Jeferson Miola: Identitário não é quem defende pessoa negra no STF, mas quem naturaliza o status quo excludente

Tempo de leitura: 3 min
Ilustração: Benett

Identitário não é quem defende pessoa negra no STF, mas quem naturaliza o status quo excludente

Por Jeferson Miola, em seu blog

É cada vez mais corriqueira a deturpação do conceito de identitário.

Aqueles que defendem a igualdade de representação de mulheres e pessoas negras em todos os espaços da sociedade, sobretudo nos espaços da política e do poder, são rotulados de maneira errada e depreciativa como “identitários”, como se a busca da igualdade fosse um pleito particularista em conflito direto com a perspectiva universal de representação.

Em Emancipação e Diferença, Ernesto Laclau sustenta que “a brecha entre o universal e o particular é irreparável – o que equivale dizer que o universal nada mais é do que um particular que em algum momento se tornou dominante” [página 54].

As relações na sociedade são relações de poder entre diferentes grupos sociais.

“Cada grupo é diferente dos demais e constitui em muitos casos essa diferença com base na exclusão e subordinação dos outros grupos”, explica Laclau.

Para o autor argentino, “se a particularidade se afirmar como mera particularidade, numa relação puramente diferencial com as outras, estará sancionando o status quo das relações de poder entre os grupos”.

Foi isso o que aconteceu no apartheid sul-africano, onde a particularíssima “superioridade” da elite branca minoritária foi evocada para subjugar e inferiorizar politicamente a esmagadora maioria negra.

Essa não é uma discussão meramente teórica, porque os efeitos concretos de regimes segregacionistas são devastadores: negam direitos fundamentais a todos; direitos que deveriam ser universais, como o direito de bem viver, de acesso à educação, à saúde, à vida digna, ao trabalho decente, ao lazer, à cultura, à participação política igualitária etc.

A exclusão de mulheres e negros é uma perversão que carrega muitas outras perversões.

Esses segmentos, que são permanentemente bloqueados e sabotados, apesar de majoritários, são rotineiramente interditados para o exercício de postos proeminentes em todas áreas, sob o pretexto cínico e abjeto de que não têm conhecimento, experiência, formação, capacidade e blá blá blá …

Quando a igualdade de direitos é assegurada a todos integrantes da sociedade, a particularidade de raça, gênero ou de qualquer outra identidade se reconhece e, ao mesmo tempo, se dilui no exercício de uma cidadania universal, além de ricamente diversa e plural.

Não é isso, contudo, o que acontece no Brasil, uma nação marcada pelo apartheid racial e pela exclusão das mulheres.

As maiorias sociais brasileiras –53% mulheres e 56% de pretos e pardos– são inferiorizadas politicamente, o que é uma mancha racista e misógina vergonhosa.

Esta vergonha estampa a fotografia da Câmara dos Deputados, composta por 91 mulheres, que ocupam apenas 17% das 513 cadeiras; e por 134 pessoas pretas ou pardas [26%], número que pode ser superestimado, considerando que muitos políticos se autodeclaram pardos na eleição por oportunismo e mau-caratismo.

Estudos acadêmicos sustentam que no ritmo de tartaruga do incremento de mulheres eleitas a cada eleição, o país levará mais 120 anos para alcançar a paridade de gênero no Congresso Nacional.

Portanto, é desonesto e ignorante taxar de identitário quem defende a representação universal e igualitária das maiorias –mulheres e pessoas negras– em relação às oligarquias dominantes brancas e masculinas que, apesar de minoritárias, exercem ferreamente o poder.

Identitário, no caso brasileiro, é quem pertence à minoria branca [44%] e masculina [47%] mas, mesmo assim, ao longo de mais de 500 anos continua impondo a supremacia da sua identidade enquanto poder dominante sobre as reais maiorias sociais.

O Brasil é um país feminino e negro. É o território do planeta que abriga a maior população afrodescendente existente fora do continente africano.

Essa é a verdadeira identidade do Brasil, e o traço constitutivo do povo brasileiro. A condição negra e feminina é o critério que confere universalidade à nação brasileira, não o supremacismo excludente e segregacionista.

É impossível pensar um Brasil antirracista, feminista, decolonial e moderno sem se avançar urgentemente na expansão acelerada de mulheres e pessoas negras ocupando postos de comando dos destinos do país.

A defesa, portanto, de que a ministra Rosa Weber seja sucedida por uma mulher, a primeira negra no STF, significa pedir para que o presidente Lula não ceda ao atraso e ao retrocesso. A essas alturas, manter as duas ministras dentre 11 ministros do STF é o mínimo aceitável.

E convenhamos: é difícil crer que dentre as mais de 56 milhões de mulheres negras do Brasil não exista uma única com mais de 35 anos de idade, com notório saber jurídico e com conduta ilibada. Francamente!

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Jeferson Miola: Câmara dos Deputados legisla em causa própria para preservar supremacia branca e masculina


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Comentários

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Zé Maria

Entidade indica ‘Lista Tríplice’ de Juristas Negras para Próxima Vaga no STF

Com a Aposentadoria da Ministra Rosa Weber, o Presidente Lula deve fazer uma Nova Indicação ao Posto.

Juíza ‘Adriana Cruz’, Promotora de Justiça ‘Lívia Sant’Anna Vaz’ e Advogada ‘Soraia Mendes’ são as Indicadas ao Supremo pelo Movimento “Mulheres Negras Decidem”.

Em 132 Anos de Existência, a Suprema Corte Brasileira nunca teve Nenhuma Jurista Negra.

(https://www.geledes.org.br/juiza-negra-assume-secretaria-do-cnj-e-luta-para-nao-ser-excecao)
(https://www.brasildefato.com.br/2023/05/27/candidata-ao-stf-promotora-livia-vaz-e-uma-das-cem-pessoas-negras-mais-influentes-do-mundo)
(https://www.brasildefato.com.br/2021/07/21/jurista-soraia-mendes-se-lanca-candidata-ao-stf-em-contraposicao-a-andre-mendonca)

https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/entidade-indica-lista-triplice-de-juristas-negras-para-proxima-vaga-no-stf

Ibsen

Essa visão me parece óbvia, mas infelizmente não é. Aliás, é defendia por uma minoria absoluta na esquerda.
É como se ignoram que no interior da classe trabalhadora há racismo e misoginia. É preciso que assumam pessoas das minorias no poder que tenham compromisso com a classe trabalhadora, mas que mergulhe fundo nas questões das desigualdades raciais e de gênero. Obviamente não basta ser mulher preta, como não basta defender a classe trabalhadora, muito menos criticar essa posição apoiando nomeações como Zanin e Jorge Messias, terrivelmente evangélicos, homens e brancos .

Zé Maria

Excerto 2

“O Brasil é um país feminino e negro.
É o território do planeta que abriga a maior população afrodescendente
existente fora do continente africano.
Essa é a verdadeira identidade do Brasil, e o traço constitutivo do
povo brasileiro.
A condição negra e feminina é o critério que confere universalidade
à nação brasileira, não o supremacismo excludente e segregacionista.

É impossível pensar um Brasil antirracista, feminista, decolonial [*]
e moderno sem se avançar urgentemente na expansão acelerada
de mulheres e pessoas negras ocupando postos de comando
dos destinos do país.”
.
.
*[(https://www.scielo.br/j/psoc/a/FZ3rGJJ7FX6mVyMHkD3PsnK)]
.
.

Zé Maria

Excertos

“A exclusão de mulheres e negros é uma perversão
que carrega muitas outras perversões.

Esses segmentos, que são permanentemente bloqueados
e sabotados, apesar de majoritários, são rotineiramente
interditados para o exercício de postos proeminentes
em todas áreas, sob o pretexto cínico e abjeto de que
não têm conhecimento, experiência, formação, capacidade” …
[é como o Governo Federal ‘dar Mais Dinheiro para a Globo
sob o argumento de que é a TV de Maior Audiência.’]
[…]
“o que acontece no Brasil, uma nação marcada pelo apartheid
racial e pela exclusão das mulheres.”
As maiorias sociais brasileiras –53% mulheres e 56% de pretos e pardos–
são inferiorizadas politicamente, o que é uma mancha racista e misógina
vergonhosa.”
[…]
“Identitário, no caso brasileiro, é quem pertence à minoria branca [44%]
e masculina [47%] mas, mesmo assim, ao longo de mais de 500 anos
continua impondo a supremacia da sua identidade enquanto poder
dominante sobre as reais maiorias sociais.

.

ed.

Também tenho preferência para uma mulher negra no STF. Mas vamos lembrar que este não pode ser o critério principal ou genérico. Basta considerar Joaquim Barbosa e Ellen Gracie. O problema é que, muito mais do que quase “exigir uma “mulher negra”, esta campanha genérica deveria sugerir nomes REAIS em vez de uma figura idealizada. Que se ajude efetivamente na escolha e não no viés. Repito: adorarei ver uma mulher negra, de reputação ilibada, notório saber jurídico e abrangente visão social e humana.

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