Daniel Valença rebate Florestan Fernandes Jr sobre caudilhismos e democracia

Tempo de leitura: 4 min

Sobre caudilhismos e democracia

por Daniel Valença, especial para o Viomundo

Nessa terça-feira, 22/10, o respeitado jornalista Florestan Fernandes Júnior questionou o processo eleitoral boliviano.

No twitter, ele postou esta mensagem:

Para Florestan Fernandes Jr.,  o MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo – Instrumento por la Liberación de los Pueblos),  ao insistir em lançar Evo Morales à reeleição, estaria afrontando a democracia e reproduzindo o caudilhismo.

Ocorre que o princípio da alternância no poder, aceito e reivindicado por amplos setores democráticos ou de esquerda, é eminentemente liberal e, em terras latino-americanas, assume contornos peculiares.

Basta lembrarmos dos governos eleitos pós-ditadura no Brasil.

Os Fernandos (Collor e Henrique Cardoso) e Itamar tinham a mesma receita:  privatizações, abertura ao mercado externo, precarização das condições de vida das classes trabalhadoras.

Se houve mudança de nomes, concretamente  não houve  alternância de modelo.

O que se viu foi apenas a implementação e aprofundamento de um projeto político-econômico neoliberal, funcional aos interesses do capital internacional e nacional.

Na Venezuela, durante o Pacto de Punto Fijo, vários nomes se sucederam na presidência, em virtude do qual o Comité de Organización Política Electoral Independiente (Copei) e a Acción Democrática (AD), por 40 anos, se revezaram no poder.

No final da década de 1980, a brutal repressão a uma sublevação popular em Caracas, El Caracazo, se transformou em crime contra a humanidade.

As forças armadas assassinaram lá entre 3 mil e 5 mil pessoas. A partir desse massacre, abriram-se as portas para a entrada em cena do “caudilho” Hugo Chávez.

Na Bolívia, por duas décadas, um acordo entre os partidos tradicionais, a Democracia Pactada, levou o país a um rodízio de nomes (dentre eles, Carlos Mesa), responsável por vinte anos de neoliberalismo.

Aliás, neste país, após um século de Constituições liberais, os indígenas ainda não votavam e pagavam tributos por serem indígenas, exploração derrubada apenas com uma Revolução, a Revolução Nacional de 1952.

É com o Levante Aimará, a Guerra da Água e do Gás e a “pueblada” contra o Impuestazo — sublevações populares sucessivas contra o neoliberalismo e por direitos dos povos e nações indígenas, que deixaram um saldo de mais de 70 mortos — que se tornou possível o surgimento do “caudilho” Evo Morales.

No Equador, apenas a sua 19° Constituição liberal, a de 1998, permitiu que as comunidades indígenas tivessem direito a  voto.

Foi a Revuelta de los “Forajidos”, com saldo de 3 mortos e dezenas de feridos, que abriu a possibilidade de um novo “caudilho”, Rafael Correa.

Na verdade, o caudilhismo no século XX expressava uma dualidade: de um lado, representou a entrada das classes subalternas na cena política e na disputa do poder no interior do Estado; de outro, um ingresso subalterno, terceirizado e contido, em que lideranças políticas asseguravam direitos, mas não visavam processos de transformação radical daquelas ordens sociais.

De qualquer forma, todos foram derrubados por suas oligarquias locais liberais e conservadoras.

Já a ascensão de lideranças de esquerda neste século XXI reflete o contrário: pela primeira vez as classes trabalhadoras chegam ao governo a partir de seus próprios representantes.

Por outro lado, atesta que, neste continente de quase 200 anos de Repúblicas liberais, o único momento em que as classes trabalhadoras tiveram a possibilidade de respirar, foi quando conseguiram construir suas grandes lideranças.

O que mais assusta é ver esse debate em meio aos mortos no Chile e no Equador, quando as pessoas lutam pelo direito básico à sobrevivência.

Justamente o Chile, que não construiu seu processo político “caudilhista” pós Allende e não teve forças para derrubar a Constituição autoritária e neoliberal de Pinochet.

Justamente o Equador, cujo “caudilho” e outros líderes de seu partido são vítimas de lawfare e estão presos ou exilados, pois, se soltos estivessem, venceriam eleições.

Assusta também a crítica vir de um brasileiro do campo progressista, que sabe que a principal liderança da classe trabalhadora que o país já forjou encontra-se como preso político, pois venceria as eleições se solto estivesse.

Seria importante que as forças populares construíssem inúmeras lideranças sucessivas, como também que os meios de comunicação não fossem monopólios do capital, que os sistemas de justiça não fossem reféns do mercado, que as forças armadas não fossem herdeiras das ditaduras e da CIA, que as nossas elites tivessem superado seu espírito escravocrata.

Em verdade, o processo de formação de lideranças sempre foi mais difícil e custoso para as classes trabalhadoras do que para as burguesias. Por isso, as classes trabalhadoras não podem se dar ao luxo de abdicar de seus melhores quadros.

Como diria Marx:

“os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram (MARX, 2011, p. 25-26)”.

E nesses 200 anos de democracia liberal na América Latina foram raras e extraordinárias as vezes em que os homens e mulheres puderam tentar escrever sua própria história, quebrar o autoritarismo desta ordem liberal.

Em todas elas, estão as lideranças que elas próprias construíram.

*Daniel Araújo Valença é professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFERSA. Coordena o Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic, e é autor do livro “De Costas Para o Império: O Estado Plurinacional da Bolívia e a luta pelo Socialismo Comunitário”.


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Comentários

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Jair de Souza

Como já foi dito por outros comentaristas, uma crítica como esta de um jornalista progressista e reconhecidamente identificado com as causas populares como Florestán Fernandes Jr (mas, não apenas ele, o próprio Lula disse algo semelhante) advém de um desconhecimento real das diferenças sociais entre modelos de sociedades onde as instituições sociais populares já estão plenamente consolidadas (sindicatos, partidos políticos, organizações de base, etc.) e outras como a boliviana, a equatoriana, a venezuelana, a peruana e, sem medo de errar, inclusive a brasileira. Por aqui, os únicos que podem contar com instituições realmente estruturadas e capazes de prescindir de nomes específicos para garantir a defesa de seus interesses de classe são as oligarquias, as elites econômicas dominantes. E, ainda assim, não de modo absoluto. É uma incompreensão esperar que o povo sofrido da Bolívia pudesse abrir mão do único fator que unificava o conjunto das forças populares (a figura de Evo Morales) por uma falsa preocupação de caráter moralista. Mesmo tendo todas as instituições bem estruturadas para os representar, nem mesmo as oligarquias da Europa avançada abrem mão de lideranças que consideram essenciais para manter a unidade de seus projetos. Vejam o caso de Angela Merkel na Alemanha, há mais de 15 anos no comando do Estado. E não me venham com o argumento idiotizante de que lá temos o parlamentarismo, pois isto que só tornaria ainda pior a argumentação, visto que no parlamentarismo nem a participação direta do povo entra para a manutenção de uma liderança por longos períodos. Vamos deixar de bobagens, a presença de Fidel Castro durantes décadas à frente da Revolução Cubana foi fundamental. Todo mundo gostaria de contar sempre com inúmeras alternativas de substituição, para que nunca houvesse nenhuma dependência em um só nome. Uma coisa é o desejo, outra, é a realidade. Obrigado por toda sua luta junto a nosso povo, Florestán Fernandes Jr., obrigadíssimo, Lula, por tudo de concreto que você já fez por nossa gente. Mas, nesta questão, vocês estão errados, e não tenho receio de dizer.

Zé Maria

São ‘Populistas’ os que submetem periodicamente
o próprio Governo à Avaliação Popular pelo Voto Direto?

A Direita sempre vai achar algum adjetivo pejorativo,
para desqualificar os Líderes Populares da Esquerda
que triunfam eleitoralmente pelo Sufrágio Universal.

Zé Maria

¡PRESIDENTE! Impresionante cierre de campaña de Alberto Fernandez con un discurso MONUMENTAL

El candidato a presidente del Frente de Todos, Alberto Fernández, cerró este jueves, la campaña electoral en Mar del Plata junto a su compañera de fórmula, Cristina Fernández de Kirchner

“Vamos a Volver !!!” “Neoliberalismo Nunca Más” !!!

https://www.revolucionpopular.com/tv/-presidente–impresionante-cierre-de-campana-de-alberto-fernandez-con-un-discurso-monumental_a5db2192a6fe3e25452498924

Zé Maria

https://twitter.com/CFKArgentina/status/1187468112016244739
https://www.pscp.tv/w/1jMKgwrXAXkKL?t=1196

CFK Encerra Campanha Presidencial da “Frente de Todos”
sob o Coro de Milhares de Pessoas em Mar del Plata:

“Vamos a Volver !!!” “Neoliberalismo Nunca Más” !!!

https://www.revolucionpopular.com/tv/historico-cierre-de-campana-de-cristina-kirchner-en-mar-del-plata–nunca-mas-al-neoliberalismo-_a5db214a0be9aa63004e5791f

Francisco barbosa de Souza

Acompanho aq no Viomundo mais um excelente artigo do professor Daniel. Um estudioso da AL, como um todo.
Confesso que tb fiquei assustado com referência ao jornalista F. Fernandes. Todavia , no artigo anterior eu fiz uma alusão a questão (não do caudilhismo), mas do fomento de novas lideranças, inclusive dentro de outros partidos, mas sempre com o cuidado que sejam legítimas e que não venham trair o povo, como no caso do Equador…
Não conheço a história da Bolívia, mas acredito que não haja impedimento para essas lideranças surgirem – e elas haverão surgir…
Assim, como no Brasil, já na época de Brizola, surgiu das entranhas do povo o maior líder do nosso país: LUIS INÁCIO LULA DA SILVA.
Enfim, que o ‘povo’ possa tomar para si as rédeas e a tarefa de forjar/construir suas lideranças livres das garras do imperialismo, e do capitalismo…

Nelson

É impressionante como a ideologia liberal [pero no mucho] se incrusta nas cabeças até daqueles mais ligados às lutas populares ou mesmo nos que se dizem de esquerda. Filho do grande Florestan Fernandes, creio que o Júnior deveria ter um entendimento bem mais lúcido desta questão.

A verdade é que, ainda que tenha sido feita mudança na Constituição boliviana, Evo Morales não conseguiu o novo mandato por um mero decreto. Para tanto, ele teve que se submeter ao crivo popular. E recebeu a quantidade de votos necessária.

Portanto, não vejo motivo para tanta preocupação por parte do nosso jornalista. Aliás, uma manifestação deste tipo só joga mais água no debate enviezado que a direita e a mídia e seus comentaristas fazem sobre o que é democracia.

Vamos lembrar aqui de dois casos – há muitos outros – que demonstram que o debate que essa turma lança sobre alternância no poder não passa de uma cortina de fumaça para ludibriar incautos e inocentes.

O primeiro tem a ver com Hosni Mubarak. Ele governou o Egito por 30 anos incompletos. Durante praticamente todo este tempo nunca foi chamado de ditador ou se ouviu questionamentos sobre a necessidade de alternância no comando da nação dos faraós.

Somente quando o Sistema de Poder que domina os Estados Unidos resolveu mudar o regime egípcio, que bastava de Mubarak, a mídia hegemônica e seus comentaristas passaram a qualificá-lo de ditador.

O segundo caso refere-se aos tucanos de São Paulo. O PSDB vai completar 28 anos à testa do governo desse Estado e até agora eu não ouvi um pio, uma crítica sequer dos mesmos mídia hegemônica e comentaristas a cobrarem alternância no poder.

Alguns contestarão afirmando que houve alternância nesses mais de 24 anos. Argumentarão que Covas, Serra, Alckmin se alternaram no poder. Um argumento que faz parte do debate enviezado de que falei antes. Um argumento furado, pois a aceitá-lo estaremos admitindo que um governo funciona com uma pessoa apenas, que seria o comandante central e basta mudá-la para que tenhamos mudanças.

Antonio Morais

Comparar Itamar com os Fernandos (Color e Henrique) é forçar a barra. Ele impediu Fernando Henrique de privatizar a CEMIG, não lembra? Além disso foi um ótimo presidente.

Antonio Morais

Comparar Itamar aos Fernandos (Collor e Henrique Cardoso) é forçar a barra, não é?

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