Gilberto Gil: Um pé em Ouro Preto e outro em Brasília

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Ousadias num país tropical

Um caso de virtude, verdade e requinte: o Palácio Gustavo Capanema, no Rio, ex-Ministério da Educação

06 de dezembro de 2012 | 8h 28

Gilberto Gil – especial para O Estado de S. Paulo (com acréscimo de fotos e vídeo)

Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados — que, antes, obedeciam à fantasia dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos.

Novos hábitos são ensaiados… A sala em que me instalaram não provou bem. Desde anteontem passei para onde as coisas têm melhor arrumação. Das amplas vidraças do 10.º andar descortina-se a baía vencendo a massa cinzenta dos edifícios. Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte.

Essas palavras foram escritas por Carlos Drummond de Andrade, em O Observador no Escritório, para falar da mudança do ministro Gustavo Capanema e sua equipe para o então prédio do Ministério da Educação e Saúde, nos primeiros dias do mês de abril de 1944.

E é fascinante ouvi-lo não só sobre a luz natural invadindo as salas, como sobre a sensação espacial de estar num prédio radicalmente novo, que leva a ensaiar novos hábitos. Este é o dom, a virtude e a verdade da grande arquitetura. O espaço construído sendo capaz de renovar a nossa experiência das formas e os nossos hábitos.

Mas este prédio de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, baseado no traçado original de Le Corbusier, não é só isso. Ele é um marco inaugural, marco da nova arquitetura brasileira e mundial, marco da invenção na história da cultura brasileira. E tem lições fundamentais para nos dar, no momento em que estamos vivendo.

Aqui está uma prova nítida de nossa capacidade de assimilar criativamente linguagens internacionais, nelas imprimindo a nossa marca própria e original, inclusive para nos antecipar às realizações estrangeiras. Porque a verdade é que este prédio, exemplo de ousadia e requinte tropicais, pegou de surpresa os centros mundiais de cultura. Neste caso, deixo a palavra com o próprio Lúcio Costa: “O edifício construído para sede do antigo Ministério da Educação e Saúde surgiu como que de repente e a sua serena beleza surpreendeu quando, terminada a guerra, o mundo tomou conhecimento da sua insólita presença. Marco definitivo da nova arquitetura brasileira revelou-se igualmente, apenas construído, padrão internacional da reformulação arquitetônica, e demonstrou que o engenho nativo já está apto a apreender a experiência estrangeira, não mais somente como eterno caudatário ideológico, mas antecipando-se na própria realização.”

Uma outra lição que este grupo e este prédio nos dão está na aliança que souberam tecer entre a tradição e o novo. Não foi isso o que aconteceu na Europa, onde agrupamentos se dividiram, como adversários, em nome de uma suposta dicotomia entre memória e invenção – e o panfletário Le Corbusier queria fazer tábua rasa do passado. O Instituto do Patrimônio — criado por um punhado de jovens inovadores, sob a regência de Rodrigo Melo Franco de Andrade — ficou abrigado aqui mesmo, neste prédio de vanguarda. E Lúcio Costa trabalhou para o Patrimônio. Podemos dizer, portanto, que este grupo tinha um pé em Ouro Preto — e um pé no futuro, que um dia se chamaria Brasília.

Este prédio nos ensina, também, que é preciso ter responsabilidade para construir. Responsabilidade social e cultural. Porque todo prédio importante, que se ergue na paisagem, vai marcar profundamente o corpo da cidade. Marcar com a sua dimensão física, com a sua carga simbólica e com a sua mensagem. E é por isso mesmo que devemos olhar com reserva, criticamente, todo projeto de implantação de obras gigantescas, grandes somente em sua monumentalidade, mas culturalmente supérfluas, vazias de significado.

Gostaria de lembrar o contexto histórico em que este edifício se ergueu. Ele foi construído ao longo da 2ª Guerra Mundial. E assim gerou um contraste eloquente. Enquanto na Europa a tecnologia estava sendo usada para destruir, no Brasil ela estava sendo usada para construir. E que isto também nos sirva de lição, hoje, quando a perspectiva de uma nova guerra se desenha cada vez mais próxima. Que a tecnologia seja para nós, sempre, um instrumento construtivo sempre para paz.

Por tudo isso, é preciso revelar, ao próprio Rio e a todo o País, o significado deste prédio. É preciso informar, iluminar e usar os seus belos espaços. Recuperar o que for preciso de suas instalações. Para que este edifício renasça da cidade – e para o coração do País.

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Gerson Carneiro

    renato

    Eu sabia, eu sabia, que devia haver
    um motivo!
    Será que a Globo vai dar um nº de
    telefone, para a gente começar a mandar
    idéias, tipo assim, igual o nome do
    mascote da copa o “TOKOFURICO”

Gerson Carneiro

Metade gênio. A outra metade também.

Francisco

Bonito o texto.

Sutilmente nos lembra que a condição fundamental para andar é se dispor para o desequilibrio: sem risco, sem marcha.

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