, para o leste europeu, para a antiga URSS e para o campo da esquerda: a queda do muro soterrou grande parte da esquerda que, ao remover-se dos escombros, respirou em demasia da poeira liberal.

Aproveitando dessa poeira, um balanço final: E ai, foi bom para você?

Removendo os escombros

Geralmente as experiências traumáticas são marcadas com grande processo de autocrítica. Não poderia ser diferente com a esquerda.

Após conseguir sobreviver ao soterramento da queda do bloco socialista, a esquerda se colocou em eterna autocrítica à direita, negando todo seu histórico de lutas e conquistas sociais.

A este processo de negar a si mesma, a sua própria história e ao seu papel no contexto de guerra de classes, Domenico Losurdo cunha o termo Autofobia.

A autocrítica faz parte do processo de aprendizagem e é inerente aos movimentos que lutam contra o capital, no entanto, no caso da esquerda, essa autocrítica feita à direita faz parte de um processo às avessas na qual o resultado é tornar-se uma autofobia para, enfim, se transformar em autofagia, que seria a sua autodestruição.

A eterna autocrítica da qual a esquerda se faz refém desde a queda do muro de Berlim contaminou diversos campos de luta, inclusive, o campo da historiografia que passou a ser hegemonicamente liberal após 1989.

A conivência do campo da esquerda com a historiografia liberal permite que os intelectuais orgânicos do capitalismo desenvolvam surreais elucubrações que possuem uma só intenção: demonizar o campo do socialismo.

A historiografia é uma construção política.

No ocaso do socialismo real, o Ocidente liberal passou a ter total hegemonia sobre a construção política da história e sempre que a questão envolvia a complacência com a demonização irrestrita das experiências contra hegemônicas, em especial a socialista, o critério era apenas um: fale o que quiser, desde que impossibilite qualquer defesa.

Essa lógica é similar à lógica da mídia burguesa, pois defende os interesses da dominância capitalista burguesa.

Assim, obras de autores como Annie Lacroix, Grover Furr, Michael Parenti, V. M. Jvostov, L. I. Zubok, Revunenkov, Gerald Horne, William Z. Foster, Paul Sweezy, Claudia Jones dentre outros são de acesso dificultado seja pela parca tradução, seja pela limitação na distribuição.

No caso brasileiro, Domenico Losurdo, Luís Fernandes e Paulo Fagundes Visentini são autores mais acessíveis que trazem verdades históricas contrárias às verdades liberais.

A crítica pela crítica das experiências da esquerda serve apenas à dominância.

Como bem colocou Domenico Losurdo, a classe dominante expropria o passado da classe trabalhadora para que esta, sem história, não tenha no presente instrumentos e prática para construir seu futuro.

É preciso compreensão das práticas e defesas de conteúdo esvaziado ou preenchido por moralismo burguês, para evitar cair nas arapucas do imperialismo.

O imperialismo busca de todas as formas por fim a quem representa alguma ameaça a sua estrutura.

A limitação da circulação de obras, a restrição do crescimento de mídias, a proibição atuação popular e a censura fazem parte desse projeto imperialista.

Entretanto, faz-se mister atentar para uma prática menos agressiva do imperialismo: a cooptação de quadros que visem hegemonizar a esquerda ao gosto imperial.

No Brasil, o capital, através de figuras como Jorge Paulo Lemann, têm investido em quadros liberais de esquerda com intuito de torná-los fortes e assim descaracterizar a ação por bases da esquerda.

Para tanto, financia inúmeras pessoas, filiadas a diferentes partidos, intensificando a defesa das chamadas pautas identitárias para, assim, dar as caras (e cartas) da esquerda.

Além da imposição de um projeto capitalista de esquerda, em entrevista de 2015 [3], um ex agente duplo cubano esclareceu como a oposição à esquerda acaba sendo uma arma do imperialismo para minar qualquer regime de esquerda que não lhe agrade.

Trata-se de fragilizar pela fragmentação dissociada da dimensão de totalidade.

Remover os escombros é tarefa importante para que a esquerda tenha capacidade de enfrentar o avanço do neoliberalismo que vem mostrando que seu modelo de Estado é o totalitário, uma vez que as inevitáveis contestações devem ser censuradas e proibidas.

A queda do Muro deixou a esquerda fragmentada em escombros e sua reestruturação em unidade com diversidade passa por uma autocrítica à esquerda e superação da crença em uma direita (e burguesia) que luta politicamente tendo a honestidade e lealdade como virtudes.

A autocrítica pela esquerda é a retomada do espirito revolucionário e resgate da leitura materialista da realidade, com identificação clara de inimigos, estabelecimento de táticas e estratégias, e, principalmente, consciência de que a moral na política é arma das elites.

Tensão de classe é correlação de forças e não há mito de fim da história que possa negar a realidade! Muito diferente dos que dizem que a realidade é criada pela linguagem: a realidade é o que molda a luta!
Stálin, a esperança reabilitada?

O presente ano é marcado por um acirramento da luta de classes no Brasil.
Cada vez mais evidente, o posicionamento contrário do ex-jogador de futebol, hoje comentarista, Dejan Petkovic, em programa televisivo do SPORTV [4], canal pertencente aGlobo, e as polêmicas envolvendo a sugestão de censura de professores de São Paulo e deficiência intelectual atribuída por setores liberais, como Intercept, ao professor Jones Manoel, nos evidencia muito sobre a construção historiográfica liberal no Ocidente e o atual cenário político global.

Travamos uma luta contra a influência liberal que impregnou a historiografia ocidental nas democracias liberais capitalistas.

Dizer que a escrita da história possui sua própria história é reconhecer que o processo histórico político atua sobre o fazer história.

Um rápido voo sobre os últimos 100 anos de história corrobora tal assertiva.
O advento da Revolução Russa de Outubro de 1917 reforçou a ameaça que o comunismo representava para as democracias burguesas do ocidente europeu que promoveram a ampliação de sua cruzada anticomunista que tinha com o objetivo a aniquilação total do socialismo/comunismo.

Essa destruição não era apenas material, seguia a cartilha da destruição da história, a partir de invenções e demonizações das experiências, sempre construindo um cenário de cerca e instabilidade permanente para justificar qualquer agressão “libertadora”[5].

Além do envio de tropas militares para a Rússia com intuito de impedir a governança bolchevique, as elites das potências liberais europeias permitiram a ascensão do nazi fascismo como forma de impedir e até suprimir os soviéticos do mapa.

Antes da agressão, fazia-se necessária a criação de toda uma falaciosa mitologia em torno dos comunistas.

A historiadora francesa Annie Lacroix desconstrói um dos principais mitos construídos pelo nazismo sobre os soviéticos, sob à liderança de Stalin: Holodomor [6].

Obviamente, a maioria do material encontra-se em francês, sem tradução, já que não interessa desmentir certas versões fantasiosas da história.

Da mesma forma, a tradução do historiador Grover Furr [7] também não é incentivada dentro de um sistema soft de censura meritocrática burguesa [8].

Outros mitos cada vez mais teratológicos foram inventados ea numerologia sobre “vítimas” do comunismo, tanto na URSS quanto em outros países, se tornou quase que uma brincadeira de aposta em que se falsificavam e inventavam números de acordo com a vontade do freguês.

O historiador russo, anti-stalin, Viktor Zemskov, mesmo com toda sua ojeriza ao socialismo, mostrou-se compromissado com a verdade e, em trabalho de pesquisa realizado na década de 90, esclareceu a verdade.

Certo é que há uma demonização de Stalin e qualquer figurado campo socialista ou contra hegemônico, sempre condenados por juízos morais, sendo certo que tais juízos nunca se aplicam no campo liberal.

Se a questão é número de vítimas ou presos, os países capitalistas são os campeões da história.

Mas, infelizmente, até para parcela da esquerda perdida na ideia de autodeterminação individual como representante da totalidade, os números infinitamente maiores do campo “democrático” liberal são aceitáveis.

A questão, obviamente, não se resume aos números, mas serve para evidenciarmos que mesmo a construção historiográfica é movimentada pela tensão de classes.

O semblante de repúdio de Petkovic demonstrou como a historiografia liberal é desonesta e perversa.

Entretanto, a postura do ex-jogador, somada ao crescimento da popularidade de Stalin na Rússia, evidencia que não se trata de um caso isolado, de um “louco fanático”.

Pelo contrário, deixa claro que existe uma verdade histórica que desconhecemos.

Vale trazer novamente e sempre lembrar a assertiva de Domenico Losurdo: “a classe dominante expropria o passado da classe trabalhadora, para que esta, no presente, não tenha expectativa de futuro”.

Eis o projeto liberal historiográfico.

Soberano é o cerco capitalista que impõe uma situação de permanente exceção e instabilidade a qualquer experiência socialista, ou minimamente contra hegemônica, ao mesmo tempo em que exige uma conduta dentro dos padrões de normalidade e estabilidade.

Ao contrário do objetivo liberal burguês, a história não é uma brincadeira de leilão em que cada jogador aumenta os números em resposta à pergunta “Quem dá mais?”.

O repúdio dos professores paulistas contra o professor pernambucano Jones Manoel reforça a necessidade crescente de analise emancipada das experiências socialistas.

Por emancipada, entende-se sem a influência liberal na historiografia.

A acusação à pessoa de Jones Manoel como sendo “stalinista”, o que por si só justificaria sua exclusão de participação na revista Jacobin Brasil, demonstra a necessidade de amadurecimento da esquerda, que passa pelo resgate histórico da sua luta.

A chamada “reabilitação de Stálin” na prática trata-se de uma esperança resgatada, na qual o chamado pai dos povos acaba se tornando, neste século XXI, o pai da esperança.

O resgate da figura de Stálin, sob uma perspectiva dissociada da matriz liberal, evidencia uma esquerda frágil e falha, incapacitada de defender a história de luta do movimento comunista e sem expectativas em seus horizontes desde o recente espaço de experiência, mais precisamente a partir de 1989.

Vale destacar que não se trata de sacralizar a figura de Stálin, mas compreender sua atuação de forma contextualizada, reconhecer as limitações de seu tempo histórico, as ameaças e guerras impostas ao povo russo pelos liberais, fascistas e nazistas.

A proposta hegemônica da esquerda institucional falhou e tem falhado.

A leitura histórica comprova que qualquer conciliação tem prazo determinado: até a rearticulação das forças de direita para tomada da direção.

Compreender Stálin e sua gestão na URSS como uma experiência com erros e acertos para o campo de luta socialista aparece como inevitável quando consideramos, além dos parcos exemplos aqui listados, que, na própria Rússia, o líder soviético é a figura mais indicada como grande liderança. E não apenas para os socialistas.

Estudar o governo de Stálin é desmistificar narrativas liberais engendradas pelos ideólogos liberais, resgatar modelos teóricos e práticos que façam frente ao projeto imperialista de “valores universais”,dando opções cristalinas à democracia liberal-burguesa, estabelecendo a distinção entre a violência opressora do Estado burguês e a justa violência como forma legitima de enfrentar a burguesia.

Em tempos de esvaziamento, cooptação pelo capital e autonegação da esquerda, a “reabilitação de Stálin” é, concomitantemente, sintoma, diagnóstico e prognostico de mudança real de atuação na guerra de classes.

E a esquerda precisa tomar ciência de que a luta de classes não é mero discurso ou retórica, mas sim o motor da história [10].

Foi preciso que um ex-jogador, em um programa esportivo, demonstrasse, de forma evidente, sua insatisfação sobre a má fé da construção historiográfica liberal.

Enquanto a esquerda política senta-se a mesa com a extrema direita, dando-lhe roupagem de civilidade para junto a ela blasfemar contra as experiências de seu campo, sem compreender que a negação da história de lutas e vitórias é o esvaziamento de um caldeirão histórico repleto de experiências que nos fornecem expectativas e só serve para alimentar o projeto direitista.

De toda forma, a principal reflexão, a ser desdobrada em outros textos envolve a radicalização da extrema direita contra uma esquerda fragmentada e acuada calcada na falsa crendice da conciliação como fim e não como instrumento e estratégia.

Ao menos, parte da esquerda demonstra não sofrer de autofobia ao reivindicar as experiências do campo da classe trabalhadora, como é o caso da crescente centralidade referencial que vem tendo a figura de Stalin [11].

Resta saber se, a cada regressão da democracia burguesa, o aumento das perseguições contra figuras da esquerda liberal e institucional, e o descaso com a pauta dos direitos humanos — construída historicamente pela classe dominante e hoje largada por ela, exceto nos casos em que são utilizados como arma para justificar agressões a países como Líbia ou Venezuela — a esquerda terá força (e tempo) para resgatar seu espírito revolucionário, sua inspiradora trajetória de luta e salvar a humanidade da crescente barbárie.

NOTAS

[1] https://www.youtube.com/watch?v=GYXBrlVkBuI

[2] Knaebel, Raquel; RIMBERT, Pierre. Le Monde Diplomatique Brasil, Ano 13, número 148, Novembro 2019.

[3] https://www.sul21.com.br/breaking-news/2015/11/ex-agente-duplo-conta-como-a-cia-promove-guerras-nao-violentas-para-implodir-governos/

[4] https://revistaforum.com.br/comunicacao/petkovic-rebate-apresentador-por-afirmacao-sobre-stalin-sanguinario-pera-ai/?fbclid=IwAR3tLPTSpw9HyBkYEZZOhvxNVqyA2UPmvvWAIf2ZeYkFQocBfmtBpbKYb2A

[5] https://www.marxists.org/portugues/losurdo/1993/11/outubro-02.pdf?fbclid=IwAR237egvWIvDA6E74BRFpjp9x8rDAf8LMIKWRE3o2zpYJIuy4Glbq5gLfQE

[6] https://www.odiario.info/o-holodomor-novo-avatar-do-anticomunismo-europeu/?fbclid=IwAR1v4TCcSlLN4ihIeMdykO6wva3Lm9bXPgo-CyccXoV0bD4qQP0spwvPc40

[7] https://msuweb.montclair.edu/~furrg/?fbclid=IwAR2unFsn9bYReeXQgsku8xNRJ1j4xUdf3KYthJea2VXHZLxJ7hKGM81bB9E

[8] https://www.youtube.com/watch?v=xVe3GYocyVo&fbclid=IwAR2yPBOJuxDzTfkiq5E_yQcorlZl4AO3UBjsgOPawC7rlLeT2aXD4IsJFMc

[9] https://www.bbc.com/portuguese/geral-48274121

[10] LOSURDO, Domenico. Fuga da História: A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2009. [11] __, Stalin: História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2ª edição, Rio de Janeiro


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Comentários

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Zé Maria

No braZil o ícone da Queda do Muro de Berlim foi Roberto Freire, o mais evidente representante da ‘esquerda’ Autofóbica, seguido de perto por Fernando Henrique Cardoso, José Aníbal, Aloysio Nunes e José Serra.

    Acrescente nesse rol José Genoíno, Tarso Genro, José Dirceu, Luis Gushiken, Antônio Pallocci, Augusto Franco, José Alvaro Moises, Francisco Weffort

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