Marco Akerman e Samuel Moyses: Libelo contra o uso inadequado da palavra ideologia

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Fotos: Alan Santos/PR, Lula Marques/Agência PT, Marcelo Camargo/Agência Brasil

por Marco Akerman e  Samuel J. Moysés, especial para o Viomundo

Aquele que pode ser chamado de VemTROUBLE e um dos representantes da “ala ideológica” do governo se foi, mas o uso do termo “ideológico” permanece na imprensa e adjacências para especular quem irá substituir o Ministro da (des) Educação.

— Será um ‘olavista’ ou algum técnico que possa fazer pontes com o Congresso e a sociedade? — vocalizam os comentaristas políticos de ocasião, contrapondo ideologia e técnica.

Na economia e nas relações exteriores contrapõem-se o “pragmatismo” ao “ideológico”.

Além de Guedes, a ministra Teresa Cristina da Agricultura seria uma técnica pragmática, pois entende que a China, apesar de não ser uma democracia e não defender os direitos humanos, é o nosso principal parceiro comercial.

Já Ernesto Araújo é um “ideológico” [1]:

O chanceler Ernesto Araújo postou em plena madrugada um texto em suas redes sociais. Não se trata de uma orientação para lutar contra a pior crise sanitária em quase cem anos. Nem um plano sobre como conseguir respiradores, testes ou máscaras. Tampouco se trata de uma estratégia para costurar novas alianças para garantir a recuperação da economia. Trata-se de algo muito mais relevante aparentemente: um alerta sobre a necessidade de que se combata o comunismo que, segundo ele, vai se aproveitar do momento de crise e de apelos por solidariedade para implementar sua ideologia por meio do fortalecimento de entidades internacionais, como a OMS…

Surpreenderíamos os leitores, se lhes disséssemos que os autores do presente artigo portam um conjunto de ideias e que se posicionam em relação a vários temas da vida social, política, cultural, econômica, ambiental, dentre outros, portanto, são ideológicos?

Calma! Não somos “olavistas”, nem cremos que a terra seja plana, pois não pretendemos inverter a realidade com ideias obscuras.

Porém, não estamos destituídos de uma ideologia, e não achamos que isso nos impeça de sermos cientistas e/ou técnicos, quando fazemos pesquisas ou ministramos aulas [2].

E já adiantamos, de uma vez, ao pessoal da “escola sem partido” que o fato de se ter uma ideologia não significa que queremos doutrinar nossos estudantes.

Antes de tudo, por estarmos em universidades, acreditamos e apostamos na pluralidade de ideias, para o bem da produção do conhecimento e de uma educação aberta e contemporânea.

Claro, sem dar guarida a revisionismos históricos que contrapõe política e verdade [3], buscando dar sustentação a governos autoritários com alegações que o holocausto não existiu, que o nazismo é de esquerda, ou que não houve golpe no Brasil em 1964.

Essas são ideias obscurantistas, negacionistas da História e da ciência historiográfica.

Não praticamos o simpático e midiático “dois-ladismos” que alimenta falsas polêmicas e uma polarização inócua para confundir a gestão do conhecimento.

Na década de 1980, a Editora Brasiliense foi bastante influente com sua coleção Primeiros Passos: “O que é…”.

E tivemos a enriquecedora oportunidade de ler “O que é ideologia” de Marilene Chauí [4]. E então lemos:

O termo ideologia aparece pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt de Tracy, Eléments d’ldéologie (Elementos de Ideologia). Juntamente com o médico Cabanis, com De Gérando e Volney, DeStutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Elabora uma teoria sobre as faculdades sensíveis, responsáveis pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória).

E, nesse sentido, é quase como se a ideologia fosse produzida por uma glândula do nosso corpo ou então um traço genético, como tem sido discutido na literatura [5].

Porém, em sua primeira aparição moderna a ideologia ainda é algo atemporal e sem contexto. Mas sem neutralidade, pois os ideólogos franceses se consideravam “antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos”.

Foi Napoleão quem trouxe à baila a noção da ideologia e dos ideólogos como algo pejorativo, ao dizer em um discurso ao Conselho de Estado, em 1812 [4]:

“Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história”.

Ainda em Chauí,

“… o curioso, como veremos adiante, é que se a acusação de Bonaparte é infundada com relação aos ideólogos franceses, não o seria se se dirigisse aos ideólogos alemães, criticados por Marx. Ou seja, Marx conservará o significado napoleônico do termo: o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as ideias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de ideias condenadas a desconhecer sua relação real com o real”.

Aí, talvez, a crítica de Marx alcance Olavo, pois o último insiste em “inverter as relações entre as ideias e o real”, de acordo com seus interesses venais e megalomaníacos.

Ele (mal) traduziu a obra de Schopenhauer [6], “38 Estratégias para vencer qualquer debate: a arte de ter razão”, e passou a utilizar todas essas estratégias para tentar se impor como um novo Gramsci de sinal trocado; trava uma guerra cultural privada, de estilo fescenino, com seguidores incultos e incautos.

Nesse sentido, a imprensa está correta em denominar a ala liderada por esse senhor como “ideológica”, no sentido napoleônico de ser um grupo de “tenebrosa metafísica” – se é que se possa, a esta ala, atribuir qualquer importância transcendente.

Conforme foi assumido antes, os autores desse artigo, que certamente não fazem parte da ala ideológica e tenebrosa do governo Bolsonaro, também professam uma ideologia e não têm acanhamento de assumir posições abertas ao debate público – porque são objeto de disputas e narrativas.

O que se propor então para que não se faça mais o uso espúrio da palavra ideologia?

Conforme se viu, com Chauí, o conceito adquire diferentes contornos e definições na dependência de tempo e lugar.

Havia uma compreensão na França napoleônica, outra na Alemanha sob o olhar crítico de Marx [7,8].

Outro pensador que criticou os usos e abusos do uso de ideologia foi Michel Foucault [9].

Contemporaneamente, Byung-Chul Han tem denunciado com veemência a ideologia que nos joga no precipício da sociedade da exaustão, especialmente no contexto da Covid-19 [10].

No pós-IIª Grande Guerra, a redução simplificadora da guerra fria parecia tornar tudo mais claro, com dois grandes blocos históricos que definiam todas as inteligibilidades, no plano da estrutura e da superestrutura: sociedades capitalistas e sociedades socialistas.

Herdeiros ideológicos do espectro político vigente no auge da Revolução Francesa, quando os moderados girondinos ocupavam o lado direito da Assembleia Nacional Constituinte, enquanto os radicais jacobinos ocupavam o lado esquerdo, esses dois blocos assumiram a designação “direita-esquerda”.

O que escapasse disso era relegado à periferia dos “não alinhados”, ou Terceiro Mundo.

Classicamente, foi possível também conceituar ideologias políticas, que são conjuntos de ideias éticas sobre como um país deve ser administrado; e ideologias epistemológicas, que são conjuntos de ideias sobre a filosofia, o universo e como as pessoas devem tomar decisões na vida [11].

É preciso compreender, também, que elas não se expressam como formas puras, separadas.

Para ilustrar as possibilidades de enviesamento, de modo inicial e não exaustivo, pode-se identificar com maior clareza ao longo do tempo formas mais despóticas/totalitárias e formas mais libertárias, configurando conjuntos subjacentes de valores, mitos, ideias, atitudes, crenças e doutrinas que moldam a abordagem comportamental das pessoas dentro de configurações sociopolíticas presentes em cada época: feudalismo, colonialismo, anarquismo, distributismo, conservadorismo, (neo)liberalismo, ambientalismo, socialismo/comunismo, (neo)fascismo/nazismo, feminismo, ou políticas de identidade.

Contemporaneamente, há quem possa assumir que serão tantas as ideologias (ou grupos de interesse) quantas forem as visões, tendências e compreensões em um mundo cada vez mais fragmentado.

Microvisões, microideologias, tais como se observa na extrema-direita estadunidense: ku klux klan, supremacistas e nacionalistas brancos, neonazistas, neoconfederados, direita alternativa (Alt-right) e movimento “boogaloo” são só alguns exemplos.

Por outro lado, é comum se admitir que, para além da análise simplista de esquerda-direita, podem ser distinguidos nos EUA o liberalismo, o conservadorismo, o libertarianismo e o populismo [12].

Infelizmente para nossa democracia, o Brasil no atual arranjo político-governamental se converteu em reles satélite orbitando de modo subalterno sob os comandos imperiais da matriz estadunidense: assim, confirma a lógica patriarcal geopolítica da “criadagem” periférica.

É contra esse estado de coisas que professores, pesquisadores (mas não só esses), ou seja, cidadãos habituados a trabalhar com a ética, com a técnica, com os debates de filosofa da ciência e com os enquadramentos epistemológicos devem se posicionar, expressar oposição e mostrar argumentos que nos permitam avançar para a sociedade que podemos ser, uma sociedade do respeito a diversidade em que todas as vidas têm valor.

Contra a necropolítica, contra o genocídio, o etnocídio e o epistemicídio [13].

Eis nosso libelo contra o uso espúrio de ideologia!

*Marco Akerman é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP/USP) e Samuel J. Moysés, da PUC e da Universidade Federal do Paraná (PUCPR/UFPR)

Referências:

[1] Chade J. Pandemia: ministro denuncia “plano comunista”, cita China e questiona OMS: Portal UOL; 2020. Acesso: 22.04.2020. disponível aqui.

[2] Freeden M. Ideology and political theory. Journal of Political Ideologies. 2006;11(1):3-22.

[3] Arendt H. Truth and Politics (Originally published in The New Yorker). New York February 25, 1967.

[4] Chaui M. O que é ideologia (18ª ed.). São Paulo: Brasiliense; 1985.

[5]. Smith K, Alford JR, Hatemi PK, Eaves LJ, Funk C, Hibbing JR. Biology, Ideology, and Epistemology: How Do We Know Political Attitudes Are Inherited and Why Should We Care? American Journal of Political Science. 2012;56(1):17-33.

[6] Schopenhauer A. Como vencer um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas: (dialética erística) – Arthur Schopenhauer; introdução, notas e comentários por Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks; 1997. 258 p.

[7] Smith DE. Ideology, Science and Social Relations:A Reinterpretation of Marx’s Epistemology. European Journal of Social Theory. 2004;7(4):445-62.

[8] Marx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.

[9] Howarth D. An Archaeology of Political Discourse? Evaluating Michel Foucault’s Explanation and Critique of Ideology. Political Studies. 2002;50(1):117-35.

[10] Sigüenza C, Rebollo E. Byung-Chul Han: Covid-19 has reduced us to a “society of survival”; 2020. Acesso: 23.06.2020. disponível aqui.

[11] Morris M. Knowledge and Ideology: The Epistemology of Social and Political Critique. Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press; 2019. 314 p.

[12] Gibson T, Hare C. Moral Epistemology and Ideological Conflict in American Political Behavior*. Social Science Quarterly. 2016;97(5):1157-73.

[13] Moraes A, Jr. WF. Entrevista com o Juarez Xavier: Jornalistas Livres; 2019. Acesso: 23.06.2020. disponível aqui.

 


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