Cunca Bocayuva: Na hora em que o fascismo reaparece no mundo grande e terrível, Gramsci é fonte de inspiração

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Fotos: Peter Ilicciev/Fiocruz e reprodução

Hegemonia e resistência democrática no mundo grande e terrível

por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva*, especial para o Viomundo

“No mundo grande e terrível” a leitura da obra do italiano Antonio Gramsci (1891-1937) é uma ferramenta e guia para a resistência política.

A frase de Gramsci, que abre este parágrafo, está em suas Cartas do Cárcere, que intitulam filme e livro recém- lançados na Itália, marcando sua obra inseparável das circunstâncias da sua vida.

Militante, jornalista e pensador político, Gramsci se tornou a mais importante referência para a construção de uma teoria marxista da política.

A sua obra de intelectual da periferia italiana, da Sardenha, de jornalista de cultura e política, de educador e dirigente político na Turim dos Conselhos de fábrica e das greves de ocupação do biênio vermelho (1919-1920) se fizeram acompanhar de seus escritos políticos, de crítica cultural e literária.

Estudioso de linguística e literatura, editor de periódicos e dirigente socialista, ele acompanhou o processo de lutas desencadeado pela Revolução Russa que levou à visão que formou o Partido Comunista Italiano como parte da Terceira Internacional Comunista.

Como parte da experiência do período revolucionário (1917-1922), ele se tornou quadro da Terceira Internacional, já ligado na posição da frente única (principalmente a partir de 1924) e, ainda, conheceu sua esposa e se casou na Rússia.

Feito dirigente máximo do partido, ele foi eleito deputado. Até mesmo Mussolini fez questão de ouvi-lo discursar.

Preso e condenado em 1927, até a sua morte, em 1937, esteve no cárcere fascista.

Apoiado, disputado e atacado desde o cárcere, ele foi prisioneiro afetado pela sua posição emblemática de herói, pelo peso de sua inteligência que, segundo os fascistas, precisava ser detida.

Objeto de disputa para e pelo partido, envolvido nas relações entre URSS e Itália, teve a vida marcada pela debilidade física desde a infância. Várias doenças afetaram suas condições de sobrevivência e o levaram à morte numa clínica do sistema penal.

A luta pelo direito de ler e escrever acabou resultando numa estratégia de sobrevivência, numa necessidade para o Partido e numa forma de controle por parte de seus carcereiros.

Limitado e censurado marcou a sua resistência, dialogando com o “mundo grande e terrível” através das cartas,  da vivência no cotidiano prisional e do estímulo de um trio: Tatiana Shucht, sua cunhada; Piero Sraffa, economista e admirador;  e Palmiro Togliatti, seu companheiro, sucessor no comando do Partido e dirigente da Internacional.

Além de escrever centenas de artigos antes da prisão, escreveu as cartas que são premiadas como obra literária.

As Cartas são textos de enorme grandeza, humanidade, sensibilidade e cuja qualidade da escrita o consagraram.

Gramsci  não escreveu nem editou livros durante a vida, que se tornou um exemplo de resistência ao fascismo, de criação e potência intelectual na adversidade.

As Cartas servem de referência para relacionarmos suas condições de espírito e a produção de uma obra que teve de ser repensada, já que se esgotavam as possibilidades de liberdade através de indulto ou de negociação entre estados.

Mas é nos seus cadernos de cárcere que se abrem os caminhos para que o seu pensamento se transforme em referência.

Controlados, disputados e protegidos são a fonte de inspiração e a abertura de muitos impulsos para pensar o Partido Político (intelectual coletivo e moderno príncipe), o Estado (ampliado e a hegemonia), a Revolução (na força jacobina, nas formas passivas e na dimensão estratégica de formação de um novo Estado e de uma nova base material, dentro dos marcos das possibilidades históricas).

Gramsci tratou dos intelectuais, da formação do Estado Nacional na Itália, do Renascimento ao Risorgimento.

A filosofia, a cultura, os intelectuais, o fascismo, o americanismo, o cesarismo, o jacobinismo, o liberalismo e as correntes socialistas.

Devorou e estudou sistematicamente tudo o que pode e como pode.

Enfrentou com maior ou menor profundidade seus planos de estudo. Chegou a vislumbrar dimensões de mutações no regime soviético, na natureza do Estado capitalista, no estudo das conjunturas e na análise de situação.

A ruptura de Gramsci com o esquerdismo, o economicismo e a estadolatria fizeram dele um precursor das reflexões sobre democracia e socialismo, que foram objeto de ampla disputa no que se chamou de marxismo ocidental.

Articulando um fio de leitura desde Maquiavel até Marx, colocou o pensamento leninista e a experiência das alianças e da frente única para pensar a Revolução no Ocidente como “guerra de posição”.

Avançou na elaboração de categorias que influenciaram a teoria e a práxis das esquerdas, que serviram de referência para uma nova estratégia socialista e alcançaram o pensamento, a filosofia e a ciência política através do impacto de sua visão do Estado Ampliado.

A obra de Gramsci atravessa continentes e barreiras disciplinares, suas categorias ganham vida própria e são instrumentalizadas, como é o caso da noção de hegemonia, com impacto extraordinário nas definições de política, poder (em especial ante os processos de mudança), crise, transição, catarse e ruptura, que marcam os conflitos e a formação de novas relações de força, de novos regimes e Estados e das distintas articulações entre economia, política e sociedade, através da formação do que chamou “bloco histórico”.

Na Itália, uma terceira “edição nacional” da obra de Antonio Gramsci vem reabrindo novas vias para o estudo de sua obra, pensamento e leitura crítica dos cadernos. .

O alcance de sua obra se coloca em contraponto em várias áreas acadêmicas, reconhecido por adversários e inimigos, leitura obrigatória para quem precisa pensar em chave inteligente e crítica sobre o agir estratégico, os movimentos da história e a complexidade do Estado, dos aparelhos de hegemonia e da função intelectual.

Seu humanismo e abertura para a filosofia pela noção de práxis coloca o processo de conhecimento, a pedagogia e a cultura no centro da necessidade e da produção humana para pensar os desafios da modernidade e do processo civilizatório, levando em conta o filão do cristianismo, a história da Europa, as obras de Benedetto Croce e Antonio Labriola, que lhe fazem escapar do economicismo e do materialismo vulgar.

Traduzido para o português na chave clássica do dispositivo Togliatti, o livro de Gramsci recebeu novo tratamento, que aproveitou os avanços da edição de Valentino Gerratana, da edição temática para a edição por ordem dos cadernos.

No Brasil, esse processo vem sendo acompanhado pela vertente brasileira da International Gramsci Society (IGS-Brasil) e pelos inúmeros grupos e coletivos que estudam Gramsci dentro e fora das Universidades.

Em vez de perder força, Gramsci ganha-a, já que a vitória do capitalismo sobre o socialismo real só lança o mundo na direção de quadros de crise de hegemonia e de catástrofe, com regressão política e morbidez, apesar da dimensão e alcance da revolução tecnológica e do capitalismo globalizado.

A atualidade de Gramsci ganhou consistência na ferramenta extraordinária da elaboração do Dicionário Gramsciano, de Guido Liguori e Pasquale Voza, editado em português pela Boitempo.

Nele reverbera a força os conceitos de Gramsci frente aos limites para copiar a URSS, do alcance heurístico da noção de revolução passiva nas suas mais diversas formas e da preocupação em situar um pensamento que articulava a radicalidade democrática na relação com o conhecimento com o agir histórico do homem coletivo.

Na leitura de Gramsci, podemos destacar a capacidade de desvendar as relações de poder, de analisar as situações e de pensar os grandes e pequenos aparelhos que atravessam e organizam a disputa da organização, da direção intelectual e moral na vida social e dos rumos das distintas formações nacionais no quadro de relações internacionais relacionadas com os grandes poderes.

Escalas, formas, processos na relação com o poder, a política, a guerra e o Estado permitiram que Gramsci nos legasse uma importante percepção da relação entre crise orgânica e pequena política, decisiva para entendermos nosso processo político atual e os movimentos de luta que marcam a crise de hegemonia na América Latina diante do colapso do fordismo e do americanismo na chave Ocidental.

Gramsci, como um autor clássico, nos deixou uma obra aberta, inacabada, marcada pela luta, pela disputa e que tem servido de dispositivo intelectual, científico e, principalmente, de referência para a construção de novas vias de ação e organização para se navegar com mais consistência nos mares revoltos do mundo grande e terrível.

Na hora em que o fascismo reaparece no horizonte histórico do mundo grande e terrível, a leitura da obra de Gramsci é inspiradora como fonte biográfica, literária, histórica, filosófica e ética.

Através da leitura e pesquisa dos Cadernos de Cárcere, podemos buscar uma relação mais intensa de elaboração crítica do pensamento sobre a política e a imanência das subjetividades coletivas num quadro de hegemonia às avessas.

Neste novo ciclo da globalização neoliberal, a destruição da política exige um trabalho desafiante para a inteligência coletiva, a juventude, as forças que assumem a responsabilidade ética ante ao colapso da modernidade na forma política de regimes de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como o de Bolsonaro.

Vivemos em uma situação em que tod@s e tod@s que trabalham para traduzir lutas, culturas, línguas, experiências, relacionando vozes e movimentos, acabam esbarrando na questão da busca da hegemonia.

Ou seja, na necessidade de trabalhar esta categoria como categoria chave ou guia para pensar a grande política através de uma verdadeira reforma intelectual e moral que se relaciona com as pistas lançadas por Gramsci.

A batalha pela sociedade autorregulada, pela autonomia intelectual e crítica, pela construção da intelectualidade coletiva e dos instrumentos e formas de organização que podem contribuir para a superação do quadro de crise orgânica — global, nacional e local — na direção da democracia e da emancipação humana neste mundo grande e terrível.

*Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do  Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ) e membro  do Grupo Gramsci e a Modernidade).


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Zé Maria

Governador Genocida do Rio de Janeiro se ajoelha aos pés de Gabriel,
Atacante do Flamengo, implorando por uma foto com o Goleador.
https://twitter.com/i/status/1198587488052404233

https://pbs.twimg.com/media/EKJdBLnXsAAoxsU.jpg
Depois que, numa nítida forçação de barra, conseguiu uma foto ridícula,
a PM Genocida baixou o cacete na torcida rubro-negra e atirou bombas
no meio da multidão de torcedores, acabando com a festa do bi da
Libertadores da América.
Evidente que isto aconteceria, pois eram rubros e negros comemorando.
https://pbs.twimg.com/media/EKKVjB0X0AAXkTm.jpg

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