José do Vale: O Guaíba não é o culpado pelas enchentes, ele é apenas a enxurrada da distopia capitalista

Tempo de leitura: 4 min
Ilustração: Renato Aroeira (@arocartum)

Por José do Vale Pinheiro Feitosa* 

O Guaíba, na prática, é um lago cuja bacia hidrográfica abrange 251 municípios do Rio Grande do Sul e 1/3 da área do estado.

Um mar de água doce.

Nos últimos dias, porém, desalojou mais de 1 milhão de pessoas no Estado, destruiu infraestrutura essencial e gerou desabastecimento amplo e desequilíbrio social e econômico.

Um grande desastre. Pela sua magnitude, além de alertar o Brasil, radicaliza a visão mundial de que a civilização ocidental técnico-científica está em grande crise terminal.

É muito simbólico ler no noticiário o senador-general Hamilton Mourão perdido no novelo de impotência política frente ao desastre do Estado que ele representa.

Mourão, vale relembrar, representa uma visão política que desconsiderou o desmatamento da Amazônia, adotou o terraplanismo e negou a covid-19 tão logo o governo do qual era vice-presidente se deparou com a pandemia.

Aliás, na mesma semana em que o Guaíba encheu, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que estava no Amazonas, teve que ser transportado num CTI aéreo por causa de uma erisipela.

Não se trata de algo fantasmagórico nem de vingança ontológica. Mas não deixa de ser curioso o fato de isso acontecer no mesmo estado em que o governo Bolsonaro deixou faltar oxigênio na pandemia e debochou publicamente da falta de ar dos doentes com covid-19.

O volume do desastre no RS é da ordem que tais figuras não são capazes de formulá-lo.

Assim como são incapazes de formular os grandes dramas da humanidade, como o o ataque de Israel a Rafah ou as demonstrações de armas atômicas da Rússia em fase de guerra crescente com a OTAN.

A enxurrada vinda das serras gaúchas, que tão bem o jornalista Moisés Mendes traçou como a idiotia vazia das mansões dos super ricos, resulta das intervenções no relevo, afetando a homeostasia dos sistemas de florestas e terra.

Só que não podemos cair no outro lado da fantasia bolsonarista, empunhando bandeiras dos desastres ecológicos, porque “a queda da biodiversidade é verdade e certamente, a pior das nossas preocupações. Mas, eu me recuso a ver isso como causa, porque a queda da vida não é uma das origens do problema, é o problema como tal’’, expõe o filósofo e astrofísico francês Aurélien Barrau.

A bandeira necessária passa pela revolução do próprio sistema civilizacional ou capitalista, ampliando as contradições com as corporações financeiras, os tink tank, as big-techs, a big-farm, o complexo industrial e militar e diversas instituições obsoletas a serviço do lucro.

Na visão do próprio Aurélien Barrau, a filosofia, as ciências e as soluções tecnológicas são parte do problema e não da solução.

O problema em ampla medida é a chamada reificação (coisificação) da vida atual, em especial a partir dos grandes instrumentos controlados totalitariamente pelas novas tecnologias e sistemas financeiros.

Retornando aos bombardeios de Rafah, tema degenerado em si, mas acompanhado de várias práticas do capitalismo mundial.

Uma delas é o tráfico de seres humanos para transplante de órgãos, entre outras finalidades.

Em valas comuns de mortos pelo ataque israelense no território palestino, os corpos estavam violados para a retirada de órgãos.

Segundo a Câmara dos Deputados do Brasil , o tráfico de humanos para transplante é um dos negócios mais lucrativos do mundo, gerando um volume de negócios da ordem 13 bilhões de dólares ao ano.

Das crianças traficadas para os países centrais, estima-se que 40% destinam-se a usos sexuais e os 60% restantes, para transplantes e experimentos.

É a coisificação do ser humano transformado em mercadoria de um negócio lucrativo, pois ampliará o número de transplantes realizados, já que os notificados representariam apenas 10% das necessidades globais.

Segundo o relatório do Global Observatory on Donation e Transplantion – GODT, em 2021 foram transplantados 144.302 órgãos sólidos (rins, fígado, coração, pulmão, pâncreas, intestino).

Importante: 2/3 desses transplantes foram de órgãos de pessoas vivas. E o principal tipo dos transplantes em vivos é o chamado III (91%), quando se planeja a suspensão da terapia de manutenção da vida com uma parada cardíaca esperada para, em seguida, realizar o transplante do órgão.

É a ampla mercantilização da medicina, sendo a ética apenas uma fachada atrás da qual as transações (inclusive de procedimentos desnecessários) podem ocorrer.

São conhecidas as manobras lucrativas das grandes empresas farmacêuticas, simulando inovações ou inovando e explorando inúmeras vezes o produto além dos custos de fabricação. Tudo para remuneração em bolsa.

Até mesmo a morte programada, a chamada eutanásia anda em vertigem lucrativa, com nomes famosos como o do ator Alain Delon e o do cineasta Jean-Luc Godard servindo de “marketing” para o procedimento.

Há evidências de que o preço da droga secobarbital, usada na eutanásia, subiu de 200 dólares, em 2019, para três mil dólares, atualmente. Ou seja, 15 vezes.

As águas do Guaíba baixarão, os gaúchos com a solidariedade de todo o país vão recuperar suas condições de vida e, possivelmente, não mudarão as causas do desastre que os inundou.

Porém,  já há um grau na consciência na população de que a empulhação da extrema direita não é a solução e que os fatores da crise da civilização precisam ser combatidos.

*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Zé Maria

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O IMPÉRIO DO CONSUMO

Dize-me quanto consomes e te direi quanto vales.

Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas.
Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente.
Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas.
E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar.

Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica.

Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo;
e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz, essa que vive se comparando”,
lamenta uma mulher no bairro de Buceo,
em Montevidéu.

A dor de já não ser, que outrora cantava o tango,
deu lugar à vergonha de não ter.

Um homem pobre é um pobre homem.

“Quando não tens nada,
pensas que não vales nada”,
diz um rapaz no bairro Villa Fiorito,
em Buenos Aires.

E outro confirma, na cidade dominicana
de San Francisco de Macorís:
“Meus irmãos trabalham para as marcas.
Vivem comprando etiquetas,
e vivem suando feito loucos para pagar
as prestações”.

Invisível violência do mercado:
a diversidade é inimiga da rentabilidade,
e a uniformidade é que manda.

A produção em série, em escala gigantesca,
impõe em todas partes suas pautas
obrigatórias de consumo.

Esta ditadura da uniformização obrigatória
é mais devastadora do que qualquer ditadura
do partido único: impõe, no mundo inteiro,
um modo de vida que reproduz seres humanos
como fotocópias do ‘consumidor exemplar’.

O ‘consumidor exemplar’ é o homem quieto.
Esta civilização, que confunde quantidade
com qualidade, confunde gordura
com boa alimentação.

Segundo a revista científica The Lancet,
na última década a obesidade mórbida
aumentou quase 30% entre a população
jovem dos países mais desenvolvidos.

Entre as crianças norte-americanas,
a obesidade aumentou 40%
nos últimos dezesseis anos,
segundo pesquisa recente do
Centro de Ciências da Saúde
da Universidade do Colorado.

O país que inventou as comidas
e bebidas ‘light’, os ‘diet food’
e os alimentos ‘fat free’,
tem a maior quantidade de
obesos do mundo.

O ‘consumidor exemplar’ desce do
carro só para trabalhar e para assistir TV.
Sentado na frente da telinha,
passa quatro horas por dia
devorando comida plástica.

Vence o lixo fantasiado de comida:
essa indústria está conquistando
os paladares do mundo e está
demolindo as tradições da cozinha
local.
Os costumes do bom comer,
que vêm de longe, contam,
em alguns países, milhares de
anos de refinamento e diversidade
e constituem um patrimônio coletivo
que, de algum modo, está nos fogões
de todos e não apenas na mesa dos ricos.

Essas tradições, esses sinais de identidade cultural,
essas festas da vida, estão sendo esmagadas,
de modo fulminante, pela imposição do saber químico
e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura
do ‘fast food’.
A plastificação da comida em escala mundial viola
com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha:
direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das
suas portas.

A Copa do Mundo de futebol confirmou para nós,
entre outras coisas, que o cartão MasterCard
tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona
eterna juventude e que o cardápio do McDonald’s
não pode faltar na barriga de um bom atleta.

O imenso exército do McDonald’s dispara hambúrgueres
nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro.

O duplo arco dessa ‘M’ serviu como estandarte,
durante a conquista dos países do Leste Europeu.

As filas na frente do McDonald’s de Moscou,
inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras,
simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta
eloqüência quanto a queda do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna
as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados
a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato.

O McDonald’s viola, assim, um direito legalmente
consagrado nos muitos países onde opera.

Na década de 90, alguns trabalhadores, membros disso
que a empresa chama de Macfamília, tentaram sindicalizar-se
em um restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou.
Mas outros empregados canadenses do McDonald’s,
em uma pequena cidade próxima a Vancouver,
conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal:
a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde.

Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que
a Mídia transmite.

No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram
no mundo todo.

Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola
e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai se tornando
tempo de consumo obrigatório.
Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama,
mas têm televisão, e a televisão está com a palavra.

Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da ‘vocação
democrática do progresso’:
não escuta ninguém, mas fala para todos.

Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis
do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas
taxas de juros que tal ou qual banco oferece.

Os especialistas sabem transformar as mercadorias
em mágicos conjuntos contra a solidão.

As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia,
compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo
que nunca falha.

A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas,
ou sonhando com fazer isso.
E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser
símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar
as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem
as portas proibidas.
Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você
e salvam você do anonimato das multidões.

A publicidade não informa sobre o produto que vende,
ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa.
Sua função primordial consiste em compensar frustrações
e alimentar fantasias.
Comprando este creme de barbear, você quer se transformar
em quem?

O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas
não são fruto somente da extrema pobreza.
Também são fruto da ética individualista.

A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente
sobre a apropriação ilegal das coisas.
Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade;
mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra
para acreditar que o dinheiro traz algo tão parecido, que a diferença
é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim
de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura,
desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico.

A população mundial torna-se urbana,
os camponeses tornam-se cidadãos.

Na América Latina temos campos sem ninguém
e enormes formigueiros urbanos:
as maiores cidades do mundo, e as mais injustas.
Expulsos pela agricultura moderna de exportação
e pela erosão das suas terras, os camponeses
invadem os subúrbios.
Eles acreditam que Deus está em todas partes,
mas por experiência própria sabem que atende
nos grandes centros urbanos.

As cidades prometem trabalho, prosperidade,
um futuro para os filhos.
Nos campos, os esperadores olham a vida passar,
e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece
e chama.
Amontoados em cortiços, a primeira coisa que
os recém chegados descobrem é que o trabalho falta
e os braços sobram, que nada é de graça e que os
artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.

Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano da Rivalto
pronunciou, em Florença, um elogio das cidades.
Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas sentem
gosto em juntar-se».
Juntar-se, encontrar-se.

Mas, quem encontra com quem?
A esperança encontra-se com a realidade?
O desejo, encontra-se com o mundo?
E as pessoas, encontram-se com as pessoas?
Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas,
quanta gente encontra-se com as coisas?

O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão,
na qual as coisas se olham mas não se tocam.

As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.

Os terminais de ônibus e as estações de trens,
que até pouco tempo atrás eram espaços
de encontro entre pessoas, estão se transformando,
agora, em espaços de exibição comercial.

O shopping center, o centro comercial,
vitrine de todas as vitrines,
impõe sua presença esmagadora.

As multidões concorrem, em peregrinação,
a esse templo maior das missas do consumo.
A maioria dos devotos contempla, em êxtase,
as coisas que seus bolsos não podem pagar,
enquanto a minoria compradora é submetida
ao bombardeio da oferta incessante e extenuante.

A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas,
viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris
e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir
não é preciso pagar passagem.
Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que
ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna,
posam para a foto, aos pés das marcas internacionais
mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua
do prócer na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos
vão ao center, ao shopping center, como antes iam até o centro.
O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade
tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos.
De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas
melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram
convidados, mas podem olhar tudo.
Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial
que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado
desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo
à descartabilidade midiática.
Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada à serviço
da necessidade de vender.
As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem
substituídas por outras coisas de vida fugaz.

Hoje, quando o único que permanece é a insegurança,
as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis
quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera.

O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui,
amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado
em potencial.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade,
oferecem a mais bem-sucedida ilusão de segurança.
Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz,
sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço,
além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável:
uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota assim como
se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas
pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que
a publicidade lança, sem pausa, no mercado.

Mas, para qual outro mundo vamos nos mudar?

Estamos todos obrigados a acreditar na historinha
de que Deus vendeu o planeta para umas poucas
empresas porque, estando de mau humor,
decidiu privatizar o universo?

A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.

Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso,
mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria
das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente,
para garantir a existência da pouca natureza que nos resta.

A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar:
é uma necessidade essencial.

Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center
do tamanho do Planeta.

EDUARDO GALEANO
(1940-2015)
Escritor e Jornalista Uruguaio.
Autor de “As Veias Abertas da América Latina” e
“Memórias do Fogo”, dentre outras obras.

Íntegra em:

https://www.assufrgs.org.br/2007/01/18/o-imperio-do-consumo-artigo-de-eduardo-galeano/

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