Marcelo Zero: A doença é o neoliberalismo; sem combatê-lo, não se derrotará o coronavírus

Tempo de leitura: 4 min

A Doença é o Neoliberalismo

Por Marcelo Zero*

Segundo a Bloomberg, se o atual ritmo de vacinação, lento e desigual, permanecer, o mundo demorará cerca de sete anos para obter imunidade coletiva contra o coronavírus.

Nesse ínterim, surgiriam, é claro, novas variantes resistentes às atuais vacinas. Imunidade que tarda não é imunidade.

Obviamente, isso não é aceitável.

O conhecimento científico para controlar a pandemia já existe.

Há cerca de 10 vacinas, algumas já disponíveis e outras em fase avançada de testes, bastante eficientes para conferir imunidade.

Além disso, estão sendo desenvolvidos também medicamentos para mitigar os efeitos do vírus nos doentes.

Qual é o problema, então?

O problema essencial está na apropriação desse conhecimento por grandes companhias farmacêuticas mundiais.

Essas grandes companhias oligopolizam a produção de vacinas e, ante a alta demanda, praticam preços abusivos que inviabilizam a massificação real de um produto que poderia estar salvando a vida milhares de pessoas a cada dia.

Na defesa dessa situação inaceitável, estão os dogmas neoliberais.

Dizem, em primeiro lugar, que sem o investimento privado dessas grandes companhias, as vacinas não existiriam. Mentira.

Todas essas vacinas foram desenvolvidas basicamente com fundos públicos, através de subsídios ou grandes compras antecipadas feitas por governos de países mais abonados.

Tais companhias se apropriaram desses recursos públicos e, agora, praticam o preço que querem.

Elas chegam até mesmo a desrespeitar contratos, como a Astra Zeneca fez com a União Europeia, ao encontrar compradores dispostos a pagar preço mais elevado.

Na realidade, o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico é feito essencialmente com recursos públicos, que são injetados majoritariamente na chamada pesquisa básica.

Mesmo em países muito liberais economicamente, como os EUA, a maior parte das pesquisas, inclusive das aplicadas, é financiada por recursos públicos, através do Departamento de Defesa e da Nasa, entre outras instituições.

No entanto, mediante patentes, empresas privadas se apropriam desse conhecimento e cobram caro para levá-lo à população que o financiou. Essa apropriação é inaceitável, especialmente numa emergência mundial.

Por isso, a Índia e a África do Sul propuseram, na OMC, a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas, no âmbito do TRIPS, pelo período em que durar a atual pandemia, reivindicação que não foi apoiada pelo Brasil.

Na realidade, o ideal é que produtos médicos essenciais à saúde pública não fossem passíveis de patenteamento, como previam várias leis nacionais de propriedade intelectual prévias ao TRIPS, que foi um acordo proposto (e imposto) pelos EUA e pela UE, no contexto da OMC, para beneficiar suas grandes companhias farmacêuticas.

A antiga lei de patentes da Índia, por exemplo, proibia o patenteamento de medicamentos e vacinas. Foi essa lei, aliás, que permitiu o desenvolvimento de uma poderosa indústria de produção de medicamentos naquele país.

Antes do predomínio do paradigma neoliberal e do TRIPS, algumas epidemias foram enfrentadas exitosamente, com ausência de patentes.

Foi o caso da poliomielite. O inventor da primeira vacina, Dr. Jonas Salk, fez questão de tornar seu invento público, de forma a baratear o seu custo de produção e permitir que todos os países pudessem produzi-lo.

O fato é que, se não houver quebra de patentes das vacinas e sua consequente massificação e barateamento, o mundo não conseguirá enfrentar a pandemia.

Mas o neoliberalismo se choca contra o interesse público não apenas na questão das vacinas e dos medicamentos.

No Brasil, por exemplo, as políticas neoliberais de austeridade tendem a impedir políticas sociais destinadas a aliviar o sofrimento dos mais pobres e possibilitar que eles possam praticar o isolamento social.

Prefere-se atender os interesses do “mercado” e dos rentistas, em detrimento das vidas dos que são obrigados a trabalhar sem quaisquer proteções.

Para aprovar um auxílio emergencial raquítico, impõem a chantagem de se retirar dinheiro da saúde e da educação.

Impõem, desse modo, a “escolha de Sofia” de optar por morrer de fome ou pelo vírus.

Essa opção preferencial pelos ricos explica também por que tanto o negacionista e inepto governo federal quanto muitos governos estaduais e municipais evitam tomar medidas para impor o isolamento social, única maneira de controlar a pandemia, enquanto a vacina não é massificada.

Rendem-se aos interesses de indústria e comércio, em detrimento da vida da população.

Muitas vezes, só decretam lockdown, quando o caos sanitário já está instalado. Por isso, o Brasil é o país pior avaliado, no combate à pandemia.

Segundo a OMS, o número de casos semanais de Covid-19 a nível mundial caiu 11%, na última semana de avaliação, marcando a sexta semana consecutiva de quedas, enquanto as mortes caíram 20%.

No Brasil, contudo, o descalabro só aumenta. Somos o patinho feio da pandemia. Um Frankenstein sanitário.

É interessante notar que, nos países nos quais o interesse público e a vida da população têm prioridade, em relação aos interesses privados, a pandemia é bem controlada. É caso, por exemplo, da China, do Vietnã, de Cuba, da Nova Zelândia etc.

E são também, em geral, países que sofrem menos danos econômicos com a pandemia.

A China graças, em boa parte, ao controle efetivo da pandemia, cresceu 2 %, no ano passado. Uma façanha, quando se leva em consideração que os EUA tiveram queda de 3,6% do PIB e que a UE apresentou redução de 7,4%. Para este ano, prevê-se que a China crescerá 7,9%.

Assim sendo, a grande doença mundial de hoje é o neoliberalismo e sua irracionalidade intrínseca, fruto da alienação do interesse público, popular e estratégico em suas políticas, bem como a desigualdade que inexoravelmente produz.

A pandemia apenas desnudou e aprofundou a incompatibilidade última desse modelo com a vida da maioria da população.

Portanto, a vida precisa ser defendida, ao mesmo tempo, contra o coronavírus e o neoliberalismo.

Para o primeiro, já temos o conhecimento científico necessário. Para o segundo, bastam decisões políticas corretas.

Tudo está ao nosso alcance.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.


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Zé Maria

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.
”Quando não souberes para onde ir,
olha para trás e saibas, pelo menos,
de onde tu vieste”
Provérbio Africano
.
LIVRO: (https://bamboletras.com.br/meia-siza.html)
“Meia Siza – Ignácia e Aramis: Mãe e Filho na Luta pela Sobrevivência no pós-Abolição”
De: Marieta dos Santos da Silveira
Editora: Pradense
.
“Memória afetiva, memória operária, memória de negros enfrentando preconceito
e dificuldades de toda ordem, [“Meia Siza”] descreve suas ambições, sonhos, expectativas, conquistas, perdas, construções, organizações.”

Por Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo

Ando emotivo.
Enchi os olhos de água mais de uma vez ao ler “Meia Siza – Ignácia e Aramis:
mãe e filho na luta pela sobrevivência no pós-abolição” (Pradense),
de Marieta dos Santos da Silveira.
Meia siza era o imposto cobrado na venda de escravos. (*)
Marieta conta a história do pai e da avó, descendentes de Aldina, vendida
por um conto e duzentos mil réis, aos 21 anos de idade, em 1870, pelo farroupilha
João Antônio da Silveira a Juvencio Josino do Rego Rangel.
Do primeiro dono, Aldina recebeu o sobrenome Silveira, que transmitiu aos seus.

O livro narra com simplicidade e espontaneidade a luta de Ignácia, filha de Aldina,
pela sobrevivência e pela dignidade.
Detalha a vida de Aramis em busca de um lugar social, de emprego com carteira
assinada, da casa própria e da criação dos filhos sem ter, como era comum acontecer,
de “dá-los” a algum branco que os adotasse em troca dos “servicinhos” que poderiam
prestar.
Aramis trabalharia 38 anos na termoelétrica Usina do Gasômetro [às Margens do Rio Guaíba, em Porto Alegre-RS], compraria, com financiamento, a sua casa
em Teresópolis [Bairro da Zona Sul Capital Gaúcha], onde teria horta, pomar e galinhas,
ficaria viúvo duas vezes – casaria três – e educaria com esmero os seus seis filhos.

Os combates contra a exploração no mundo do trabalho o levariam a admirar
Getúlio Vargas e a guardar recortes de jornal, inclusive do Correio do Povo,
sobre o líder trabalhista que instituiu a CLT.

Memória afetiva, memória operária, memória de negros enfrentando preconceito
e dificuldades de toda ordem, descreve suas ambições, sonhos, expectativas,
conquistas, perdas, construções, organizações, como a “União dos Homens de Cor”,
festas, crenças e apostas.
Destaca-se um forte sistema informal de solidariedade:
“Quando a tua mãe morreu, a Vó Ignácia chorava e dizia: ‘o Aramis não tem sorte, nasceu pra criar os filhos sozinho’…”.
Aramis, porém, não desistia.
Uns abriam caminho para os outros.
As personagens contam, como Dulcemira, o que fizeram:
“Fui trabalhar na Fábrica Formosa por indicação da tua mãe,
eu fui pra pregar botão e intermeio”.
Orgulham-se dos trabalhos.

Aramis conquistou a sua rotina:
“Sair cedo para o trabalho, vir almoçar em casa, fazer sesta de 10 minutos,
voltar para a usina, era o seu cotidiano.
Às 19 horas estava de volta, tomava um aperitivo, Underberg, ia ouvir rádio (…)
A única noite em que ele saía era para os compromissos de reunião do sindicato
ou das eleições da categoria”.
Chegou a ter um Ford Anglia 49 e uma lambreta.
Aramis teve uma espécie de diário. Anotava, sem muita frequência, doenças,
deslocamentos, falecimentos, projetos.

“Meia Siza” é um documento sobre homens e mulheres negros, pais e filhos,
num tempo de racismo escancarado.

Marieta dos Santos da Silveira nasceu em Porto Alegre, professora aposentada
da rede estadual, formada em Letras, atuante no Movimento Negro.

Fecho o livro dela, reabro, releio esta frase emocionante do altivo Aramis:
“Eu nunca dei um filho meu, criei todos com ajuda da mamãe”.

A vida era luta, fibra, orgulho e perseverança.
Família e amigo constituem uma rede de amparo e estímulo.
Bravo!

*(https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2699-28-novembro-1860-556854-publicacaooriginal-77023-pe.html)

https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/mem%C3%B3ria-afetiva-1.577104

Zé Maria

.
Notícias do Cotidiano do Brasil [nem tão] Profundo
.
BRADESCO é Condenado por pressionar Caixa do Banco
a ‘trocar’ Atestado Médico e voltar logo ao Trabalho

O Bancário retornou às Atividades Laborais,
apresentou Atestado Médico com Menos Dias [SIC]
e trabalhou com Infecção Grave de Garganta [SIC]

25/02/21 – A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho [TST] condenou
o Banco Bradesco S.A. a pagar indenização de R$ 5 mil [sic] a um empregado
que foi pressionado a trocar um atestado médico de cinco dias por outro
de período menor e ameaçado de demissão se não retornasse ao trabalho.

“Diante de tal ameaça, não há dúvidas de o empregado ter se sentido
constrangido”, afirmou o relator do recurso, ministro Augusto César.

Admitido em 2011 como escriturário da agência do Bradesco em Pires do Rio (GO),
o empregado foi promovido a caixa em 2011 e dispensado em 2012.
Na reclamação, ele disse que, depois de entregar ao seu gerente administrativo
o atestado médico de cinco dias, em razão de uma infecção grave de garganta,
o gerente regional visitou a agência e determinou que retornasse imediatamente
ao trabalho, sob pena de ser demitido, e que trocasse o atestado por outro
de período menor.
Em decorrência da pressão psicológica, ele fez o que foi determinado e trabalhou
doente.
As informações foram confirmadas por testemunhas.

No exame do recurso de revista do bancário, o ministro Augusto César destacou que
não há controvérsia a respeito da ameaça de dispensa e da pressão sofridas, que
resultaram na troca do atestado e no retorno ao trabalho antes do determinado pelo
médico.
“Não é razoável concluir que obrigar que um empregado troque o atestado médico
e trabalhe doente resulte em lesão de pequena repercussão”, afirmou.

Na avaliação do relator, a indenização por danos morais não tem como único objetivo
compensar o dano moral sofrido pelo trabalhador, mas também servir como uma
“razoável carga pedagógica” [sic], a fim de inibir a reiteração de atos do empregador
que afrontem a dignidade humana.

A decisão foi unânime.

Processo: RR-423-22.2013.5.18.0181

http://www.tst.jus.br/web/guest/-/banco-%C3%A9-condenado-por-pressionar-caixa-a-trocar-atestado-atestado-e-voltar-ao-trabalho

Zé Maria

.
.
CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (CLT)
[Estatuída pelo Decreto-Lei nº 5452/1943]

TÍTULO I

INTRODUÇÃO
[…]
Art. 2º – Considera-se EMPREGADOR* a empresa, individual ou coletiva, que, ASSUMINDO OS RISCOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA, admite, assalaria
e dirige a prestação pessoal de serviço.

§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas
ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados**.
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm)
.
Os Neoliberais são Capitalistas que tentam maquiar com eufemismos
– tipo Empreendedor* e Colaborador** – as Obrigações Sociais, inclusive
Trabalhistas, para, disfarçando as Relações de Emprego, eximirem-se
dos Riscos Inerentes ao Empreendimento (Aplicação do Capital), com
o Objetivo de se apropriarem dos Lucros sem ônus algum.
O Prejuízo, aliás, é atribuído ao Estado [Impostos, Normas, etc] – que
nessa hora deixa de ser Mínimo e passa a ser Máximo para socorrer
a Incompetência Empresarial com Isenções e Privilégios Fiscais – ou
ao Empregado a quem é Imputada Culpa por Demérito no Trabalho
(Ineficiência) – daí o termo “Produtividade” ser corriqueiro na Mídia.
.
.

    Zé Maria

    Inclusive, em tempos anteriores à Fase do Neoliberalismo,
    o “Risco do Negócio” era a Justificativa para o Lucro.
    Atualmente, os ‘Empreendedores’ já não falam em Risco
    da Atividade Econômica, uma vez que, pela Promoção
    contínua, durante Décadas, da Propaganda nas Empresas
    de Comunicação, o Lucro passou a ser uma Conseqüência
    ‘Obrigatória’, mesmo que à custa do Estado e/ou da
    Exploração do Trabalho Alheio.
    Na Visão [ou Cegueira] Neoliberal, é preciso suprimir o
    Patrocínio do Estado aos Direitos Sociais [CF, Art. 6º]*,
    privatizá-los, se derem Lucro, ou sonegá-los, se não.

    [*] Constituição Federal de 1988
    Título II
    Dos Direitos e Garantias Fundamentais
    Capítulo II
    Dos Direitos Sociais

    Art. 6º São Direitos Sociais a Educação, a Saúde, a Alimentação, o Trabalho, a Moradia,
    o Transporte, o Lazer, a Segurança, a Previdência Social, a Proteção à Maternidade e
    à Infância, a Assistência aos Desamparados, na forma desta Constituição.

    (https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_15.12.2016/art_6_.asp)
    .
    .

Darcy Brasil Rodrigues da Silva

Os sociaisdemocratas, como Marco Zero, tentam opor doutrinas econômicas entre si, em lugar de confrontar sistemas sociais. O problema não é “o neoliberalismo”, doutrina econômica que corresponde à atual fase de desenvolvimento do capitalismo e aos interesses da plutocracia financeira, classe social apátrida dominante ; o ” problema” é o capitalismo em si, que precisa ser substituído por um outro sistema social, com o derrubamento e expropriação do poder e dos bens da plutocracia financeira. Colocar as coisas como faz Marcos Zero é mercadejar a ilusão de que a disputa é doutinal, de convencimento eleitoral, um embate entre o racionalismo, ou seja, medidas derivadas do keynesianismo, contra a suposta irracionalidade neoliberal. As empresas farmacêuticas não existem mais como ramos industrias particulares, mas como parte de um gigantesco complexo produtivo controlado pelo capital financeiro, detentor de suas ações. Por isso, enquanto não houver a substituição do capitalismo financeiro dominante por outro sistema social, em que a plutocracia financeira deixaria de existir, cada medida racional, como a vacinação e a extinção das patentes sobre as vacinas, terá que ser conquistada através da luta, da pressão organizada da sociedade. Não há como ser de outra maneira, quando se trata de contrariar os interesses não apenas de um ramo industrial qualquer, como o farmacêutico, mas os interesses da plutocracia financeira, que controla praticamente toda produção industrial, a circulação de mercadorias, o mercado financeiro, os aparatos militares e policiais, os meios de comunicação de massa, etc. Pensar como Marco Zero é acreditar que é possível fazer o capitalismo funcionar racionalmente, submetendo-o a um receituário keynesiano. Ocorre que esse raciocínio substima o fato de que à plutocracia financeira, classe social dominante, não interessará jamais essa substituição, pois o modelo neoliberal é a expressão de seus interesses de classe.

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