Eliara Santana: Jornal Nacional e Lava Jato, juntos e shallow now

Tempo de leitura: 7 min

JN e Lava Jato. Juntos e shallow now

por Eliara Santana, especial para o Viomundo

A análise diária da cobertura do JN, ancorado pelos jornalistas Willian Bonner e Renata Vasconcelos,  revela uma grande “sintonia” com a Operação Lava Jato na divulgação de investigações relevantes, no momento “certo”, levadas ao público por um padrão perfeito de enquadramento e silenciamento – destacando o tema que interessa e silenciando sobre todos os demais detalhes, construindo uma encenação que sempre levou benefícios a determinados grupos. Alguns exemplos ilustram bem.

10 de junho de 2019 – The Intercept divulga série de reportagens com conversas entre Moro e Dallagnol

Renata: “A divulgação de mensagens atribuídas a procuradores da força tarefa da Lava Jato  e ao então juiz Sérgio Moro provocou diversas reações no mundo jurídico. As manifestações de  condenação se dividiram entre o conteúdo das supostas conversas e a condenação à forma ilegal como foram obtidas. Segundo o site Intercept, que publicou as mensagens, elas foram extraídas do aplicativo de mensagens Telegram”.

Bonner: “ Na semana passada, o ministro Sérgio Moro já havia denunciado ter sido vítima de um crime. O celular dele foi invadido por meio do aplicativo de mensagens Telegram. O Intercept disse que obteve as informações de fonte anônima antes da invasão do telefone do ministro. Mas o procurador Deltan Dallagnol já havia denunciado ter sido vítima do mesmo crime em abril, quando comunicou o fato à Procuradoria Geral da República”.

Na abertura, a linha argumentativa já insere claramente a dúvida em relação à legalidade do conteúdo divulgado: “manifestações se dividiram/condenação à forma ilegal”.

O sujeito da ação, que divulgou o conteúdo, é reduzido a um site (como qualquer outro da internet) – o site Intercept (o jornalista Glenn Greenwald não é mencionado).

Entra  repórter reproduzindo algumas conversas entre Moro e Dallagnol, sempre usando a referência “segundo o Intercept” (isso é usado a toda hora), e com modalização nas ações de Moro (ele é sempre o que “aconselha” o outro, e não “manda” fazer) e uso de formas não assertivas – os tempos verbais colocam em dúvida a possibilidade dos acontecimento: “isso demonstraria (não DEMONSTRA efetivamente) segundo o Intercept, um viés partidário nas ações contra o ex-presidente Lula, cuja eleição, diz o site, os procuradores querem evitar”.

Após outras falas reproduzidas, nova matéria, com Moro comentando a divulgação.

Bonner: “O ministro Sérgio Moro está em Manaus, onde participou do Encontro dos Secretários Estaduais de Justiça. Moro disse que os trechos das conversas divulgadas não mostram nenhum prática ilegal, ressaltou que os procuradores foram vítimas de uma invasão criminosa e que não pode assegurar que as mensagens sejam verdadeiras”.

Entra fala de Moro reforçando o já dito por Bonner – ele justifica e reforça a ideia de crime contra os procuradores. A fala é dada sem cortes.

Na sequência, nova matéria dando destaque a um vídeo produzido por Dallagnol.

Renata: “O coordenador da Lava Jato em Curitiba, um dos que tiveram o celular invadido ilegalmente, publicou hoje um vídeo numa rede social  defendendo a operação”.

Entra Dallagnol falando em um “receio que a ação avance para deturpar fatos e acontecimentos”. O vídeo é todo reproduzido com intervenções de falas curtas de Bonner reforçando algumas ideias.

As vozes externas a conferir autoridade aos fatos são de juízes ou “especialistas” e  estão colocadas em dois lados: os que defendem e os que condenam a liberação. A ideia de que houve algo ilegal, sem dúvida, já está posta, marcada para minimizar o peso das denúncias feitas.

Imediatamente após o fim da matéria, chamada para a próxima: “Supremo manda soltar mais de 400 menores infratores no Rio”. Chamada assertiva com sujeito agente colocado. Para bom entendedor…

16 de março de 2016 – Dilma indica Lula como ministro-chefe da Casa Civil

O então juiz Sérgio Moro libera, e o JN tem acesso exclusivo a elas, gravações de diálogos do ex-presidente Lula, investigado pela Lava Jato.

Nas gravações, há conversas com a então presidente Dilma Roussef. O tema é recortado e tem várias matérias, ao longo da edição, que contempla ainda os chamados panelaços (3 minutos) e manifestações na porta do Planalto (2 minutos).

Na matéria que menciona a nomeação de Lula, a primeira, o assunto já se insere:

“Nesta quarta-feira, a crise que envolve o governo Dilma Rousseff atinge o ponto mais alto desde o início.  Antes que o Diário Oficial efetivasse a nomeação de Lula como ministro, o juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de toda a investigação sobre o ex-presidente, e com isso tornam-se públicas, no fim da tarde, conversas telefônicas de Lula. Os integrantes da Lava Jato afirmam que há indícios de uma operação para atrapalhar as investigações. Ainda nesta edição, o Jornal Nacional vai mostrar o conteúdo desses grampos e as reações que eles provocaram”.

A ideia de um governo em crise, portanto enfraquecido, já se coloca de imediato. E isso será repetido ao longo da edição.

Outro ponto argumentativo importante é a ideia de “indícios de operação para atrapalhar a Lava Jato”, trazida pela voz externa de autoridade judicial.

Na matéria que trata especificamente dos grampos, o começo:

“Nesta quarta-feira, a crise política atingiu o ponto mais alto. O juiz Sergio Moro suspendeu, no fim da tarde, o sigilo da 24a fase da Operação Lava Jato, e com isso  conversas do ex-presidente Lula se tornaram públicas. Integrantes da Operação Lava Jato informaram que há indícios de uma ação para atrapalhar as investigações”.

A encenação da leitura dos conteúdos dos vazamentos dos áudios, lidos e interpretados por Bonner  e  Renata traz uma forte carga de dramaticidade,  com gesticulações e impostação de voz num tom de indignação.

Não há nenhuma referência às implicações do vazamento, nomeado como “liberação do sigilo da investigação”, que envolve um ex-presidente da República e uma então presidente da República (observem a sequência argumentativa: Moro SUSPENDE SIGILO, por isso as conversas se tornam públicas – não é necessária, portanto, outra explicação).

Além  disso, também não se explica o caráter repentino da decisão do juiz Sérgio Moro em quebrar a proibição de divulgação dos áudios.

Há destaque para várias falas, que são não apenas lidas, mas projetadas também em telas. Além do destaque para as manifestações contra o governo. O relato do acontecimento (o grampo e os diálogos) não é realizado de modo descritivo, constrói-se uma cena enunciativa, em que os locutores (Bonner e Renata) interpretam, como atores, os personagens Lula e Dilma em seu diálogo grampeado.

Nessa interpretação, há uma entonação marcada para as falas, com destaques para  a ocorrência de “palavrões” ditos por Lula.

O discurso relatado (as falas de ambos) não aparece como sendo uma fala reportada, mas como fala encenada. O texto não aparece reproduzido, como outras falas reportadas comumente aparecem no JN, ele também não é apenas lido, é encenado pelos locutores.

Os trechos do diálogo são entremeados por notícias das investigações, que trazem sempre como fonte a Polícia Federal. Há sempre um destaque marcado, interrompido na leitura, para os “palavrões” ditos por Lula.

O conjunto de matérias tem, no total, 19 minutos. A edição do Jornal Nacional se divide praticamente entre a nomeação de Lula – com espaço para críticas da oposição e manifestação na rua – e as conversas vazadas.

1 de outubro de 2018 – às vésperas da eleição presidencial (que ocorreu em 5 de outubro)

Abertura da matéria: “O ex-ministro Antonio Palocci diz em delação que o ex-presidente Lula sabia da corrupção na Petrobras e que o então presidente encomendou a construção de sondas para garantir, com recursos ilícitos, o futuro do do Partido dos Trabalhadores e a eleição de Dilma Rousseff. Palocci também disse que as campanhas de Dilma de 2010 e 2014 custaram quase três vezes o valor declarado. O PT afirma que o ministro Palocci mente”.

A imagem de fundo para ilustrar é a clássica cena vermelha com um tubo de esgoto por onde escorre dinheiro.

A imagem é animada e vai se alterando à medida que Bonner fala. Quando ele menciona “recursos ilícitos para o Partido dos Trabalhadores”, há uma enorme quantidade de dinheiro escorrendo pelo tubo de esgoto.

Timing perfeito

Esses três momentos mostram uma sintonia excelente num ambiente conjunto de trabalho.

Nos dois primeiros, um timing perfeito na divulgação de conteúdos de investigações em contextos políticos decisivos. No terceiro momento, um alinhamento equilibrado, uma edição ponderada para preservar determinado grupo.

Poderia citar ainda vários outros exemplos de um trabalho em equipe muito bem feito, mas creio que esses bastam para dizer de algo que se consolidou no Brasil de uma forma totalmente avessa ao funcionamento democrático: a “parceria” Jornal Nacional – Lava Jato.

Parceria não explícita e construída no sentido de consolidar uma narrativa e organizar a agenda do debate público de forma enviesada e com um timing perfeito para favorecer determinados atores e cenários.

O Jornal Nacional é historicamente, sobretudo a partir do primeiro mandato de Dilma Rousseff,  o suporte de um sistema de propaganda que, ideologicamente, ressignificou acontecimentos e operou a partir de um viés tendencioso para consolidar um determinado projeto político e econômico.

A partir de determinado momento, tal movimentação passa a ser ancorada e legitimada pela “parceria” estabelecida, de forma velada, com o sistema judiciário, especificamente Operação Lava Jato, que funcionou como voz de autoridade a dar base  às informações transmitidas.

Essa atuação conjunta e em sintonia é essencial para garantir a fabricação do consenso, estratégia que permite o exercício de poder e da dominação sem que haja coerção ou uso de força – como explica Chomsky em “Manufacturing Consent”.

Há portanto um modelo de propaganda que vai sustentar a produção desse consenso, geralmente em torno de um inimigo comum, e tal modelo mobiliza determinados vieses e segue padrões na escolha das notícias (o que é destaque e o que não é).

Esse “trabalho conjunto” foi, sem dúvida, a grande sustentação para a projeção desse inimigo comum (o PT, e Lula de modo mais específico) e a construção do consenso.

Nessa fabricação, o espetáculo, quando conveniente,  ocupa o lugar de um noticiário equilibrado.

Nesse processo de  produção, há também a criminalização da política por meio de um destaque sistemático a um viés negativo dessa prática/ação (dando grande destaque a um tema recorrente, presente em boa parte do noticiário, que foi a corrupção).

Há ainda a construção de enunciados narrativos que privilegiam o espetáculo (quase sempre no viés do triunfo da punição), o místico, em detrimento do racional.

Nessa projeção de um inimigo comum, há um grande tema que se impõe, a corrupção, “revelada”, como algo até então inédito no país e trazida à cena por uma voz que está autorizada a dizê-lo –  o Judiciário,  mais especificamente a Lava Jato.

Quando conveniente, o equilíbrio das vozes é marcado, como no exemplo três da cobertura das conversas divulgadas pelo The Intercept.

Num campo de disputa de poder, é sempre importante buscar os aliados. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

*Eliara Santana é jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.


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Comentários

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Julio

Por causa disso que deixei, à anos de assistir essa emissora lixo, e não sinto a menor falta. Muito pelo contrário, só me trouxe benefícios intelectuais.

Zé Maria

Vídeo-Resumo:

https://twitter.com/i/status/1138534453779861504

abelardo

Penso, que a grande mídia, e em especial a Globo, se não por convicção, por conivência, por omissão, por proteção, por domínio do fato ou participação, não poderá ser eximida de culpa, em toda essa orgia jurídica/policial ilegal e criminosa. Imagino que o muito ainda a ser revelado, terá capítulos especiais dedicados ao envolvimento consciente, seletivo e eleitoral/partidário da grande mídia. Os possíveis capítulos desnudará a falsa afirmação de não haver partidarismo, favorecimento, preconceito, parcialidade e isenção jornalistica por parte da grande mídia, como vejo fazer agora e vergonhosamente o jornal nacional que insiste em defender o ex-juiz e não qualificar a grande reportagem e o grande furo de reportagem realizado pelo THE INTERCEPT, que deu um olé e uma goleada de profissionalismo na obsoleta, partidária, parcial, decadente e desacreditada grande midia.

Zé Maria

A Globo ajuda a construir uma mentalidade Fascista no Brasil
desde a Ditatura Militar até os dias de hoje.

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