Aline Blaya: Posso trocar de lugar com esse cachorro?

Tempo de leitura: 3 min
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Por Aline Blaya

Aline Blaya e sua cachorra Shanti, de 1 ano: "Ironicamente, o nome dela significa Paz mas de paz não tem nada". Foto: Isabelle Rieger

Te entendo. Entende?

Por Aline Blaya Martins*

Todos os dias eu saio para passear com a minha cachorra, que se chama Shanti. Ironicamente, significa Paz mas de paz ela não tem nada.

Mas, entre trancos e barrancos, vamos e a filhote recebe amor, comida, proteção, cuidado e “educação”.

Habitualmente no passeio treinamos os comandos “junto” para que ande próxima a mim e “deixa” para que largue de mão coisas que lhe tiram a atenção, tais como mexer no lixo, crianças brincando ou uma briga entre pessoas ou outros animais.

Certo dia, estava ela ao meu lado, linda e alegremente abanando o rabo, quando um rapaz passa por nós e a cachorra faceira vai ao seu encontro, como faz com todos que cruzam nosso caminho.

Nisso ele olha para ela e me fala:

— Por que eu não posso trocar de lugar com esse cachorro???

O foco na cachorra e no treinamento foram para o espaço e no espaço meu olhar buscou o dono da pergunta.

Mandei a cachorra sentar, olhei nos olhos dele e respondi:

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— Eu te entendo, ela realmente teve sorte.

Quando eu era criança, uma vez um peão disse para o meu pai quando um animal nasceu com uma deficiência:

— Sabe, doutor, até para se nascer bicho, nesta vida, é preciso ter sorte…

Quando escutei a pergunta do rapaz, a única coisa que me ocorreu foi o rosto marcado daquele homem que eu observava cuidando pacientemente do campo e dos animais.

Parei no espaço e no tempo e o encontrei na minha memória, envelhecido pelo sol, pela pobreza e pela bebida, sofrido pela lida do campo.

Aquele homem que tanta sabedoria tinha para ensinar com lições que não se ensina nos livros, porque se aprende com corpo e na alma.

O rapaz seguiu:

— Moro na rua, dona, e na rua os caras robam tudo que é da gente. Faz 20 dias que não durmo porque os cara tão robando direto… hoje peguei um cara e briguei… dei uma facada nele e outra no cachorro dele, que me atacou defendendo o dono… mas eu gosto de cachorro, moça, de verdade… o bicho não tinha nada a ver, só que eu não tinha o que fazer naquela hora…

Eu, entre a sensação humana de alerta gerada pelo relato e de respeito diante da gravidade do que o homem me dizia, me mantive com olhos, ouvidos, coração e mente bem abertos.

Acho que, na confusão dos pensamentos, algo em mim se deixou atravessar pela vida e com calma apenas me fiz ouvinte.

Ele seguiu:

— Agora olhei para a tua cachorra, moça, e me deu vontade de chorar, porque isso não devia ser assim! Os cara não deviam robar, eu não devia brigar e as pessoas como tu não deviam ter medo de mim. Tu parou e tá me escutando. Outras pessoas, quando eu dei “bom dia”, saíram da parada de ônibus. Só uma moça ficou, e agora tu.

Eu, a cachorra e ele, parados na esquina.

— É triste. Sabe? Eu queria trocar de lugar com teu cachorro.

Naquela hora viajei lá para o início do nosso quase monólogo e pensei no que eu havia dito para ele.

Eu entendo.

Eu entendo?

E, sem a menor possibilidade de eu antecipar a situação, ele me mostrou as facas que tinha nos bolsos.

Duas facas de serrinha, uma suja de sangue.

Cérebro em alerta. Coração apertado.

“Eu te entendo????”

Não entendo nada e acho que nunca vou entender.

Senti medo. Senti pena. Senti uma profunda tristeza.

Como diz Falero: Mas em que mundo tu vive!?

Por que um cachorro merece mais oportunidade e cuidado que um ser humano?

E não estou glamourizando a situação, porque eu poderia estar tranquilamente conversando com um assassino e realmente senti medo…

Porém, vivemos em um lugar tipo selva, ou bem pior que a selva, onde se mata por quase nada, onde a vida vale nada. Haja visto que meu interlocutor, pessoa tão humana quanto eu, me contou e mostrou uma cicatriz que “ganhou” ao dormir na rua e ao acordar tomando uma facada, no peito…

Ele, as facas e as cicatrizes me deram bom dia neste dia e eu tive certeza de que o peão estava certo: Até para se ser bicho, tem que se ter sorte nesta vida.

Que mundo.

Bom dia para quem?

Tudo me lembra Marcelo Yuka, mais uma vítima disso tudo. E já não sei qual das frases gera mais eco em mim, se “também morre quem atira” ou se “Paz sem voz, não é paz. É medo.”

Ele não tem voz, eu não tenho voz.

Eles nos roubam tudo, mas o pior roubo é o da esperança.

Que sigamos nossos caminhos desafiando tudo. Teimando em esperançar, em olhar nos olhos, em escutar… 

E que jamais aceitemos o inaceitável: depender da sorte de ter nascido em um lugar que se pode chamar de lar. Um lugar onde não se precise sonhar em trocar de lugar com um cachorro.

Aline Blaya Martins: Mulher, mãe, militante social do Coletivo Célia Sánchez, professora, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS

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Aline Blaya

Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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Zé Maria

Os Termos “Sorte” e “Azar” eximem tantos
“Maus Governantes” de Responsabilidade
pela Condição de Miserabilidade Humana.

    Zé Maria

    LUTA DE CLASSES

    Por ‘Luta de Classes’ não devemos entender, como quer a classe dominante,
    a ‘luta da classe’, isto é, as ações do proletariado contra a burguesia.

    O plural ‘Classes’ é essencial: a luta se realiza com as ações cotidianas
    da burguesia para conservar a exploração e a dominação do proletariado,
    bem como nas ações cotidianas do proletariado aceitando ou recusando
    a ação burguesa.
    A Luta de Classes é a forma da relação social numa sociedade dividida
    em classes e, por isso, se realiza tanto na calma rotineira
    do cotidiano,
    nas legislações trabalhistas, nas eleições, como nas ações espetaculares
    das greves, revoltas e revoluções e nas medidas repressivas
    (policiais e militares) da burguesia.”

    MARILENA CHAUÍ

    O trabalho, em si mesmo, é uma das dimensões da vida humana
    que revela nossa humanidade, pois é por ele que dominamos
    as forças da natureza, é por ele que satisfazemos nossas necessidades
    vitais básicas e é nele que exteriorizamos nossa capacidade
    inventiva e criadora — o trabalho exterioriza numa obra a interioridade
    do criador.
    Ou, numa linguagem vinda da filosofia de Hegel, o trabalho objetiva o subjetivo,
    o sujeito se reconhece como produtor do objeto.

    Para que o trabalho se torne alienado, isto é, para que oculte,
    em vez de revelar, a essência dos seres humanos, e para que o trabalhador
    não se reconheça como produtor das obras, é preciso que
    a divisão social do trabalho, imposta historicamente pelo Capitalismo,
    desconsidere as aptidões e capacidades dos indivíduos, suas
    necessidades fundamentais e suas aspirações criadoras,
    e os force a trabalhar para outros como se estivessem
    trabalhando para a sociedade e para si mesmos.

    Em outras palavras, sob os efeitos da divisão social do trabalho
    e da Luta de Classes, o trabalhador individual pertence a uma classe social
    — a classe dos trabalhadores —, que, para sobreviver, se vê obrigada
    a trabalhar para outra classe social — a burguesia —, vendendo
    sua força de trabalho no mercado.
    Ao fazê-lo, o trabalhador aliena para outro (o burguês) sua força de trabalho,
    que, ao ser vendida e comprada, se torna uma mercadoria destinada
    a produzir mercadorias.
    Reduzido à condição de mercadoria que produz mercadorias,
    o trabalho não realiza nenhuma capacidade humana do próprio trabalhador,
    mas cumpre as exigências impostas pelo mercado capitalista.

    Por esse motivo, cada trabalhador individual e a classe trabalhadora
    como um todo não podem reconhecer-se nos produtos que produzem,
    pois esses produtos não exprimem as necessidades e capacidades
    de seus produtores.

    Produzidos por ordem de outros, os produtos são enviados ao
    mercado de consumo e cada trabalhador, ignorando o trabalho de todos
    os que produziram as mercadorias, vê os produtos do trabalho
    como coisas prontas que parecem existir por si mesmas.

    Em suma, o trabalhador não as percebe como objetivação de sua subjetividade
    humana, mas como algo que parece não depender de trabalho algum
    para existir — o produto aparece como ‘outro’ que o produtor.
    Além disso, as condições impostas pelo mercado de trabalho
    são tais que os trabalhadores vendem sua força de trabalho
    por um preço muito inferior ao trabalho que realizam e, por isso,
    se empobrecem à medida que vão produzindo riqueza.

    Isso significa que os produtos do trabalho também não estão ao alcance
    do trabalhador, que os vê no mercado mas não tem como adquiri-los.
    Ou, como diz Lafargue, ‘os operários foram condenados à abstinência
    de todos os bens que produzem’.

    O produto do trabalho se distancia do trabalhador porque foi produzido
    por ordens alheias e não por necessidades e capacidades do próprio trabalhador;
    porque fica exposto num mercado de consumo inalcançável para o trabalhador;
    e porque aparece como uma coisa existente em si e por si mesma,
    e não como resultado da ação do trabalhador.

    Esse tríplice distanciamento é o processo social em que o trabalhador individual
    e a classe trabalhadora não podem reconhecer-se como autores dos produtos
    de seu próprio trabalho.
    Não só isso.
    Ao passar da condição humana à de uma mercadoria, ao tornar-se coisa
    que produz coisas e perder sua própria essência de humanidade,
    o trabalhador se torna “outro” que si mesmo e os produtos do trabalho
    se tornam coisas “outras” que o próprio trabalhador.
    Esse ‘tornar-se outro’ constitui a ‘Alienação do Trabalho’ *.

    Como o trabalhador é uma coisa que produz coisas, a relação social
    do trabalho com o capital (ou entre classes sociais) parece-lhe como se fosse
    uma relação entre coisas, ocultando a verdadeira realidade.

    Além disso, como os preços dos produtos seguem as leis de mercado
    impostas pelos capitalistas e como os trabalhadores precisam
    de muitos desses produtos para sobreviver, eles passam a aceitar
    as piores condições de trabalho, os piores salários, a pobreza,
    a miséria, a fome, o frio, a doença para ter o direito ao trabalho,
    com o que terão salário para comprar o mínimo daquilo que eles mesmos
    produziram.
    Isso significa que os trabalhadores passam a ser dominados pelo mercado:
    são dominados pelo mercado de trabalho porque se veem obrigados
    a aceitar qualquer condição para trabalhar, e são dominados
    pelos produtos do trabalho porque precisam adquiri-los a preços exorbitantes
    no mercado, sem se dar conta de que essas “coisas” nada mais são
    que seu próprio trabalho.

    Comentando os textos de Marx sobre o trabalho alienado, Marcuse escreve:
    ‘Marx apresenta a alienação do trabalho * como exemplificada,
    primeiro, na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho e,
    segundo, na relação do trabalhador com sua própria atividade.
    O trabalhador, na sociedade capitalista, produz mercadorias.
    A produção de mercadorias em larga escala requer capital, grande acumulação de riquezas empregadas exclusivamente para
    incrementar a produção de mercadorias.
    As mercadorias são produzidas [sic] por empresários privados
    independentes, para fins de venda lucrativa.
    O operário trabalha para o capitalista a quem entrega, pelo contrato salarial,
    o produto de seu trabalho.
    O capital é o poder de dispor dos produtos do trabalho.
    Quanto mais o trabalhador produz, maior se torna o poder do capital
    e mais limitados os meios do trabalhador para se apropriar de seus produtos.
    O trabalho se torna, pois, vítima de um poder que ele mesmo criou.
    Marx resume esse processo como se segue:
    – o objeto que o trabalho produz, o seu produto, é enfrentado
    como uma entidade alheia, como uma força que se torna independente
    do seu produtor’.

    Em ‘O Capital’, ao fazer a crítica da economia política burguesa,
    isto é, do capitalismo, Marx introduz novos aspectos na análise do trabalho
    que são importantes para a leitura do texto de Lafargue.

    Marx sublinha a diferença entre o modo de produção capitalista
    e outras formas econômicas, demonstrando que a especificidade
    do capitalismo está em acumular e reproduzir a riqueza social
    e assegurar os meios para a apropriação privada dessa riqueza.

    Nas outras formas econômicas, a riqueza social não aumenta
    nem diminui,
    apenas muda de mãos.

    É assim que um reino rico pode tornar-se pobre ao perder uma guerra
    e ter todos os seus bens transferidos para as mãos do vencedor,
    que se torna mais rico.
    Mas não houve crescimento social da riqueza, não houve produção
    de mais riqueza.
    Houve entesouramento.
    Tesouros desaparecem enquanto outros surgem ou aumentam,
    mas a economia, como um todo, não cresce.

    No capitalismo, ao contrário, a riqueza social cresce, pois a marca própria
    do capital é produzir sempre mais capital.
    Como isso é possível?
    Qual o mistério do crescimento da riqueza social?
    Como a riqueza pode ser acumulada, reproduzida e aumentada?
    Por dois procedimentos:
    pelo primeiro, uma classe social poderosa expropria outras classes sociais
    dos seus meios de produção (terra, instrumentos de trabalho)
    e se apropria privadamente desses meios com os quais aquelas classes
    produziam sua subsistência e um excedente para trocar no mercado;
    pelo segundo, os proprietários privados dos meios de produção
    forçam as classes expropriadas a trabalhar para eles, mediante um salário,
    para produzir os bens que também serão propriedade privada do empregador.
    O trabalho se torna assalariado e submetido às leis da propriedade
    privada capitalista.

    Todavia, Marx introduz duas ideias fundamentais para a compreensão
    do trabalho assalariado como responsável pelo aumento da riqueza,
    isto é, pelo crescimento do capital.

    Em primeiro lugar, Marx já não fala simplesmente em trabalho,
    mas em ‘Força de Trabalho’ para significar que se trata da única propriedade
    que resta ao trabalhador, que irá aliená-la ao vendê-la no mercado
    por um salário.
    Em segundo lugar, não fala simplesmente na quantidade de trabalho
    necessária para produzir uma mercadoria, mas fala no tempo socialmente
    necessário para a produção de mercadorias e que seria levado em conta
    no momento de calcular o preço do salário.

    É esse tempo socialmente necessário que determina a maneira peculiar
    como se realiza a exploração da força de trabalho assalariada
    e explica como e por que o capital tem a capacidade ‘misteriosa’
    de crescer.

    O conceito de tempo de trabalho socialmente necessário significa que
    o custo de produção de uma mercadoria inclui todos os trabalhos
    que foram necessários para chegar ao produto final.
    É o custo social de sua produção.
    Nesse custo, não estão apenas os custos da extração da matéria-prima
    e de seu transporte, nem apenas o custo dos instrumentos e das máquinas
    com que tais matérias são extraídas, transportadas e fabricadas:
    inclui também o salário dos trabalhadores que produzem a mercadoria
    (desde os que extraíram a matéria-prima e fabricaram instrumentos
    e máquinas para sua extração e seu transporte, até os que realizam a
    fabricação do produto final, incluindo os que fabricaram instrumentos
    e máquinas para a produção final e os meios para sua distribuição).
    Em outras palavras, o tempo de trabalho socialmente necessário
    é o conjunto de todos os tempos de trabalho de cada trabalhador individual
    e do conjunto de todos os trabalhadores.

    É esse conceito que nos permite compreender por que os trabalhadores
    formam uma ‘Classe Social’.

    Como dissemos, no custo de produção está incluído o salário.
    Como calcular seu preço?
    Levando em conta o tempo socialmente necessário para a produção
    de uma mercadoria e as necessidades do produtor.

    Suponhamos que para a produção de uma determinada mercadoria
    sejam necessárias oito horas de trabalho e que se calcule que
    cada hora de trabalho vale R$ 20,00 (isto é, um cálculo que mostraria
    que para alimentar-se bem, vestir-se bem, transportar-se bem,
    cuidar bem da família, frequentar escolas, ter férias e lazer,
    ter bons cuidados com a saúde pessoal e da família etc, o trabalhador
    deveria receber essa quantia por hora de trabalho).
    Ele deveria, então, receber R$ 160 pelas oito horas.

    Ora, ele recebe, na melhor das hipóteses, R$ 80,00 e, na pior, R$ 20,00.

    O tempo socialmente necessário empregado pela força de trabalho
    não é integralmente remunerado pelo salário.

    É exatamente esse tempo de trabalho não pago à força de trabalho
    — o que Marx chama de ‘Mais-Valia’ — que faz crescer o capital,
    isto é, o que chamamos de ‘Lucro’.
    Este, portanto, não é obtido no momento da comercialização do produto final,
    e sim no momento em que a força de trabalho não foi remunerada pelo salário.

    Responde-se, portanto, à pergunta:
    – Como o capital cresce e se multiplica?
    – Pela exploração da força de trabalho.
    Essa exploração se chama ‘Trabalho Assalariado’.

    MARILENA CHAUÍ

    Íntegra em:
    https://artepensamento.ims.com.br/item/sobre-o-direito-a-preguica/

    * (https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap01.htm)
    (https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap06.htm)

    Zé Maria

    DINHEIRO

    “O dinheiro, já que possui a propriedade de comprar tudo,
    de apropriar objetos para si mesmo, é, por conseguinte
    ‘o object par excellence’.

    O caráter universal dessa propriedade corresponde à onipotência do dinheiro,
    que é encarado como um ser onipotente. . .
    o dinheiro é a proxeneta entre a necessidade e o objeto, entre a vida humana
    e os meios de subsistência.
    Mas, o que serve de medianeiro à minha vida também serve à existência
    de outros homens para mim.
    Ele é para mim a outra pessoa.

    Escreveu Shakespeare em ‘Tímon de Atenas’:

    ‘Que é isto? Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precioso?
    Não, deuses: eu não faço protestos vãos.
    Raízes quero, ó céus azuis!
    Um pouco disto tornaria o preto branco; o feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre;
    o velho, novo; o covarde, valente.
    Mas, oh, ó deuses! por que é isso? isto que é, deuses?
    Isto fará com que os vossos sacerdotes e os vossos servos se afastem de vós;
    isto fará arrancar o travesseiro de debaixo das cabeças dos homens fortes.
    Este escravo amarelo fará e desfará religiões; abençoará os réprobos;
    fará prestar culto à alvacenta lepra; assentará ladrões, dando-lhes título,
    genuflexões e aplauso, no mesmo banco em que se assentam os senadores;
    isto é que faz com que a inconsolável viúva contraia novas núpcias;
    e com que aquela, que as úlceras purulentas e os hospitais tornavam repugnante,
    fique outra vez perfumada e apetecível como um dia de abril.
    Anda cá, terra maldita, meretriz comum a toda a espécie humana,
    que semeia a desigualdade na turba-malta das Nações,
    vou devolver-te à tua verdadeira natureza.’
    E mais adiante:
    ‘Ó tu, amado regicida; caro divorciador da mútua afeição do filho e do pai;
    brilhante corruptor dos mais puros leitos do Himeneu! valente Marte!
    tu, sempre novo, viçoso, amado galanteador, cujo brilho faz derreter
    a virginal neve do colo de Diana!
    tu, deus visível, que tornas os impossíveis fáceis, e fazes como que se beijem!
    que em todas as línguas te explicas para todos os fins!
    Ó tu, pedra de toque dos corações! trata os homens, teus escravos,
    como rebeldes, e, pela tua virtude, arremessais a todos em discórdias devoradoras,
    a fim de que as feras possam ter o mundo por império!’
    […]
    Shakespeare ressalta particularmente duas propriedades do dinheiro:

    (1) ele é a divindade visível, a transformação de todas as qualidades humanas
    e naturais em seus antônimos, a confusão e inversão universal das coisas;
    ele converte a incompatibilidade em fraternidade;

    (2) ele é a meretriz universal, o alcoviteiro universal entre homens e nações.

    O poder de inverter e confundir todos os atributos humanos e naturais,
    de levar os incompatíveis a confraternizarem, o poder divino do dinheiro reside
    em seu caráter como a vida espécie alienada e auto-alienadora do homem.
    Ele é a força alienada da Humanidade.

    O que sou incapaz de fazer como homem, e, pois, o que todas as minhas faculdades individuais
    são incapazes de fazer, me é possibilitado pelo dinheiro.

    O dinheiro, por conseguinte, transforma cada uma dessas faculdades
    em algo que ela não é, em seu antônimo.
    […]
    A procura também existe para o indivíduo sem dinheiro, mas sua procura
    é mera criatura da imaginação, que não tem efeito nem existência para mim,
    para um terceiro, . . . e que, assim, permanece irreal e sem objeto.

    A diferença entre a procura efetiva, apoiada pelo dinheiro, e a inefetiva, baseada em
    minhas necessidades, minha paixão, meu desejo, etc., é a diferença entre ser e pensar,
    entre a representação meramente interior e a representação existente fora de mim mesmo
    como objeto real.

    Se não disponho de dinheiro para viajar, não tenho necessidade – nenhuma necessidade
    real e auto-realizável – de viajar.
    Se tenho vocação para estudar, mas não disponho do dinheiro para isso,
    então não tenho vocação, i. é, não tenho vocação efetiva, legítima.

    O dinheiro é o meio e poder, externo e universal (não oriundo do homem
    como homem ou da sociedade humana como sociedade) para mudar
    a representação em realidade e a realidade em mera representação.
    Ele transforma faculdades humanas e naturais reais em meras representações abstratas, i. é,
    imperfeições e torturantes quimeras; e, por outro lado, transforma imperfeições e
    fantasias reais,
    faculdades deveras importantes e só existentes na imaginação do indivíduo,
    em
    faculdades e poderes reais.
    A esse respeito, portanto, o dinheiro é a inversão geral das individualidades,
    convertendo-as em seus opostos e associando qualidades contraditórias
    às qualidades delas.

    O dinheiro, então, aparece como uma força demolidora para o indivíduo
    e para os laços sociais, que alegam ser entidades auto-subsistentes.

    Ele converte a fidelidade em infidelidade, amor em ódio, ódio em amor,
    virtude em vício, vício em virtude, servo em senhor, boçalidade em inteligência
    e inteligência em boçalidade.

    Posto que o dinheiro, como conceito existente e ativo do valor, confunde e troca tudo,
    ele é a confusão e transposição universais de todas as coisas, o mundo invertido,
    a confusão e transposição de todos os atributos naturais e humanos.

    Aquele que pode comprar a bravura é bravo, malgrado seja covarde.

    O dinheiro não é trocado por uma qualidade particular, uma coisa particular
    ou uma faculdade humana especifica, porém por todo o mundo objetivo do homem e da natureza.

    Assim, sob o ponto de vista de seu possuidor, ele troca toda qualidade e objeto
    por qualquer outro, ainda que sejam contraditórios.

    Ele é a confraternização dos incomparáveis; força os contrários a abraçarem-se.”

    KARL MARX
    Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844)
    https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap06.htm

    Zé Maria

    TRABALHO ALIENADO

    “O que constitui a alienação do trabalho?

    Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador,
    não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte,
    ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo,
    ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar,
    não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas
    mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido.

    O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga,
    enquanto no trabalho se sente contrafeito.
    Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado.

    Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas
    um meio para satisfazer outras necessidades.

    Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de,
    logo que não haja compulsão física ou outra qualquer,
    ser evitado como uma praga.

    O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem
    se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio,
    de mortificação.

    Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador
    é demonstrado por não ser o trabalho dele [ou para ele] mesmo
    mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer
    a si mesmo mas sim a outra pessoa.

    Tal como na religião, a atividade espontânea da fantasia, do cérebro
    e do coração humanos, reage independentemente como uma atividade
    alheia de deuses ou demônios sobre o indivíduo, assim também a atividade
    do trabalhador não é sua própria atividade espontânea.
    É atividade de outrem e uma perda de sua própria espontaneidade.

    Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente
    livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, ou
    no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento –
    enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal.

    O animal se torna humano e o humano se torna animal.”

    KARL MARX
    Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844)
    Primeiro Manuscrito
    Excerto (XXIII)
    https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap01.htm

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