@beattrice_ : Pensa o quê???

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PENSA O QUÊ???

@beattrice_
RR

10 minutos para meia-noite.

Plantão tranquilo, ou quase, nenhuma parada, ainda, ao menos.

Atendimentos regulares, noite adentro.

Passando pelo café, um socorrista e um técnico de radiologia falavam por videochamada cumprimentando mulher, filhos.

Mais um café, cumprimento a ambos, desejo a um ambos bom ano, uma boa vida e seguimos.

À medida que a virada do ano se aproxima todos nos cumprimentamos, em grupo, em dupla, um a um, desejamos uns aos outros boa vida aos pacientes, acompanhantes e seguimos.

Quem poderia imaginar, havia notícias, mas pareciam distantes, rumores, mas pareciam improváveis, algum tipo de gripe do outro lado do mundo, nada mais, seguimos.

O que aconteceu mais à frente, o distante e o improvável se fizeram presentes e inadiáveis, não era gripe e não estava mais tão distante, era presente, palpável, avassalador.

Os dias e os meses foram construídos, um após o outro, como um edifício de perdas, lutos, urgências, lágrimas contidas, silêncios entrecortados por ordens, sussurros, gritos e desolação.

À frente a expectativa de que o tempo declarasse o fim de tanta peculiaridade, pois o tempo varreu subitamente a rotina e instalou dias singulares, horas singulares, que se repetiam na mesma tragédia, na mesma dor, mas jamais se repetiriam no convívio de trocas cotidianas com os mesmos personagens.

O tempo acelerou e impôs ritmo próprio de ordenação das atitudes, dos fatos e na abstração do medo, do cuidado extremo aboliu o contato, o toque, o tato, a percepção de si e do outro na pele.

Não é pouca coisa, o humano em nós desde cedo, toca, experimenta, percebe, com as mãos com a pele do corpo e subitamente este sentido foi contido, suprimido, abortado.

Quando os meses construíram finalmente o 1° ano de privações surgiram “paripassu” as diferenças, valores, critérios, prioridades, ambições.

Ambicionar um por do sol, abraçar a saudade e a ausência, ansiando por ter nos braços um filho, uma mãe, um amor!

Ambicionar conquistas de outra ordem, material, umas e outras em conflito diante do veto, do risco, do “querer” derrotado diariamente pelo “poder”.

A esperança líquida injetada surge como um bálsamo, um elixir redimindo tanta resiliência, tanta renúncia, sem de fato nenhuma resignação.

Esperança que uma vez mais o tempo subjugou com novas reviravoltas e desafios postergando indefinidamente cada ambição, cada desejo, não para todos.

Das diferentes prioridades vieram os mais díspares atos, decisões, e tudo que deles adviria, riscos, para todos.

10 minutos para meia-noite.

Plantão afobado, nunca mais houve tão somente atendimentos regulares, noite adentro.

Muitos se foram, pela morte, pela doença, pela dor íntima insustentável diante de tanta impotência, de tanta agressão.

Não há mais riso, abraços, toques de mão, não há planos, não há certezas, não há expectativas, nem indecisão.

Dentre tantas lições, a de “decidir rápido sem olhar para trás” certamente nunca nos deixará.

Mas lá fora, já não se contêm, não querem ou não podem, fato não se contêm.

Pensa o quê?

Em poucos dias à frente teremos outro “aniversário”, o daquela madrugada sombria em que diante de uma cena inenarrável vimos muitos partirem, morrerem, sucumbirem asfixiados pela falta de oxigênio, cena inimaginável até então e indelével das nossas retinas, cansadas, abarrotadas de outros tantos terrores, antes e depois.

Pensa o quê?

A todos falta leveza, a todos falta dançar, cantar, brincar, viver. Amar.

Mas nem todos podem, pois a muitos toca o cuidar.

Pensa o quê?

A todos falta o encontro, o abraço, o beijo.

Mas nem todos podem, pois a muitos toca o cuidar.

Pensa o quê?


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Zé Maria

Após a Pandemia, o Brasil ficará com uma dívida de
agradecimento aos Profissionais de Saúde do SUS.

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