Diretor escolhido para filmar Marielle deu ferramenta para genocídio da juventude negra, diz nota de protesto

Tempo de leitura: 5 min
Anistia Internacional

Do Alma Preta

Na sexta-feira, 6 de março de 2020, a Rede Globo e a Globoplay anunciaram uma série ficcional baseada na vida de Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 continua sem respostas.

Acontece que o projeto anunciado é encabeçado por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino (“Sexo e as Negas”, “Bruna Surfistinhas” e “Tim Maia”), George Moura (“Onde Nascem os Fortes”, “Amores Roubados” e “O Canto da Sereia”) e José Padilha.

É revoltante.

No entanto, numa sociedade capitalista, não surpreende que a história de uma mulher negra seja contada a partir do ponto de vista de três pessoas brancas.

A única surpresa é o fato de terem demorado tanto para anunciar o projeto, visto a sanha que têm de se apropriar dessa história há tanto tempo.

Mas o desastre fica maior a cada detalhe.

O diretor escolhido para comandar a série é o homem que deu e dá ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país.

É uma violência extrema envolver numa série sobre Marielle o autor de filmes que retrataram de forma heroica a polícia mais violenta do país.

Para se ter uma ideia, após Tropa de Elite, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente.

O retrato ali inspirou e inspira ações violentas em todo o país.

Não à toa, a música tema da tropa no filme apareceu em dezenas de vídeos de apoio ao presidente em exercício.

É o filme que mais exaltou o tema “bandido bom é bandido morto”, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia.

Além disso, ficcionalizar em torno de um crime que ainda está sendo investigado também é uma violência e uma naturalização do crime violento e dos 13 tiros disparados contra o carro de Marielle, que vitimaram ela e o motorista Anderson Gomes.

Depois disso, Padilha ainda dirigiu a série “O Mecanismo”, cujas falsificações históricas só fizeram recrudescer o discurso fascista que resultou no governo mais autoritário e violento das últimas décadas no Brasil.

É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra, lésbica, favelada, mãe, filha, irmã e esposa.

Para defender sua propriedade de contar a história de Marielle, Antonia Pellegrino usou como argumento: “eu a conhecia muito bem”, “eu ajudei na sua primeira campanha”, “eu segurei o seu caixão”.

Mas a mesma pessoa que diz ter se inspirado em Marielle e diz ter respeito pelo feminismo negro, se lança como arauto para contar essa história aliada aos seus pares, masculinos e brancos.

Tudo isso é extremamente violento.

É um desrespeito a tudo que Marielle defendia.

Se qualquer uma dessas pessoas tivesse entendido de fato a luta de Marielle, saberia o quão violento é fazer esse projeto encabeçado apenas por pessoas que não refletem sua imagem e semelhança.

Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história.

Um valor que vai ficar na mão daqueles que sempre dominaram o audiovisual no Brasil.

Ter em algum momento convivido ou lutado ao lado de Marielle não tira o peso da decisão de se apropriar da história dela dessa forma.

Padilha disse em entrevista ao “O Globo” que “se dedicou por muito tempo a histórias de violência urbana do Rio. Essa é uma que precisa ser contada”.

A história de Marielle é muito mais do que apenas a violência institucional.

Ela é muito mais do que uma vítima da violência urbana que tentam fazer parecer.

Seu assassinato é o reflexo da necropolítica que ela denunciava.

A história de Marielle é também a história das tecnologias afetivas, pois Marielle sempre falou sobre afeto, empatia, mulheres lutando juntas, jovens negras movendo estruturas.

A branquitude quer se apropriar e narrar essa história sem ao menos entender sobre o que ela é.

Tudo isso é desesperador demais.

Às mulheres e homens pretos e lésbicas foi negado o direito de contar essa história.

Pois ainda que o racismo estrutural e institucional tente nos paralisar, homens e mulheres negros e negras se tornaram grandes realizadores, comandando produções e recebendo reconhecimento aqui e fora o Brasil.

Por isso, é ainda mais perverso saber que essa história só será contata se for produzida por essas pessoas, pois o racismo produziu mecanismo para distanciar pessoas negras do direito de contar a própria história.

Quem trabalha no audiovisual conhece bem as estratégias perversas da branquitude que domina esse meio e entende o código por trás de afirmações “bem intencionadas” sobre transformar a série numa “escola”.

Isso significa que as decisões finais serão todas tomadas por brancos e que os profissionais não-brancos da equipe terão no máximo o direito de brigar e adoecer tentando deixar a narrativa menos racista, sendo subjugados pelo tokenismo.

Marielle, em sua última fala pública, contou a respeito da prefeitura do Rio: “primeiro eles saem chutando a porta, depois eles pedem desculpas e por último oferecem um microcrédito, que não repara nada”.

Esse é o modus operandi da branquitude.

Se apropriar como se tudo a ela pertencesse: nosso corpos, nossa subjetividade, nossa história.

É um desastre, é violento e racista.

Assinam a nota:

1 – Ana Julia Travia – Roteirista e Diretora
2 – Maíra Oliveira – Roteirista e Dramaturga
3 – Mariani Ferreira – Roteirista
4 – Renata Martins – Roteirista e Diretora
5 – Myrza Muniz – Roteirista
6 – Carol Rodrigues – Roteirista e Diretora
7 – Jeferson da Silva Brum – Produtor e Distribuidor
8 – Gautier Lee – Roteirista e Diretora
9 – Ulisses da Motta Costa – Diretor
10 – Luiz Santana – Roteirista
11- Juliana Balhego – Realizadora Audiovisual
12 – Phelipe Caetano – Roteirista
13 – Adriana Silva – Produtora e Roteirista
14 – Lorena Montenegro – Roteirista e Crítica de Cinema
15 – Maitê Freitas – Jornalista
16 – Viviane Pistache – Roteirista, Doutoranda e Crítica
17 – Mariana Luiza – Roteirista e Diretora
18 – Thaise de Oliveira Machado – Diretora de Arte
19 – Daniel Ramos – Antropólogo
20 – Bruno dos Anjos Soeiro de Souza – Diretor de Fotografia
21 – Paulo Souza – Atriz
22 – Laís Werneck Oliveira – Produtora
23 – Manuela da Fonseca Miranda – Atriz
24 – Frederico Rosa da Paz – Produtor
25 – Daniela Israel – Produtora e Diretora
26 – Cibele Amaral – Roteirista e Diretora
27 – Gabriella Padilha Scott – Realizadora Audiovisual
28 – Roberta Rangel – Atriz e Realizadora
29 – Jessica Queiroz – Diretora e Montadora
30 – Julia Tolentino – Realizadora Audiovisual
31 – Maria Clara – Roteirista e Publicitária
32 – Caroline Moreira – Empreendedora
33 – Jonathan Raymundo – Produtor do Wakanda in Madureira
34 – Carmen Faustino – Escritora e Produtora Cultural
35 – Tabatha Sanches – Cantora e Professora
36 – Kelly Adriano de Oliveira – Antropóloga, Educadora e Gestora Cultural
37 – Eliana Alves Cruz – Escritora e Jornalista
38 – Sabrina Fidalgo – Roteirista e Diretora
39 – Luciana Damasceno – Atriz e Roteirista
40 – Bianca Joy Porte – Atriz e Roteirista
41 – Jorane Castro – Roteirista e Diretora
42 – Marília Nogueira – Roteirista e Diretora
43 – Sílvia Godinho – Diretora, Roteirista e Produtora
44 – Erica Malunguinho – Deputada Estadual do PSOL
45 – Rafaela Carmelo – Diretora e Roteirista
46 – Érica Sarmet – Roteirista, Diretora e Pesquisadora
47 – Jorge Washington – Ator fundador e membro do Colegiado gestor do Bando de Teatro Olodum
48 – Gabriel Nascimento – Professor, Pesquisador e Escritor
49 – Gabriela Ramos – Advogada e Pesquisadora
50 – Pedro Borges – Jornalista e co-fundador do Alma Preta
51 – Claudia Alves – Roteirista e Diretora
52 – Estevão Ribeiro – Roteirista e Escritor, criador da tirinha Rê Tinta
53 – Rafael Mike – Roteirista – Compositor, Cantor e Diretor Musical (Dream Team do Passinho)
54 – Thamyra Thamara de Araújo – Jornalista e Roteirista
55 – Ana Pacheco – Roteirista
56 – Thiago Bernardes – Músico e Educador
57 – Éthel Oliveira – Cineasta e Cineclubista
58 – Luiza Romão – Atriz e Slammer
59 – Marina Luísa Silva – Pesquisadora e Roteirista
60 – Eric Paiva – Roteirista
61 – Bruna Fortes – Montadora
62 – Ton Apolinário – Roteirista
63 – Atilon Lima – Audiovisualista e Fotógrafo
64 – Mariana Costa – Pesquisadora
65- Monique Rocco – Diretora de Produção
66 – Karoline Maia – Diretora
67 – Ébano Gama – Publicitário
68 – Nêga Lucas – Atriz, Diretora, Escritora


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Comentários

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Marcos Videira

Penso que o problema com o Zé Padilha não é o fato dele ser branco. O problema é o fato dele ser FASCISTA. E Marielle foi assassinada por milicianos ligados a fascistas.

Eduardo

É a Globo se apropriando do espólio de Marielle! Milhôes de dólares serão lucrados pela Globo nessa empreitada capitalista, tudo o mais que diga e faça é justificação para seus abundantes lucros que Marielle dará à Globo! Se a Globo pagar seus custos e retirar lucro injustificado de 20%, ainda assim restarão milhões de dólares que a TV que se diz patriota e defensora de direitos estará investindo em outras empreitadas de mesmo propósito: “ Gerar riqueza se apropriando de espólios de homens e mulheres que amam o próximo e fazem de suas histórias simples a riqueza de
mercenarios.A Globo é certamente um dos maiores mercenarios brasileiros, especialista em fazer riqueza com o espólio humanistico de grandes brasileiros É a arte de ganhar milhões para poucos mercenarios, com mínimo investimento e quase nenhum trabalho ou esforço!

Zé Maria

Documentário Biográfico ‘Ficcional’ ? Cômassím ?!?

Seria Criatividade, não fosse Sem-Vergonhice
da Globo Falcatrua associada ao Padilha Mercenário.

    Zé Maria

    GLOBO FALCATRUA COMPROU DIRETOR MERCENÁRIO
    PARA DIRIGIR FILME SOBRE MARIELLE FRANCO

    José Padilha estava por assinar Contrato com a Amazon

    “A Globo fez uma oferta muito mais generosa”

    Em uma só jogada, a Globo deu duros golpes na Netflix e na Amazon, maiores rivais de sua plataforma de streaming, a Globoplay, em território nacional.
    A emissora contratou o cineasta José Padilha … e conseguiu levar
    para seus estúdios uma série ficcional sobre o assassinato de
    Marielle Franco (1979-2018) que já estava negociada com a Amazon,
    com contrato pronto (mas não assinado).
    […]
    Ele será o produtor-executivo e o diretor do primeiro e do último episódios da série, que já estava negociada com a Amazon
    quando a Globo resolveu “atravessar” o acordo.
    […]
    Os textos serão desenvolvidos a partir de argumento desenvolvido pela escritora e roteirista Antonia Pellegrino, mulher do deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL, mesmo partido de Marielle.

    Na Globo, Antonia foi coautora de novelas –Da Cor do Pecado (2004)
    e Aquele Beijo (2011), entre outras– e de seriados –o último foi
    Pé na Cova (2013).
    No cinema, assinou o texto de Bruna Surfistinha (2011).

    A sala de roteiristas será liderada por George Moura (de Onde Nascem os Fortes).

    “A Globo fez uma oferta muito mais generosa”,
    disse [o Mercenário] Padilha sobre a troca de plataformas …

    [Reportagem: Daniel Castro, no UOL]
    https://noticiasdatv.uol.com.br/canal/daniel-castro-19
    .
    “Infelizmente, Marielle Franco foi transformada em marca, em capital.
    A burguesia branca e cínica rebaixa as vidas negras à carne mais barata do mercado.
    A ideia de um projeto sobre Marielle promovido por brancos e golpistas é de dar engulhos.” (https://t.co/EtNxS3NDVr)

    MÁRCIA TIBURI, Escritora e Desenhista,
    Professora de Filosofia (Université Paris 8),
    Candidata do PT ao Governo do RJ (2018).
    https://twitter.com/marciatiburi/status/1236690990909489155

    https://twitter.com/BuubaAguiar/status/1236665317205651458
    https://twitter.com/mellynareis/status/1236663039711219712
    https://twitter.com/mellynareis/status/1236667061323137025
    https://twitter.com/biabionica/status/1236697483943849984

    A Globo patrocinando uma ‘cinebiogragia’ da Marielle Franco
    dirigida pelo Capitão Nascimento com roteiro do Sergio Moro.

    Não duvidem se a Marielle aparecer, quando criança, com cabelo
    alisado e pintado de loiro, vestida de Paquita cantando ‘ilariê’ da
    Xuxa ou ‘vou de táxi’ da Angélica …

    As Milícias Assassinas do Rio de Janeiro certamente não serão
    ligadas aos Militares da PM e do Exército, mas vinculadas aos
    ‘narco-traficantes terroristas’ do Morro, como braços das FARC,
    com conexões com os ‘bolivarianos’ do Foro de São Paulo.

    E com certeza no final da vida, em depressão profunda, Marielle
    cometerá Suicídio, com 4 (quatro) tiros de Fuzil na Cabeça.

    O Olavão, Astrólogo da Virgínia e Guru dos Bolsonaro, vai adorar.

    https://twitter.com/VIOMUNDO/status/1236675722422427651
    https://twitter.com/Recine12/status/1236675617145401347
    https://twitter.com/apellegrino/status/1236656703590084609
    https://twitter.com/monica_benicio/status/1236702806041595904

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