Fala de Mia Couto que vale para os dias de hoje: “Há quem tenha medo que o medo acabe”; vídeo e transcrição

Tempo de leitura: 4 min

Da Redação, sugestão do Dr. Rosinha

Fala memorável do consagrado escritor moçambicano Mia Couto.

Foi na Conferência de Estoril sobre Segurança, em 2011.

Abaixo, a transcrição publicada em seu site.

Mia Couto: Murar o Medo

‘O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte, vislumbravam-se mais muros do que estradas.

Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há, neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo.

Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.

Em nome da segurança mundial, foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave dessa longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo: a Oriente e a Ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política, tornou-se religião. O que era religião, passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos, e como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.

Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra.

Essa arma chama-se fome.

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi — ou será — vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que, sobre uma grande parte do nosso planeta, pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.

Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras”.

E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.

Muito obrigado”.


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Zé Maria

Genocídio Indígena
A Doença e a Fome como Armas de Destruição em Massa v

“Sob Bolsonaro, Yanomami tem o maior índice
de mortes por desnutrição infantil do país”

Reportagem: Rafael Oliveira (https://t.co/A3NpbvIwSK), n’A Pública

https://mobile.twitter.com/agenciapublica/status/1437437530518003712
https://mobile.twitter.com/agenciapublica/status/1437437503934451712

Zé Maria

Livro: A ILHA (1976)
Autor: Fernando Morais

IMPRENSA

Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu:
“Claro que não”.
E completou, com naturalidade:
“Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês.
Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder.
E aqui em Cuba quem detém o poder é o proletariado.
Estamos todos os jornalistas cubanos, portanto, a serviço do proletariado”.

A imprensa foi o único setor da vida cubana que não precisou de leis para ser estatizado depois que Fidel Castro chegou ao poder.
Os jornais, o rádio e a televisão permaneceram nas mãos de seus donos por 2 anos, depois de 1959.
Durante toda a semana, a maior parte da imprensa fazia campanhas contra a comunização do país, contra as expropriações, os fuzilamentos.
Às sextas-feiras, às oito da noite, Fidel solicitava um horário no canal nacional de televisão (ainda não estatizado) para debater as críticas” com um grupo de jornalistas que se revezavam — muitos deles inimigos declarados da nova ordem.
Freqüentemente o debate se prolongava até as quatro, cinco horas da madrugada.

Os jornais, ainda nas mãos de seus proprietários, faziam campanhas contra a reforma agrária e outras leis revolucionárias, mas eram obrigados a publicar, na mesma página, um artigo assinado pelos gráficos da empresa, contrários aos pontos de vista dos padrões.

A proclamação do caráter socialista da revolução cubana foi o momento de ruptura.
Menos de uma semana depois, todos os jornais, estações de rádio e de televisão tinham sido abandonados por seus proprietários, que não eram tantos — os meios de comunicação em Cuba pertenciam a algumas poucas famílias ligadas à indústria açucareira.
Muitos dos donos de jornais chegaram a declarar, antes de partir, que pretendiam voltar logo ao país, imaginando que os Estados Unidos — àquela altura já em choque total com Cuba — fossem derrubar Fidel Castro em pouco tempo.

A fuga dos proprietários foi imediatamente seguida pela tomada dos meios de comunicação por jornalistas, gráficos e radialistas, e pela estatização das empresas.
Os jornais considerados fascistas, como o “Diário da Marinha”, foram fechados.
Os outros apenas mudaram a linha editorial e continuaram com o mesmo nome, as mesmas características gráficas.

(Página 73. 8ª Edição. 1977. Editora Alfa-Ômega)

(https://br1lib.org/book/2615858/684a81?id=2615858&secret=684a81)
https://www.academia.edu/7223003/HIST%C3%93RIA_CR%C3%8DTICA_O_Professor_de_Hist%C3%B3ria_e_a_Hist%C3%B3ria_do_Seu_Tempo

Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/EUuSWU5WAAQK5u0?format=jpg

“Quando dei comida aos pobres,
chamaram-me santo.
Quando mostrei por que há pobreza,
chamaram-me comunista.”

“Se o Papa [Paulo VI) me chama de ‘arcebispo vermelho’,
ele o faz brincando, afetuosamente, com certeza
não do modo como o fazem aqui no Brasil,
onde qualquer um que não seja um reacionário
é chamado de comunista ou a serviço dos comunistas.” [*]

Dom Helder Câmara (1909-1999)
Um Homem de Coragem

*[Oriana Fallaci Entrevista Dom Helder Câmara]
(http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/dom-helder-camara)

    Zé Maria

    Entrevistas Históricas

    “Oriana Fallaci Entrevista Dom Hélder Pessoa Câmara”

    “A Igreja quer que eu me ocupe com a libertação da alma,
    mas como eu posso libertar uma alma,
    se eu não consigo libertar o corpo que contém essa alma?
    Eu quero enviar homens para o céu, não cachorrinhos.
    Muito menos cachorrinhos com estômagos vazios
    e testículos destruídos.”
    “Eu não me escondo, eu não me defendo,
    e não seria preciso ter muita coragem para me eliminar.
    Mas estou convencido de que eles não me matarão
    se Deus não o quiser. Se, pelo contrário, Deus quiser,
    porque ele acha que está certo, eu o aceito como sua graça
    – quem sabe, minha morte pode até ajudar.
    Eu já perdi quase todo o meu cabelo, o pouco que restou
    ficou branco, e não tenho mais muitos anos de vida.
    Por isso suas ameaças não me assustam.
    Em resumo, será um pouco difícil para eles,
    desse modo, fazer com que eu me cale.
    O único juiz que eu aceito é Deus.”

    Trechos da Entrevista de Dom Hélder Câmara à Jornalista Italiana Oriana Fallaci,
    publicada no Livro “A Arte da Entrevista” (Boitempo), com Organização de Fábio Altman. Originalmente Publicada em Italiano na L’Europeo (20/08/1970).

    – Oriana Fallaci: Há uma miséria sem nenhum poder, dom Helder.

    – D. Helder Câmara: “São as minorias que contam.
    Foram sempre as minorias que mudaram o mundo, rebelando-se,
    lutando, e despertando as massas.
    Alguns sacerdotes aqui, alguma guerrilha ali, algum bispo aqui,
    algum jornalista ali.
    Não estou tentando adular a senhora, mas devo dizer-lhe que
    sou uma das poucas pessoas que gostam de jornalistas.
    Quem, senão os jornalistas, relatam as injustiças e informam
    milhões e milhões de pessoas?
    Não corte esse comentário da entrevista;
    no mundo moderno os jornalistas são um fenômeno importante.

    Houve um tempo em que vocês vinham ao Brasil só para falar sobre
    nossas borboletas, nossos papagaios, nosso carnaval, em resumo,
    nosso folclore.

    Agora, em vez disso vocês vêm para cá e levantam as questões
    ligadas à nossa pobreza, às nossas torturas.

    Nem todos vocês, é claro – há também os inconseqüentes que
    nem se importam se morremos de fome ou de choques elétricos.
    Nem sempre com sucesso, é claro – sua sede de verdade pára
    onde começam os interesses da empresa a que vocês servem.
    Mas Deus é bom, e às vezes ele providencia para que seus chefes
    não sejam muito inteligentes.

    Assim, com a bênção de Deus, as notícias sempre passam,
    e, uma vez impressas, eles repercutem com a velocidade
    de um foguete dirigido à lua, e se espalham como um rio
    que transborda invadindo as margens.
    O público não é estúpido, mesmo sendo silencioso.
    Tem olhos e ouvidos, mesmo se não tiver boca.
    E sempre chega o dia em que ele lembra o que leu.

    Estou só esperando que ele leia essa verdade definitiva:
    não devemos dizer que o rico é rico
    porque trabalhou mais ou porque é mais inteligente,
    não devemos dizer que o pobre é pobre
    porque é estúpido ou preguiçoso.
    Quando falta a esperança e só se herda pobreza,
    não adianta nada trabalhar ou ser inteligente.”

    Íntegra da Esplêndida Entrevista de Hélder em:
    https://www.socialistamorena.com.br/entrevistas-historicas-oriana-fallaci-entrevista-dom-helder-camara

    Em 1972, Dom Helder Câmara foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz,
    havendo Forte Atuação da Ditadura Militar no Brasil Contrária à Indicação.
    (https://www.alterinfos.org/IMG/pdf/premio-nobel-da-paz-a-atuacao-da-ditadura-militar-brasileira-contra-a-indicacao-de-dom-helder-camara_anexos.pdf)

    Aposentou-se em 1985, tendo organizado mais de 500 (Quinhentas)
    Comunidades Eclesiais de Base.

    No final da década de 1990, Dom Helder lançou a campanha
    “Ano 2000 Sem Miséria”.
    [E hoje, ironicamente, é o Sortilégio do Millenium]

    https://www.comissaodaverdade.pe.gov.br/index.php/comissao-da-verdade
    https://www.comissaodaverdade.pe.gov.br/index.php/caderno-da-memoria-e-verdade-vol-4-pdf

Nelson

É incrível. À medida que vim lendo o texto, me senti dentro de um livro do grande e saudoso jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, que, afinal, é, no finalzinho, citado pelo também grande Mia Couto.

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