O drama real dos 100 mil mortos

Tempo de leitura: 5 min
Reprodução

O primeiro Dia dos Pais dos viúvos da Covid-19

Neste domingo (9), muitos homens passarão o Dia dos Pais como pais solos por causa da Covid-19. Ouvimos três deles, que falam de luto e dor, mas ainda de força e esperança em dias melhores. Esta também é uma homenagem de Marie Claire aos que perderam seus amores para pandemia

MANUELA AZENHA, em COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE

Aricia Paola Campelo Gomes estava grávida de 6 meses e meio quando foi hospitalizada em Manacapuru, região metropolitana de Manaus, por descolamento de placenta.

Como era gravidez de risco, foi transferida para a capital do Amazonas após 3 dias.

A neném estava saudável, mas Aricia começou a apresentar sintomas de Covid-19 e colocada em isolamento.

Foi transferida outra vez, agora para uma maternidade especializada em coronavírus.

O quadro respiratório agravou e, entubada, aos 29 anos deu à luz com 7 meses de gravidez.

Após o parto, Aricia melhorou e alguns dias depois foi desentubada.

No entanto, na mesma noite, sofreu uma série de paradas cardíacas e morreu, deixando a filha, Maria Liz, com uma semana de vida na UTI e o companheiro, Claudinei Pinheiro da Silva.

Segundo ele, Aricia não tinha nenhuma comorbidade.

Assim como Claudinei, neste domingo (9) muitos outros homens passarão o Dia dos Pais como pais solos por causa da Covid-19.

O Brasil é o país que mais registrou mortes por coronavírus entre grávidas: até 1º de agosto, foram 135 mulheres.

Quando consideradas também as puérperas, foram 236 óbitos em todo país até 29 de julho, de um total de 2.904 casos confirmados, segundo dados do Ministério da Saúde apresentados na quarta-feira (5).

O país concentra 77% das mortes de gestantes e puérperas do mundo, de acordo com uma pesquisa realizada por especialistas brasileiros e publicado em julho no jornal científico International Journal of Gynecology & Obstetrics.

Claudinei pôde levar sua filha para casa há duas semanas.

“Nasceu prematura, mas agora já está bem. Com um mês e alguns dias, é forte, saudável e esperta. Hoje, minha filha é o meu maior incentivo porque é uma vitoriosa por tudo que já passou. É um amor que só aumenta a cada dia”, diz o pai, jogador de futebol profissional.

“Estou me virando bem, aprendendo a cada dia com os gestos dela, com o jeitinho dela. Não tenho tido dificuldade por já ter criado meu filho pequeno de 4 anos, que sempre foi grudado comigo”.

O jogador pediu demissão do Grêmio Atlético de Sampaio, de Roraima, para ficar em Manaus, onde vive temporariamente com a sogra. Desempregado, espera acertar com algum clube do Amazonas.

Bruno Bulcão Castro, de Parintins, Amazonas, também perdeu a mulher, Thereza Cristina, para a Covid-19.

Em fevereiro deste ano, descobriram que ela tinha lúpus. Logo depois veio a pandemia.

Com uma filha de 9 anos, o professor de matemática diz que estão tentando reconstruir uma rotina.

“Depois que minha esposa faleceu, eu queria morrer. Estava com Thereza desde os 15 anos de idade. Eu e minha filha agora vivemos em uma casa enorme só nós dois, não sei o que fazer. Está tudo arrumado como antes, parece que a Thereza vai chegar a qualquer instante. Sigo a viver por minha filha. Tento me fazer de forte, ir ao banheiro ou esperá-la dormir para chorar, continuar a fazer as tarefinhas de escolas dela”.

Bruno conta que, desde a morte da esposa, no dia 22 de junho, a filha Thaila dorme no quarto do pai.

“Um dia fui ao banheiro durante a noite e fiquei de coração partido. Acendi a luz do corredor e o quarto ficou à meia-luz, então pude ver que ela estava olhando para o teto. Sem dormir, quietinha na cama, pensando nas coisas”, conta.

“A Thaila também tem os momentos dela de tristeza, mas por incrível que pareça, choro mais que ela. Minha filha fica triste, mas tenta segurar. Ela me abraça e diz que vai cuidar de mim. Outro dia Thaila falou que a garganta estava doendo. Eu fui ver, não era garganta inflamada, era só ela segurando o choro”.

Sobre a possibilidade de volta às aulas, o professor diz que não acha seguro que a filha retorne à escola.

“E sinceramente, não posso mais perder ninguém. Falo para meus amigos que a vida é tão breve. Sei que agora não dá para fazer o que gostaríamos, mas temos que viver com o máximo de amor e carinho que pudermos”.

Bruno também perdeu o pai quando era criança, eletrocutado enquanto empurrava uma alegoria no Festival de Parintins.

“A pior parte é saber que não pude proteger minha família desse mal. Me sentia um lixo enquanto minha esposa estava ali internada e eu não podia nem acompanhá-la. Tomamos todos os cuidados, estávamos em isolamento, limpando tudo. Te juro que não sei como isso foi acontecer. Sempre quis blindar minha filha de todo sofrimento pelo qual passei na minha infância e não consegui”, diz.

O pesadelo de Thiago Prado Andrade começou no dia 1 de maio. Foi o primeiro do casal a sentir os sintomas de Covid-19: febre e dor no corpo.

Decidiu isolar-se com o filho mais novo na casa de praia no litoral norte de São Paulo para não infectar a mulher, Jaqueline Cordeiro Prado, que, por sua vez, cuidava da mãe em tratamento de câncer.

Assim que o marido começou a melhorar, após cinco dias, Jaqueline manifestou os primeiros sintomas.

Thiago voltou para São Paulo para buscá-la e fazerem o isolamento juntos no litoral.

Ela estava com febre e sentia falta de ar, e 3 dias depois voltaram para São Paulo.

Foram direto para o hospital, testaram positivo para Covid e já ficaram internados.

Thiago passou 8 dias. Jaqueline não saiu mais.

No 12º dia de internação, a empresária de 39 anos começou a sofrer complicações.

“Ela estava com a saúde um pouco debilitada e não sabíamos disso. Ela tinha alguma arritmia e uma pneumonia mal curada de criança, que deixou uma pequena cicatriz. E devido a um remédio para emagrecer, desenvolveu diabetes. Ela teve uma parada cardíaca e depois uma complicação neurológica. Ficou uma semana nesse estado de morte neurológica e a gente numa agonia imensa, esperando os falecimentos dos órgãos”, conta Thiago.

Por causa da pandemia, não houve velório e nem enterro.

Thiago decidiu fazer uma cerimônia na praia para homenagear a mulher morta, com amigos e familiares.

“Foi uma bomba, mas nessas horas a gente tira força de onde não tem. A vida tem que continuar, apesar da tristeza, da saudade. Fomos casados por 17 anos. Meus dois filhos [ele tem um de 19 e um de 8 anos] sentem falta da mãe, claro, mas sempre fui presente em casa. Sempre pratiquei esporte com os meninos, skate e surfe. Ela era uma super mãe, mas trabalhava muito. Eu como policial militar tinha mais tempo para ficar com meus filhos então desenvolvemos uma relação muito próxima e eles se sentem seguros comigo. O complicado da paternidade solo é que eu era o pai mais maleável e ela, mais durona. Ela dava bronca e eu amenizava. Agora eu tenho que ser pulso firme e ao mesmo tempo dar carinho. Até mesmo lidar com situações simples, como escola, é um desafio. Aí bate a saudade dela também, o menor às vezes chora. O mais velho é mais uma questão de acompanhar para não fazer besteira. A molecada de hoje é só doideira. Agora que as escolas estão fechadas, minha mãe mudou para minha casa e me ajuda a cuidar deles enquanto estou trabalhando”, diz Thiago, que pediu exoneração da PM após a morte da mulher e agora é quem toca a empresa no ramo têxtil.

“Tínhamos medo de pegar Covid e nos cuidávamos na medida do possível, mas não foi o suficiente. Provavelmente eu peguei a doença no trabalho. Sou do batalhão do Choque, ficamos muito tempo aquartelados em mais de 200 homens, fora na rua, onde temos que abordar pessoas. Ela também teve contato com gente na empresa e na época não era obrigatório o uso de máscara, muita gente não usava ainda”, continua.

Bruno diz que não preparou nada para comemorar o Dia dos Pais.

“Não tenho cabeça para isso. Não sei como vai ser. Thaila me falou: ‘Papai, sei o que quer no Dia dos Pais, mas não posso te dar’. Eu vou preparar meu coração para que ela sinta menos impacto possível e a gente continue nossa vida”.


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

“Não temos para onde ir”:
as famílias em ocupação de SP
que temem o despejo
no auge da pandemia

Todo dia chega mais gente na ocupação Jardim Julieta.
Há cerca de um ano, o terreno baldio na Zona Norte de São Paulo
começou a ser ocupado por pessoas que perderam seus empregos
e foram despejadas durante a pandemia de Covid-19.

| Reportagem: Manuela Azenha, de São Paulo | BBC News BR | 19/03/2021 |

Justiça pode julgar pedido de remoção a qualquer momento

Hoje, vivem no local 840 famílias, segundo a última contagem feita pela associação de moradores. A maioria é chefiada por mulheres.

O terreno pertence à SP Urbanismo, empresa da Prefeitura de São Paulo. A área e seus arredores foram incorporados a um projeto municipal que pretende construir empreendimentos residenciais e não residenciais em parceria com empresas privadas.

A Prefeitura diz que os terrenos serão destinados à construção de 1.580 unidades habitacionais, das quais 71% serão destinadas a famílias de baixa renda, além de “infraestrutura pública, equipamentos públicos, empreendimentos não residenciais privados (visando gerar emprego e renda na região) e prestação de serviços”.

O Ministério Público de São Paulo enviou na época para a Prefeitura um documento no qual defendeu que as remoções e outras medidas administrativas e judiciais poderiam colocar nas ruas milhares de pessoas vulneráveis, contrariando as determinações de autoridades de saúde no combate à pandemia.

“Não se trata aqui de legitimar ocupações de áreas públicas, mas de salvaguardar vidas em tempos de epidemia letal de larga escala”, disse o órgão na época.

Foi também o que recomendou o especialista da Organização das Nações Unidas em direitos para moradia, Balakrishnan Rajagopal.

“A atual crise de saúde exige medidas de emergência, incluindo uma moratória imediata em todos os despejos e remoções”, afirmou ele.

Em agosto, a Prefeitura pediu o adiamento da reintegração de posse da área, devido à gravidade da pandemia de covid-19.

Mas, há um mês, o poder público pediu de novo à Justiça a remoção dos moradores. O caso pode ser julgado a qualquer momento pela juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública, no pior momento da pandemia no país.

Íntegra: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56409697

Deixe seu comentário

Leia também