Gilberto Maringoni: A casa está em chamas

Tempo de leitura: 4 min

Alternativas para a casa em chamas

Conservadores acusam indignados de não apresentarem alternativas. É irônico. Quem não tem respostas a dar acusa o outro de não saber que perguntas fazer. Manifestantes têm um ponto poderoso em comum: são contra “tudo isso aí”.

por Gilberto Maringoni, em Carta Maior

A semana que passou estabeleceu um marco nos protestos contra a crise. Manifestantes tomaram ruas e praças – em intensidades variáveis – em 951 cidades de 82 países. Os maiores atos ocorreram na Europa, em Bruxelas, Madri, Barcelona, Roma e Londres.

A acusação mais repetida contra os protestos é que seus integrantes não têm bandeiras ou demandas claras. Em parte é verdade. Mas qual o problema real?

Tais acusações partem invariavelmente de comentaristas conservadores e partidários do status quo, que naufraga a olhos vistos. Os responsáveis pela situação não têm satisfações a dar às maiorias desesperadas, a não ser exigir mais arrocho. Estamos na seguinte situação: aqueles que não conseguem apresentar respostas acusam os oponentes de não saberem quais as perguntas a serem feitas.

Vinte anos depois da proclamação do fim da História e do advento de uma intensa campanha contra tudo o que tivesse ligação com mudança e transformação social, a Europa chega ao precipício.

O problema não é exatamente falta de rumos, é que os setores que se manifestam apresentam características novas.

Setores organizados

Em um século e meio de história, a esquerda, munida de teoria e vontade, aprendeu a atuar com setores organizados da sociedade. A construção de partidos, sindicatos, frentes, ligas, associações e outros organismos disciplinaram a luta de classes.

Os embates deixaram de ser espontâneos e passaram a contar com formulações, com tática e estratégia, que otimizaram forças e agregaram ciência à mobilização social. Construíram-se teorias, que deram previsibilidade a enfrentamentos. Diante da estruturação dos setores dominantes – que contavam com Estado, capital e violência organizada – se contrapunha a disciplina de partidos e entidades de massa. Mesmo situações de derrota passaram a ter sua pedagogia positiva, com lições a potencializar novos enfrentamentos.

Apesar dos mecanicismos que muitas vezes advinham de tais concepções, a esquerda aprendeu a fazer política com projeto tático e estratégico e movimentos planejados.

Mesmo as mobilizações de 1968 – que evidenciaram a existência de bandeiras transversais e matizadas na luta de classes, como direitos das mulheres, dos negros, das minorias sexuais etc. – tinham como caminho de acumulação de forças a organização social e a formação de blocos e alianças.

União do não pertencimento

As mobilizações de 2011 estão em curso. Mas apresentam algumas novidades.

Ela não está apenas no alcance potencialmente global das rebeliões – mas especialmente por arregimentar setores não organizados previamente. É uma espécie da união do não pertencimento, uma coletividade fragmentada. O movimento Ocupar Wall Street, os protestos dos Indignados e todas as marchas que se agregam sob a bandeira de “Somos 99%” não foram arregimentados por partidos, sindicatos, ONGs, associações, clubes ou por qualquer entidade tradicional. Têm um caráter espontâneo e insurrecional acentuado e são convocados por redes sociais na internet e não por carros de som nas portas de fábricas. Em outros tempos formariam os chamados setores “desorganizados”. São os sem-líderes, os sem-partidos, além de sem-empregos e sem-esperanças.

A bandeira que os congrega é a negação “a tudo isso aí”. É poderosa por ser ampla, mas frágil por ser genérica. É impactante por mostrar resistência ao desastre, mas precisará dar um passo adiante para evitá-lo.

Keynesianismo liberal?

Tudo indica que estamos entrando em um período prolongado de crise. O choque de 2008 – que não provocou, de imediato, reação popular à altura e nem teoria para a superação do modelo econômico que a gerou – entra agora num segundo tempo. Esgotaram-se as receitas daquilo que se poderia denominar keynesianismo liberal. A contradição em termos se deu através das maciças injeções de dinheiro público nas grandes corporações – financeiras e industriais – para se evitar um desastre iminente.

Alguns analistas, de forma apressada, viram nesse tipo de socorro a evidência de que o neoliberalismo – com sua repulsa às intervenções do Estado na economia – falira e que em seu lugar políticas anticíclicas de corte keynesiano haviam entrado em ação.

Embora tenham adiado o desastre em várias frentes, as medidas não foram acompanhadas de uma iniciativa estrutural. Além de os lucros das grandes agências financeiras continuarem a engordar contas de acionistas e contracheques de altos executivos, nem um parafuso foi apertado em favor de um novo tipo de regulação dos mercados. Ao contrário: medidas desse tipo foram rechaçadas tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

Velhas regras

O caso das montadoras de automóveis no Brasil representou uma pequena amostra da situação global. Apesar de receberem empréstimos a juros subsidiados de R$ 16,3 bilhões do BNDES, as empresas realizaram remessas de lucros e dividendos da ordem de R$ 12,4 bilhões às suas matrizes, entre os anos de 2008 e 2010. Os investimentos para manter a produção ficaram em apenas R$ 3,6 bilhões no mesmo período. Além de não haver nenhuma restrição a esse tipo de operação, as empresas automotivas foram premiadas com novas rodadas de isenções e favores, sem necessidade de apresentarem contrapartida na manutenção do nível de emprego e salário.

Mais dinheiro jogado em um sistema que mantém as mesmas regras, adia mas não resolve problema algum. O Estado na Europa e nos EUA garantiu interesses privados. As crises fiscais daí advindas arrombaram os cofres públicos. A conta que a Grécia é forçada a pagar – e que chega também a Espanha, Portugal e Itália, em menor grau – representa um aprofundamento do neoliberalismo e não sua superação.

A casa em chamas

Os indignados europeus sentem o drama na carne. Percebem que estão levando a pior no jogo e só têm uma alternativa: as ruas. Podem não saber o que querem, mas sabem bem o que não querem.

A situação lembra um conhecido poema de Brecht, a “Parábola de Buda sobre a casa em chamas”. Nele, Buda conta a seus discípulos uma história:

“Numa ocasião, vi uma casa pegando fogo.

As chamas saíam pelo telhado.

Quando me aproximei, vi homens em seu interior.

Avisei que o teto estava queimando,

Mas não tinham pressa.

Um deles, enquanto suas sobrancelhas começavam a arder,

Perguntou-me como estava o tempo aqui fora, se a chuva continuava,

Se a ventania parara, se havia outra casa nas redondezas e assim por diante.

Não respondi e me afastei.

Na realidade, meus amigos, aos indiferentes que não vêem motivos para mudar

Não tenho nada a dizer”.

A casa global começa a pegar fogo. Em alguns lugares as sobrancelhas de muita gente já ardem. Os comentaristas conservadores desdenham os ativistas e perguntam como vai o tempo, se chove amanhã etc. etc…

Não importa. É preciso negar tudo. É preciso sair da casa rápido.

E depois pensar nas alternativas para se apagar o incêndio e reconstruir tudo em outras bases.

Leia também:

Amy Goodman: Os 99% que ocuparam Wall Street


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Bonifa

As sumidades políticas e econômicas do mundo ocidental desenvolvido só sabem raciocinar dentro da arapuca que eles próprios elegeram como sendo o único e definitivo sistema de pensamento da Humanidade. De repente, esfacelou-se a entropia simplória de seu mundinho e eles estão perdidos diante do mundão de possibades que se apresenta no horizonte e que eles não conhecem e se recusam a conhecer. Afundarão exigindo respostas de quem os enfrenta, mas que sejam impossíveis respostas que façam sentido dentro do seu mundinho que se acaba.

Geysa Guimarães

A casa está em chamas e deve continuar, enquanto os conservadores estiverem regando o jardim.

José Silva

Como é bom ver que existe uma contestação ao sistema, que cada dia que passa ganha mais força! É imprensa que tenta dar golpe de todo jeito e o povo começa a duvidar e esperar pra ver o que acontece; é o povo ocupando praça porque não aceita mais ser explorado de forma tão descarada.
Sabe amigos, um dia o Brasil pode voltar a ser governado por alguém como FHC e seus seguidores, apesar da possibilidade ser mínima um dia pode acontecer, mas às vezes eu me pergunto: Será que FHC conseguiria fazer tanta lambança com o povo brasileiro como fez quando foi Presidente? Hoje eu duvido que conseguiria!

Fabio_Passos

As sobrancelhas estão ardendo.

Pois precisamos é tascar um molotov na bunda das "elites" brancas e ricas do olho azul.

Este regime que privilegia 1% e ferra 99% tem de cair. Já está completamente podre.

Pedro

De mentirosos contumazes, os dominantes, que dominam os meios tradicionais de comunicação, imprensa escrita e televisão, começam a preferir a sabedoria do avestruz. Vejam, por exemplo, o silêncio sobre as medalhas de ouro obtidas por Cuba no PAN. Alguém, por ocasião de outras competições internacionais, Olimpíadas, inclusive, fez o cálculo a partir da relação da população de Cuba com a do Estados Unidos. Apenas um lembrete: a população americana é quase trinta vezes maior do que a cubana. Não seria totalmente absurdo dizer que se Cuba, pobre como é, tivesse uma população igual à dos Estados Unidos, paparia todas as medalhas. Concordo com alguém que diga que a estatística nem sempre serve para todas as coisas. Mas serve para calcular que a nossa mídia dominante não vai falar dos feitos cubanos!

Carlos Cruz

Um pais com extremo nível de pobreza, educação deficiente, etc, etc (e tudo que sabemos…), empresta R$16,7 bi do BNDES as multi sem nenhuma contrapartida, nenhum (nenhum!) compromisso de investimentos e criação de empregos, quando as mesmas remeteram as matrizes R$12,4 bi em menos de 2 anos… Tá sobrando dinheiro, governo? Se está coloca 1bi na minha conta, sem juros, e iniciando-se o pagamento daqui a 10 anos. Ficarei muito (muito!) feliz, e na especulação multiplicarei por 20 e lhe devolverei (se não me for concedida mais prorrogação…) em chicletes o emprestimo. É brincadeira! Estamos alimentando a Europa e EUA com nosso suado dinheirinho, e tome mais IMPOSTOS! Não estão querendo a volta da CPMF? É sacanagem!

PedroAurelioZabaleta

Olá Conceição, Azenha e …
Há dez anos atrás realizou-se, aqui em Porto Alegre/RS, o primeiro Fórum Social Mundial.
Tudo aquilo que hoje abala o capitalismo financeiro especulativo, já era apontado então.
E tal como hoje os "donos do mundo" acusavam os participantes do Fórum de não fazerem propostas objetivas.
Seria interessante a possibilidade de entrevistar alguns dos principais organizadores/palestrantes daquele evento, e fazer a relação com o momento mundial atual.
grande abraço (de um leitor diário)

    Conceição Lemes

    Pedro, vc teria algum texto daquela época mostrando isso? abração e boa sorte

walfredo

Matemáticos revelam rede capitalista que domina o mundo
Category: Notícias — sinajus @ 08:56 Editar
Da New Scientist – 22/10/2011

Este gráfico mostra as interconexões entre o grupo de 1.318 empresas transnacionais que formam o núcleo da economia mundial. O tamanho de cada ponto representa o tamanho da receita de cada uma.[Imagem: Vitali et al.]

Além das ideologias

Conforme os protestos contra o capitalismo se espalham pelo mundo, os manifestantes vão ganhando novos argumentos.

Uma análise das relações entre 43.000 empresas transnacionais concluiu que um pequeno número delas – sobretudo bancos – tem um poder desproporcionalmente elevado sobre a economia global.

A conclusão é de três pesquisadores da área de sistemas complexos do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne, na Suíça.

Este é o primeiro estudo que vai além das ideologias e identifica empiricamente essa rede de poder global.

"A realidade é complexa demais, nós temos que ir além dos dogmas, sejam eles das teorias da conspiração ou do livre mercado," afirmou James Glattfelder, um dos autores do trabalho. "Nossa análise é baseada na realidade."

Rede de controle econômico mundial

A análise usa a mesma matemática empregada há décadas para criar modelos dos sistemas naturais e para a construção de simuladores dos mais diversos tipos. Agora ela foi usada para estudar dados corporativos disponíveis mundialmente.

O resultado é um mapa que traça a rede de controle entre as grandes empresas transnacionais em nível global.

Estudos anteriores já haviam identificado que algumas poucas empresas controlam grandes porções da economia, mas esses estudos incluíam um número limitado de empresas e não levavam em conta os controles indiretos de propriedade, não podendo, portanto, ser usados para dizer como a rede de controle econômico poderia afetar a economia mundial – tornando-a mais ou menos instável, por exemplo.

O novo estudo pode falar sobre isso com a autoridade de quem analisou uma base de dados com 37 milhões de empresas e investidores.

A análise identificou 43.060 grandes empresas transnacionais e traçou as conexões de controle acionário entre elas, construindo um modelo de poder econômico em escala mundial.

Poder econômico mundial

Refinando ainda mais os dados, o modelo final revelou um núcleo central de 1.318 grandes empresas com laços com duas ou mais outras empresas – na média, cada uma delas tem 20 conexões com outras empresas.

Mais do que isso, embora este núcleo central de poder econômico concentre apenas 20% das receitas globais de venda, as 1.318 empresas em conjunto detêm a maioria das ações das principais empresas do mundo – as chamadas blue chipsnos mercados de ações.

Em outras palavras, elas detêm um controle sobre a economia real que atinge 60% de todas as vendas realizadas no mundo todo.

E isso não é tudo.

Super-entidade econômica

Quando os cientistas desfizeram o emaranhado dessa rede de propriedades cruzadas, eles identificaram uma "super-entidade" de 147 empresas intimamente inter-relacionadas que controla 40% da riqueza total daquele primeiro núcleo central de 1.318 empresas.

"Na verdade, menos de 1% das companhias controla 40% da rede inteira," diz Glattfelder.

E a maioria delas são bancos.

Os pesquisadores afirmam em seu estudo que a concentração de poder em si não é boa e nem ruim, mas essa interconexão pode ser.

Leia o restante aqui…
http://sinajus.org/home/

Eduardo

Afinal, os governos devem trabalhar para os governados ou para enriquecer desmedidamente os banqueiros? É o que sempre assistimos pacificamente e agora, ao que tudo indica, há uma "nova primavera" em curso e que não retrocederá. Será que é o povão que precisa dos banqueiros ou o contrário? Riqueza que se sustenta em mero papel estampado não tem vida longa. Os povos querem trabalhar, estudar, alimentar, ter vida digna e é exatamente isso que este sistema não permite que tenhamos. Então, vai cair de maduro…(ou será podre???)

H Aljubarrota

Bem, a questão de hoje não é mais se haverá ou não mudança, mas sim que tipo de mudança virá…

cronopio

Lindo texto! O autor e os manifestantes estão cobertos de razão, não há motivo para se fazer demandas. "Nós queremos discutir", respondeu um das manifestantes, quando indagado acerca de suas reivindicações. Os conservadores fazem de conta que não perceberam que os mecanismos tradicionais de representatividade democrática ruíram. Só um tolo depositaria suas esperanças em uma democracia falsa, que traiu nossa confiança. Com certeza os clamores se tornarão ainda maiores. Como o autor citou Brecht, sinto-me impelido a citar uma estrofe do poema "Abel e Caim" de Baudelaire:

"Raça de Abel apodrecida
Há de adubar o solo ardente!
Raça de Caim, tua lida
Nunca te será suficiente;
Raça de Abel, eis teu labéu:
Do ferro o chuço é vencedor!
Raça de Caim, sobe ao céu
E arremessa à terra o Senhor!"
(trad. Jorge Pontual)

Lu_Witovisk

É o povo saindo da Matrix!!!! Não demorará e logo logo os rumos serão definidos, aposto! é mta vontade de mudar para morrer na praia… aeeeeeeeeeeeeeeeeeee

Deixe seu comentário

Leia também