Mariana Boujikian: “O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dos guarani”

Tempo de leitura: 4 min

Aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Foto: Mariana Boujikian

por Mariana Boujikian Felippe, especial para o Viomundo

Ao chegar à aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Descalças, com os pezinhos cobertos de terra e as caras pintadas, elas dançavam de mãos dadas, e entoavam juntas uma canção de boas-vindas. Penduradas em cada uma delas, placas com os dizeres “Nós quero educação já/ Nós quero demarcação já/Pelo amor de deus parem o massacre contra os povos indígenas guarani”. As crianças guarani-kaiowá fazem parte de uma das maiores etnias do Brasil, e aprendem desde pequenas que precisam lutar para serem reconhecidas como cidadãs e terem seus direitos mais básicos respeitados. As placas eram sua forma de protesto, e representavam a voz de jovens brasileiros que parecem ter sido esquecidos há anos pelo seu próprio país.

Desde o seu descobrimento, o país adotou a prática do extermínio destes povos que cometeram um único crime: o de mostrar que é possível viver de uma maneira diferente. Para os guarani-kaiowá, a luta pela terra também é uma forma de resistência ao modo de vida do homem branco. Na sua língua, as terras tradicionais são chamadas de “tekoha”, palavra que vem de “teko” (modo de ser) + “ha” (lugar), o que poderia ser traduzido como “lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”. Para eles, os tekoha são lugares sagrados, onde é possível entrar em contato com os espíritos da terra e exercer sua própria cultura.

A guerra contra os índios de MS escancarou-se na década de 1940, quando começou o processo de colonização da região, com incentivo do governo federal. Os índios foram expulsos de suas terras, e forçados a se concentrar em oito pequenas reservas. Atualmente, os guarani-kaiowá estão confinados em cerca de 45 mil hectares, o que equivale a menos de 1% de seu território original. Onde antes estavam seus tekoha, agora há o mar de soja, cana-de-açúcar e pastos de boi. Os territórios sagrados deram lugar à produção desenfreada de commodities, que levarão o Brasil ao rol das novas potências econômicas.

A reação ao confinamento logo veio, ganhou força nos anos 1980, e vem retomando pequenas porções de terra desde então. Em sua luta, o movimento indígena enfrenta a força dos grandes proprietários de terra e do agronegócio. Hoje, MS abriga a segunda maior população indígena do país, mas é um Estado onde a lei pertence aos fazendeiros. Em agosto desse ano, Luis Carlos da Silva Vieira, proprietário do munícipio de Paranhos, declarou abertamente a um site de notícias: “Esses índios aí, alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos comerem”.

Infelizmente, a violência não se restringe ao discurso dos fazendeiros locais: neste último setembro, pistoleiros dispararam por horas contra os índios que participavam pacificamente de uma das retomadas, neste mesmo município. Pesquisas mostraram que, de 2003 a 2010, foram assassinados mais indígenas em MS do que em todo o resto do país. Grandes líderes vêm sendo perseguidos, ameaçados, e até mortos, como ocorreu com Nisio Gomes no ano passado. A impunidade dos mandantes se perpetua, e a terra continua sendo manchada de sangue.

Com restritas áreas para desenvolver suas práticas culturais e realizar plantio e caça, muitas aldeias passaram a depender de cestas básicas do governo para sobreviver. A consequência é um alto índice de morte por desnutrição infantil. Algumas comunidades buscam sustento trabalhando nos canaviais, conhecidos pelas suas condições trabalhistas precárias. Diante desse quadro, não é difícil entender porque o número de suicídios entre jovens indígenas é quatro vezes maior do que entre jovens do resto do país.

A Constituição Federal prevê que todos os territórios tradicionais deveriam ter sido demarcados até 1993, mas até agora, apenas 1/3 das terras foi demarcado. A luta pela demarcação de terras esbarra na lentidão do Judiciário em julgar processos pendentes, e no descaso do Executivo em homologá-las.

Para que possamos chamar este país de democrático, é essencial que haja o reconhecimento do direito desses povos aos seus territórios. As terras precisam ser devolvidas aos seus ocupantes originais, para que o Brasil seja de fato “um país de todos”. O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dessas populações. É preciso que cada cidadão divulgue essa causa, que é de todos os brasileiros. O rosto de cada criança indígena que implora pelo fim do genocídio contra seu povo é a face de um Brasil indigno e desumano. É preciso que as vozes das crianças de Guaiviry e de todas as outras comunidades reverberem e sejam ouvidas. É preciso que se faça justiça, pois os povos indígenas não podem esperar mais.

Mariana Boujikian Felippe é estudante de Ciências Sociais da USP.


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Ana Cláudia Dantas

Acabei de ler no Estadão.com:

“O governo do Rio vai demolir um prédio de 1862, sede do antigo Museu do Índio, ao lado do estádio do Maracanã, com o objetivo de facilitar a mobilidade dos torcedores durante a Copa do Mundo de 2014.”

http://www.estadao.com.br/noticias/geral,governo-do-rj-quer-demolir-predio-perto-do-maracana,949303,0.htm

Estou indignada com a atitude do governo. Um prédio histórico como esse, ir abaixo por causa de um evento!!

    otoniel

    o que poderemos fazer contra isso é mobilizar a população, principalmente do Rio de |Janeiro.
    pouco ou nada vai adiantar a nossa indignação, sem ação.

Urbano

São muitos ministérios para muito pouco resultado, pois no Brasil o que está havendo de trabalho escravo e extermínio étnico é de uma indecência, de uma canalhice monstruosa.

Bonifa

Os indios guaranis tiveram a infelicidade de viverem justamente no centro do território onde se gestaram as grandes bandeiras e outras incursões que tinham como meio de vida principal caçar índios para o trabalho escravo. Ironicamente, desde a Lei de Terras do Império quando foram reconhecidos como donos legítimos do lugar onde viviam, muitos de seus descendentes restaram aldeados como cidadãos de segunda classe e foram chamados “caiçaras”. Influiram decisivamente, etnicamente e culturalmente, na miscigenação que deu origem aos “caipiras”, habitantes livres destas mesmas regiões. Algumas aldeias restaram irredentas e selvagens por toda a região do sul e do sul do sudeste do Brasil, mas até as primeiras décadas do século vinte eram considerados não humanos e sofriam com a caça de extermínio promovida ainda livremente na Velha República por bugreiros profissionais. Esta situação era denunciada em Santa Catarina pelos colonos de origem germânica em jornais na língua alemã, desde que não se podia falar livremente sobre isso em português. Caiçaras estão na origem de diversas revoltas reprimidas a ferro e fogo pelo governo na região, a exemplo de Canudos, no Norte. É uma saga fantástica de resistência pela sobrevivência, a dos maravilhosos Guaranis. Dentro do território tomado pelo mais atroz inimigo, ainda hoje resistem e esperam por um novo tempo político que lhes devolva algo do que perderam. Muitos agora anunciam que este tempo chegou, mas ainda não têm coragem política de abraçar os Guaranis, para lhes pedir perdão de joelhos e lhes devolver o máximo que possam de suas terras e de sua dignidade material, já que a espirirual, esta jamais perderam.

Luc

dia 24
Bob Fernandes / Suicídio Kaiowá/Guarani: motivos, e reações
http://www.youtube.com/watch?v=5Da9dU17NFg

dia 22
Bob Fernandes/ 863 índios se suicidam… e quase ninguém viu
http://www.youtube.com/watch?v=NlPEZ3qKp1s

Fernando

Os guaranis precisam se defender aos moldes dos índios zapatistas de Chiapas.

Mariana Boujikian: “O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dos guarani” | Mesa do Futepoca | Scoop.it

[…] Uma causa de todos, defende a estudante da USP…  […]

    priscila maria presotto

    Não caro Fernando ,quem tem agora que defender os guaranis é o ESTADO ,se possível longe do mal caratismo de Gilmar Dantas Mendes …

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