Julian Rodrigues: Gozo coletivo por execução de Lázaro, retrato do nosso mergulho na barbárie fascista e falência das polícias

Tempo de leitura: 4 min

O triste espetáculo catártico: a execução de Lázaro

O gozo coletivo expressa nosso mergulho na barbárie fascista e a falência das polícias

Por Julian Rodrigues, especial para o Viomundo

O país respirou bem fundo (aliviadíssimo). Foi um orgasmo sensacional, multitudinário.

O presidente da República comemorou em seu twitter: “CPF cancelado”.

Salivando, gritando, pondo pilha, televisões, sites, rádios, programas “jornalísticos” se lambuzaram felizes por 20 dias.

Nada melhor para gerar audiência e cliques que um suposto “serial killer” ainda por cima satanista — fugitivo perigoso, driblando as polícias.

Não. A esquerda não defende bandidos. Nem passa a mão na cabeça de criminosos perigosos.

Lázaro Barbosa era um escroto assassino, uma ameaça à toda sociedade.

Deveria ser encarcerado, julgado e punido. Mas, com direito a defesa e tratamento digno — ele poderia ser doente mental, por exemplo.

A deputada federal goiana Magda Moffato, 72 anos, do PL, havia publicado em suas redes (dia 21 de junho) vídeo, onde aparece em um helicóptero, portando fuzil, em traje militar..

A parlamentar criticara o governador Caiado, que não deu conta, e ameaçava Lázaro, avisando que “ia pegá-lo”.

Caçada, caçada, caçada. Um animal solto.

Até mesmo os veículos mais sóbrios da mídia usaram e abusaram dessa palavra.

Lázaro, mais que um assassino, não passava de um bicho perigoso, uma fera inumana a ser abatida. Nunca foi tratado como gente.

A história toda, afinal, era um prato cheio.

Homicida, estreou sendo preso na Bahia, seu estado natal.

Lázaro cumpria penas e fugia, mas era recapturado.

Em 2018, foi transferido da Papuda, em Brasília, para um presídio no interior de Goiás. Escapou de lá também, pelo teto. Coisa de cinema.

Assassinatos, estupros, sequestros, roubos, troca de tiros com a polícia e fugas.

O pânico disseminado, em máxima escala — a população de Cocalzinho se trancando, fugindo de casa. A mídia babando e ganhando audiência.

O Brasil todo atento, torcendo ansiosamente para que logo se fuzilasse o bandido.

As polícias desmoralizadas (não conseguiam prender o sujeito) radicalizam, então, o espetáculo: mobilizam mais de 300 homens, helicópteros, drones. Milhões de reais gastos para capturar unzinho só.

125 tiros. Claro, a versão da polícia é sempre de que foi um confronto, o cara reagiu.

Na sequência, vídeos mostram o corpo de Lázaro Barbosa sendo arrastado violentamente pelos policiais. Com direito à vigorosa comemoração. Era questão de honra trucidá-lo.

No supermercado, em São Paulo, ouvi, nesse mesmo dia, uma senhora dizendo algo como: “que bom que mataram o desgraçado”. Como se matando Lázaro a gente se libertasse de todo o mal do mundo.

Nossa polícia é tão ruim que nem serve para seguir direito os seriados dos EUA.

Lá, um sujeito como Lázaro seria capturado e preso. Tratado com curiosidade e rigor, mas com dignidade — pena perpétua na maioria dos estados –, ele seria estudado.

Quais circunstâncias contribuíram para essa personalidade?

Quais os critérios, métodos, objetivos?

Qual a visão de mundo, quais as motivações de Lázaro Barbosa?

No mínimo, era um criminoso singularmente inteligente que mereceria alguma atenção.

A pena de morte inexiste no Brasil.

Pelo menos no marco legal, que é a nossa Constituição, já demos esse passo civilizatório.

Não se trata de vingança, e sim de justiça.

Não é “olho por olho, dente por dente”.

Polícia boa é a que investiga e prende, não a que executa a tiros os suspeitos (são milhares de pobres e pretos).

Nossas polícias são as que mais matam em todo o mundo. E, claro, onde os policiais mais morrem também.Está tudo errado em termos de segurança pública.

O bolsonarismo se fez em terreno previamente cultivado.

A maioria do povo está saturada pela ideologia da morte, do pânico, do autoritarismo, da guerra às drogas, da ideia de que “bandido bom é bandido morto”.

Os datenas da vida operam há anos, provocando estrago gigantesco na cabeça das pessoas. São propagadores da barbárie e devem ser detidos.

No Uruguai, Mujica proibiu  esse tipo de programa sensacionalista/policialesco em 2012, quando lançou uma estratégia de promoção da vida e combate à violência.

Destruído Lázaro. Foi um dia feliz para a nação, todavia.

Teve até repórter televisiva fazendo dancinha quando recebeu a notícia. Trucidar Lázaro redimiu a pátria toda. Um perverso e delicioso cheiro de vingança e redenção se espalhou pelo país…

Afinal, um perigoso bandido foi morto pelos tiras bons…E com bastante bala.

O bolsonarismo partiu para a ofensiva nas redes sociais. Não só comemoram a execução sumária de Lázaro, como produzem fake news anti-esquerda, afirmando que lideranças do PT teriam chorado a morte dele.

A história é tão fantástica que é fácil descartar, por exemplo, os indícios de que ele não agia sozinho.

É preciso encerrar a narrativa. Os bonzinhos suaram, mas conseguiram achar e matar o cara. Claro, só foi assim porque ele reagiu (quem acredita nisso?!).

A avalanche midiática somada ao senso comum deixa quase todo campo progressista quieto, recuado. Para não mencionar os que aderem ao senso comum sanguinário achando que vão ganhar votinhos.

Todavia, é preciso resistir à barbárie. Sem medo de remar contra a maré.

Termino, então, com a reflexão da amiga Agnes Franco:

“Os tempos sombrios tiram de nós o que há de pior, é verdade, mas nada que já não estivesse nas pessoas — e emerge.

Esse ódio por Lázaro, vibrar com a chance de ver alguém morto, torturado, diz mais sobre o emissor do que sobre o sujeito em questão. E diz o quão próximo deles e de suas vítimas os observadores estão se tornando. Vocês estão alimentando o lobo errado.

E se você leu isso e acha que estou defendendo criminoso, volte dez casas, porque você não entendeu do que se trata”.

*Julian Rodrigues é jornalista e ativista de direitos humanos.


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Liliana

Faltou você abordar que:
A maioria das reportagens inclusive a sua, que existe laudos de Psiquiatras que ele jamais poderia ser solto, por ser alta periculosidade. Mesmo de posse destas analises, o Juiz liberou ele para um certo convivio em sociedade. Ninguem menciona este Juiz.
Também EUA não é o melhor exemplo de Justiça, dos 50 Estados 30 ainda tem pena de morte, inclusive a capital Washington. Como ativista de direitos humanos como você pode elogiar um Pais, que pode prender talvez com melhores condições de trabalho, mas retrogado por ter pena de morte.

Zé Maria

Entrevista: Simone Schreiber, Desembargadora do TRF2

“Julgamento Justo deve se basear na Verdade Processual, não na Imprensa”

Reportagem: Pedro Rodas, na ConJur

Entre dezembro de 2015 e agosto de 2016, o Jornal Nacional, da TV Globo, dedicou 17 horas ao ex-presidente Lula.
Treze dessas horas foram de noticias consideradas negativas e as outras quatro, de notícias neutras.
O levantamento, do projeto Manchetômetro, da Uerj, foi enviado à ONU pela defesa do ex-presidente.

No semestre seguinte, o Manchetômetro fez outro estudo, agora envolve os jornais impressos.
As pesquisadoras Patrícia Bandeira de Melo e Márcia Rangel Candido analisaram como O Globo, Folha de S.Paulo e Estadão trataram o ex-presidente Lula e o ex-juiz Sergio Moro.

Moro, então à frente da “lava jato”, passara a ser tratado pela imprensa como antagonista de Lula – muito embora o antagonista do réu num processo seja a acusação, e não o juiz.
As pesquisadoras concluíram que, entre janeiro e maio de 2017, 79% das noticias sobre Moro nos jornais foram neutras.
Nos mesmos jornais, 79% das notícias sobre Lula foram contrárias.

São indícios de que os maiores veículos de comunicação do país apoiaram um desfecho específico das acusações que pesam contra Lula.
É o que alguns países chamam de “publicidade opressiva”.
É quando “o veículo começa a divulgar, de maneira sistemática, notícias sempre tendendo para um lado, geralmente pela condenação”, explica a desembargadora Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

A desembargadora é autora do livro A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais, resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2008 sob orientação do ministro Luís Roberto Barroso.
No texto, ela explica que a publicidade opressiva se caracteriza quando o noticiário sobre um processo fica tão ostensivo que a situação dos réus ou investigados fica prejudicada, especialmente em casos que vão a júri.
A campanha midiática torna-se tão agressiva que um julgamento imparcial torna-se impossível.

Na tese, Schreiber procurou definir o fenômeno da maneira mais objetiva possível, para poder sugerir medidas para atenuar os efeitos da publicidade opressiva.
Entre elas, o sequestro dos jurados, a proibição de que os envolvidos no caso falem com jornalistas ou que comentem o processo fora das situações forenses.
Ou, em último caso, proibir que sejam publicadas notícias e reportagens sobre aquele caso.

Mas o que se observa hoje, é um novo capítulo desse fenômeno, analisa a desembargadora.
“A ‘lava jato’ inaugurou um novo patamar de relação de juiz com a imprensa”, afirma, em entrevista à ConJur.
“Ele não é mais aquele ator que se depara com uma situação de publicidade opressiva e passa a se preocupar com isso, que entende que é preciso conduzir o processo apesar da pressão da mídia.”

“O que a imprensa divulga não pode influenciar o desfecho do processo”, sentencia Schreiber.
“O julgamento justo tem que se basear na verdade processual.”

Leia a entrevista:

ConJur — O livro diz que os vários interesses da imprensa podem afastá-la do interesse público. Isso quer dizer que a senhora defende algum tipo de regulamentação da imprensa?
Simone Schreiber — Não. É difícil haver algum tipo de regulamentação que não importe em restrição da liberdade de imprensa. Especialmente neste momento que o Brasil está vivendo, de certa fragilidade institucional na relação entre os poderes. Sei que alguns defendem isso por ver monopólio em alguns setores, mas as mídias sociais quebraram um pouco isso. Nas eleições, por exemplo, Alckmin fez acordo com vários partidos em troca de tempo de TV na campanha achando que aquilo seria determinante, mas ficou patinando. Bolsonaro não tinha muito tempo e acabou vencedor. E aqui no Brasil, dificilmente alguma regulamentação da imprensa passaria pelo crivo do Supremo.

ConJur — O livro distingue a “verdade processual” da “verdade jornalística”. É possível conciliá-las?
Simone Schreiber — O julgamento justo tem que se basear na verdade processual. Na tese, defendi que o juiz tem que tomar algumas medidas de proteção do acusado justamente para que a verdade jornalística, ou seja, aquilo que é noticiado pelos jornais, não influencie de forma indevida o processo.

ConJur — O que é, então, “verdade processual”?
Simone Schreiber — É a verdade que sobressai do processo após a produção das provas dentro do devido processo legal. O juiz tem que se contentar com aquela verdade que surge no processo, porque isso é uma premissa de que houve um processo justo.

ConJur — É possível impedir que a imprensa influencie um julgamento?
Simone Schreiber — O que a imprensa divulga não pode influenciar o desfecho do processo. Agora, como fazer isso? Minha tese de doutorado partiu do pressuposto que o juiz tem uma posição de proteção e que, se ele se deparar com uma situação de publicidade opressiva, deve adotar medidas para proteger o acusado e zelar para que o processo tenha uma condução serena. Então, na minha concepção, o juiz era um ator que zelava pelo processo justo.

ConJur — Era?
Simone Schreiber — A “lava jato” inaugurou um novo patamar de relação de juiz com a imprensa. Ele não é mais aquele ator que se depara com uma situação de publicidade opressiva e passa a se preocupar com isso, que entende que é preciso conduzir o processo apesar da pressão da mídia. Na operação “lava jato”, o juiz Sérgio Moro claramente recorreu à imprensa e à opinião pública.

ConJur — Ele defende isso abertamente, inclusive escreveu isso naquele artigo famoso, de 2005.
Simone Schreiber — Exatamente. Ele diz que precisa ser apoiado numa empreitada de combate à corrupção. Numa palestra de 2016, em São Paulo, ele disse o seguinte: “Eu me disponho a ir até o final nos meus casos, mas esses casos envolvendo graves crimes de corrupção e figuras públicas poderosas só podem ir adiante se contarem com o apoio da opinião pública e da sociedade civil organizada. Esse é o papel dos senhores”.

Ao mesmo tempo em que ele diz que julgará de acordo com a lei, conclama a sociedade a apoiá-lo. E é evidente que o papel da imprensa na condução e no desfecho desses processos foi fundamental em vários momentos. Isso é superinteressante, porque a Polícia Federal e o Ministério Público aprenderam a lidar com as assessorias de imprensa para divulgar seus trabalhos de maneira muito profissional.

ConJur — Tanto o MP quanto a PF alegam que essas entrevistas coletivas são formas de dar transparência à atuação deles, de prestar contas à sociedade. Mas a partir de que ponto isso já não é publicidade opressiva?
Simone Schreiber — Não sei se há resposta exata para isso. Essas operações são sempre muito espetaculosas — então o espetáculo é parte delas. A princípio a investigação é sigilosa, e o sigilo é importante para quem está sendo investigado. A imprensa pode noticiar que foi deflagrada uma operação policial, que foram cumpridos mandados nas casas dos suspeitos, mas acompanhar ao vivo é excessivo. É expor desnecessária e desproporcionalmente essas pessoas, o que não é necessário para o sucesso das investigações.

Isso é muito interessante nesse ambiente de colaboração premiada, também um ingrediente da “lava jato”. A exposição dessas pessoas também é uma forma de pressioná-las a colaborar. Não só a prisão, mas a divulgação de informações privadas, vazamentos de conversas telefônicas constrangedoras e a exposição daquela pessoa são bem importantes para que ela se sinta compelida a assinar o acordo de colaboração. E mesmo que a denúncia seja rejeitada ou a pessoa seja absolvida, já se criou um estigma.

ConJur — Essa divulgação das operações e dos passos da investigação não são também ações de marketing?
Simone Schreiber — Propaganda institucional é uma coisa muito interessante. É uma coisa de ocupação de espaço, de poder de prestígio institucional junto à população. Polícia e MP têm brigas sobre várias questões sensíveis. O MP conseguiu um espaço de poder de investigação que não está na Constituição, mas eles foram fazendo e, em determinado momento, depois que já tinham feito investigações importantes, mesmo sem previsão constitucional ou legal, foram autorizados. Então é uma atuação institucional de obter prestígio junto à sociedade.

ConJur — A senhora comentou uma palestra de Moro. Juízes podem comentar casos em que atuam ou em que atuaram?
Simone Schreiber — Comentar casos que estão em andamento, principalmente aqueles em que você não está no processo, é bem complicado. É justamente essa sensação das partes de que o juiz já tem predisposição a julgar de alguma maneira. As partes têm o direito subjetivo à expectativa de um juiz imparcial, que julgue com independência, com base no que está no processo.

Tem uma entrevista do Bretas ao Valor Econômico em que ele fala sobre o Sérgio Cabral, que eu até separei para falar em sala de aula: “Já estamos investigando transporte, saúde, obras, alimentação e joias. Mas nessa questão das joias existe uma dúvida ainda, eu ainda não decidi a respeito. Se a joia era propina ou ostentação ou se era lavagem de dinheiro. Isso eu tenho que ver com calma”. Com todo respeito ao Bretas, ele se manifestou já dizendo que o Cabral é corrupto. Os juízes passaram a se manifestar sobre casos que estão julgando na imprensa. Não é adequado.

ConJur — A quantidade de prisões preventivas ilegais já virou um problema histórico no Brasil, mas parece que o uso delas como antecipação de pena tem se agravado. Isso decorre dessa publicidade opressiva também em cima dos juízes?
Simone Schreiber — É difícil dizer se a publicidade opressiva influencia juízes a manter as pessoas presas. É engraçado: os juízes que prendem mais sempre partem da premissa de que o juiz mais rigoroso precisa de uma dose extra de coragem. E agora, com essa onda de punitivismo apoiada pela mídia que apareceu com a “lava jato”, o juiz que manda soltar também precisa de uma dose extra de coragem. O que vejo, na verdade, é uma coisa muito ruim, que é o MP acossar a imprensa para atacar juiz que concede liberdade, como aconteceu aqui, até na “lava jato”. E isso fica sendo insuflado pela imprensa, o que é difícil. Todos os juízes devem ser respeitados. Não é correto isso de xingar juiz, vaiar juiz, enfim, qualquer pessoa. Essa coisa do esculacho público. É terrível que as pessoas se sintam à vontade para xingar e constranger as outras. O ministro Gilmar foi submetido a esse constrangimento no avião, um ambiente do qual você não pode nem sair. É uma covardia. É triste.

ConJur — O procurador Deltan Dallagnol é talvez o mais famoso por fazer isso que a senhora comentou: quando vai haver um julgamento, ele vai à imprensa, às redes sociais, e convoca as pessoas a ficar do lado dele, a pressionar o Judiciário. Isso é publicidade opressiva?
Simone Schreiber — Isso é usar a imprensa para pressionar o tribunal. E ele faz isso de maneira muito ostensiva. Como no caso da competência da Justiça Eleitoral para crimes conexos, que o Supremo ia decidir. Ele conclamou a população. Isso não é correto. Mas quando eu falo em publicidade opressiva, falo de quando se cria um ambiente em que uma campanha na mídia passa a defender determinado desfecho no processo. O seu exemplo é ampliar um pouco o tema, mas concordo.

ConJur — Minha questão é: autoridades também cometem publicidade opressiva? Ou só a imprensa?
Simone Schreiber — Não sei o que o Supremo diz sobre isso, mas acredito que considere essa conduta estatal abuso de autoridade, que é um tipo penal que não tem muita descrição do que seja. Não sei se esse caso do Dallagnol chega a caracterizar abuso de autoridade, mas talvez possa ser uma falta funcional para ser apurada pelas corregedorias competentes. Estou sendo cautelosa, porque não tenho certeza se isso pode ser enquadrado em alguma coisa, se falta funcional ou crime. Agora, esse discurso de que o MP precisa da opinião pública porque a Justiça sozinha não vai conseguir fazer a coisa certa tem por trás um entendimento da doutrina norte-americana, de que você tem que estar sujeito a escrutínio público e de que nada pode funcionar se não for num ambiente de liberdade de expressão. O que estamos vendo é até que ponto essas manifestações são legítimas e até que ponto são indevidas por impedirem o Judiciário e as instituições de funcionar como deveriam.

ConJur — Sua tese foi orientada pelo ministro Luís Roberto Barroso, que tem posições controversas sobre a relação entre a “opinião pública” e o Judiciário. Ele defende, por exemplo, que certos entendimentos do Supremo precisam “evoluir” conforme o “sentimento social”.
Simone Schreiber — É muito complicado dizer isso. Quando o juiz invoca esse “sentimento social”, está querendo justificar uma posição que é dele. O juiz, quando traduz o sentimento social, diz o que ele acha que seja esse sentimento. Por que o que ele entende como correto é o que refle o “sentimento social”? E ainda que seja, ainda que as pessoas tenham o sentimento de que políticos têm que ser punidos, a Justiça tem que se guiar pela opinião da população ou pelas normas constitucionais? O ministro Barroso sempre afirmou que a Justiça é o espaço contra majoritário, de defesa dos direitos das minorias. Acho que quando ele se tornou ministro, acabou revendo algumas posições.

Essa discussão de o “sentimento social” guiar decisões já foi travada algumas vezes. O ministro Celso de Mello, por exemplo, diz que não importa o que acha a população, o Supremo tem que decidir conforme as normas constitucionais e assegurar direitos independentemente do que a opinião pública entenda.

A sociedade precisa ser confrontada com o seguinte: vale a pena viver num Estado Democrático de Direito em que há uma Constituição que deve ser respeitada? Se você deseja isso para você, a Justiça tem que funcionar dessa forma. Nem sempre as decisões judiciais vão atender às expectativas da sociedade e é difícil explicar que aquela pessoa que saiu estampada na capa dos jornais como corrupta é inocente, que existe uma coisa chamada devido processo, com direito de defesa. Concordo com Barroso quando ele critica a demora do Judiciário. Ele traz vários exemplos de casos sem solução que demoram 10, 20 anos. A gente tem que ter o compromisso com a celeridade e eficiência, mas não pode transigir com o respeito às garantias fundamentais. É difícil.

ConJur — O ministro Fux diz que em casos de conflitos entre pessoas, de fato, a opinião pública não importa. Mas em casos que envolvem questões sociais, é preciso saber o que as pessoas pensam. Existe mesmo essa distinção entre casos em que a opinião pública importa e casos em que não importa?
Simone Schreiber — Existem no Supremo várias formas de a sociedade intervir nos processos, como a figura do amicus curiae ou as audiências públicas, nesses casos que de fato interessam à sociedade de forma geral, como criminalização da homofobia, descriminalização do aborto, casamento homoafetivo, drogas, questões mais relacionadas a teses. Mas será que alguém fez um teste para saber o que a opinião pública pensa desses casos de execução penal? O MP quando estava defendendo aquelas dez medidas botava uma pessoa em cada esquina da cidade perguntando “você é contra a corrupção? Então assina aqui”. Eu passei por uma dessas. E aí juntaram zilhões de assinaturas de pessoas que não sabiam exatamente o que se estava defendendo ali. Só sabiam que era contra a corrupção.

ConJur — Um trecho da sua tese diz que há casos em que a proibição de publicar notícias é válida. Que casos seriam esses?
Simone Schreiber — O que digo é que, depois de identificada uma situação de publicidade opressiva, há medidas que o juiz pode tomar para proteger o acusado dessa situação. Sugiro diversas medidas que não interferem na liberdade de expressão, como adiar o julgamento, sequestrar os jurados, como acontece às vezes nos Estados Unidos — também temos, mas aqui é desde o início do julgamento. E aí se essas medidas não tiverem efeito, aí se partiria para medidas que restringem a liberdade de expressão. Começo das menos restritivas, como proibir de dar entrevista, decretação de sigilo do processo (seria constitucionalmente, porque temos a garantia do sigilo da fonte). A última medida seria proibir a veiculação de reportagens sobre o assunto durante determinado período. Seria de fato uma medida com caráter de censura.

ConJur — Isso passaria no Supremo?
Simone Schreiber — Não sei, porque o Supremo está numa tendência de privilegiar sempre a liberdade de expressão. É uma medida muito questionável do ponto de vista constitucional, porque a censura é proibida, mas estaria amparada numa situação em que seria a única medida possível naquele caso de proteger um direito que se revelaria mais importante que a liberdade de expressão.

Basicamente, o que eu descobri é que se dá mais importância à liberdade de expressão porque ela não tem uma expressão só individual, mas uma instrumental em relação à democracia. Para a democracia funcionar, precisa ter liberdade de expressão. Mas o direito a um julgamento justo também é um direito fundamental em uma democracia. Essa foi a tese que eu defendi. Então, em situações limite seria possível, dentro da Constituição, limitar a publicação de reportagens.

ConJur — Quando proibiu um site de divulgar informações sobre o inquérito das fake News, o ministro Alexandre de Moraes disse que a publicação havia veiculado “notícia falsa”. Mas depois se descobriu que, de fato, havia uma delação premiada que mencionava o trecho que incomodou os ministros. Como conciliar isso? Como definir o que é “notícia falsa” do que não é?
Simone Shcreiber — O Supremo já disse que o conteúdo dessas delações tem valor reduzido até que seja corroborado por outros elementos. Portanto, a fala do delator não tem valor por si, ela não pode servir para decretar prisão, para condenar, nada. O MP, quando tem acesso a uma declaração dessas, deve exigir que a pessoa traga elementos de corroboração, afinal, está incriminando alguém. Quando vazam isso para a imprensa, causam um grande mal à pessoa que está sendo acusada. O Supremo deveria criar uma proteção em relação a essas divulgações indevidas. A pessoa que é apontada pelo colaborador tem o direito de ser preservada, de ter sua imagem preservada.

ConJur — Mas o que fazer se é o MP quem vaza para a imprensa?
Simone Schreiber — Aí é o problema do sigilo da fonte. Quando estava fazendo minha tese me deparei com um caso definido por um tribunal nos EUA em que foi permitido se abrisse o sigilo da fonte. O sigilo da fonte é um direito fundamental que integra a liberdade de expressão. Sem ele, a pessoa não se sentiria segura para dar a informação. Mas será que num caso como esses, de o MP vazar informações que deveriam ser sigilosas para expor pessoas, o sigilo da fonte não pudesse ser quebrado? Essas situações são difíceis, envolvem direitos constitucionais.

ConJur — A forma como as delações foram usadas pela “lava jato” pode ser considerada publicidade opressiva?
Simone Schreiber — A delação em si, não. Agora, o uso da delação no processo penal precisa de algumas cautelas. A nº 1 é o colaborador de fato trazer elementos que corroborem o que ele está falando. Essa questão de usar a imprensa para expor o investigado e fazê-lo delatar, aí, sim, poderia ser publicidade opressiva. Mas vazar informações sobre delatados para a imprensa não tem a ver com o instituto da colaboração. Na tese, faço essa distinção. Publicidade opressiva é a publicação de reportagens para influenciar o resultado de um julgamento. Essa situação do vazamento de delações tem a ver com a irresponsabilidade das pessoas que estão lidando com aquele material.

ConJur — Então seria apenas quando a imprensa, ou um veículo, deixa claro que quer determinado resultado no julgamento.
Simone Schreiber — Quando o veículo começa a divulgar, de maneira sistemática, notícias sempre tendendo para um lado, geralmente pela condenação. Isso tem como resultado a possibilidade de influenciar no resultado de um julgamento. Tentei caracterizar isso na tese de forma bem objetiva, até porque queria sustentar algumas medidas possíveis que pudessem ser adotadas. Então, não seria a mera divulgação de fatos, e nem qualquer divulgação. Teria que haver alguns ingredientes ali para caracterizar a situação de publicidade opressiva.

ConJur — Bom, no caso do ex-presidente Lula houve a divulgação sistemática de notícias pressionando os tribunais pela manutenção da prisão e pela condenação. Houve publicidade opressiva?
Simone Schreiber — Não posso me posicionar sobre o caso em si, se houve crime ou não, porque não conheço o processo. Mas há elementos de publicidade opressiva, sim. Teve a transmissão do Power Point no Jornal Nacional, uma pressão muito forte da grande mídia. E tem até hoje uma comoção em torno da soltura dele.

https://www.conjur.com.br/2019-ago-11/entrevista-simone-schreiber-desembargadora-trf

Zé Maria

A Responsabilidade do Poder Judiciário
na Situação em que se se encontra o Brasil
A influência da mídia nas decisões judiciais,
e a Operação Lava Jato e as Repercussões
nas Eleições de 2018 ?

Debate: (https://youtu.be/HPt1qrsDbik)

Com Carol Proner, Valdete Souto Severo,
Lênio Streck e Rogerio Favreto

marcio gaúcho

Pertinente o seu comentário, pois os policiais em êxtase comemoravam a conquista do troféu: a caça estava morta! E o povo, aliviado do medo e da tensão que o animal causava, em delírio, após a morte. O maior problema foi a exposição pública do corpo, que poderia ter sido evitada. Situação excepcional para um case de psicologia e psiquiatria.

Carlos Roberto de Oliveira

Vc tá certo o texto muito maravilhoso vc falou a verdade e política e maldade com cães farejador e também queria mostrar que pegou um criminoso que deu um cho de bola nele isto tudo foi ódio.

a.ali

perfeito e mt. lúcido seu comentário julian!

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