Economist azeda estadia de Bolsonaro na Índia, alertando para risco de campos de detenção sob governo extremista hindu

Tempo de leitura: 4 min

Olha, eu sou um capitão do Exército, ele é um pacifista, tá certo? Mas, obviamente, a gente reconhece o seu passado sempre pregando a paz, a harmonia, a liberdade. Jair Bolsonaro, ao visitar memorial de Mahatma Gandhi, na Índia

Da Redação

A polêmica visita do presidente Jair Bolsonaro ao memorial do líder pacifista Mahatma Gandhi durou menos de dez minutos.

O grande “segredo” da viagem do líder brasileiro à Índia, nem tão segredo assim, é que longe dos holofotes, segundo a Época Negócios, Brasil e Índia fecham um acordo armamentista:

Oficiais do Ministério da Defesa, junto a CEOs da Altave, Atech, Avibras, Companhia Brasileira de Cartuchos, Condor, Embraer, Iveco, Macjee, Omnisys e Taurus, estão na capital Nova Déli junto à comitiva presidencial para participarem de um seminário conjunto de indústrias de Defesa dos dois países.

O objetivo dos executivos brasileiros que viajaram ao país sul-asiático — entre os quais Salésio Nuhs, presidente da Taurus — é ampliar exportações e conseguir licenças do governo do primeiro-ministro Narendra Modi para a produção de armas e equipamentos de segurança em território indiano.

Ilustração da revista Economist para a reportagem sobre a Índia de Narendra Modi

A presença do presidente brasileiro em solo indiano coincide com a publicação de capa da influente revista britânica Economist segundo a qual o governo de Modi é uma ameaça à democracia da Índia.

A revista refere-se à Lei de Cidadania, que ameaça a cidadania de ao menos parte de 200 milhões de muçulmanos.

O governo de Modi estaria preparado para colocar os não cidadãos em campos de detenção, alertou a revista, e a ilustração da reportagem remete a campos de concentração.

O texto da revista liberal britânica diz que “no mês passado a Índia mudou a lei para que os fiéis de todas religiões do subcontinente, a não ser os muçulmanos, tenham acesso facilitado à cidadania. Ao mesmo tempo, o partido governante, Bharatiya Janata [BJP], quer fazer um registro de todos os 1,3 bilhão de cidadãos, como forma de caçar os ilegais. Isso soa como questão técnica, mas muitos dos 200 milhões de muçulmanos não têm papéis para provar que são cidadãos e correm o risco de se tornarem sem Estado. De maneira ameaçadora, o governo deu ordens para a construção de campos de detenção para os que forem pegos sem cidadania”.

Acrescentou:

“Você pode pensar que o esquema do BJP foi um erro de cálculo. Causou protestos amplos e duradouros. Estudantes, secularistas e mesmo a mídia amplamente bajuladora começou a criticar Narendra Modi, o primeiro-ministro, por sua aparente determinação em transformar a Índia tolerante e multirreligiosa num estado chauvinista Hindu”.

Bolsonaro minimizou a publicação, dizendo que ele mesmo é mencionado como ameaça à democracia, embora acredite que não seja.

A bisneta de Gandhi, Supriya, deu uma entrevista de grande repercussão ao Brasil de Fato em que falou da identidade entre os projetos de extrema-direita de Jair Bolsonaro e do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.

Trecho da entrevista:

Brasil de Fato: Mahatma Gandhi deixou como legado uma série de críticas e propostas sobre a sociedade indiana na primeira metade do século 20. Qual delas permanece relevante para a Índia hoje?

Supriya Gandhi: Eu acho que todas elas são [relevantes]. De certa maneira, Gandhi foi capaz de enxergar o futuro. Gandhi nos lembra as conexões entre democracia, busca da verdade, pluralismo e administração ambiental.

Hoje, líderes populistas e seus partidários prosperam em um mundo pós-verdade, reprimem a democracia e impulsionam a humanidade ao ecocídio.

A ideia de não-violência continua sendo levada adiante pelos trabalhadores da Índia ou é tratada como algo desatualizado, sete décadas após a independência?

A ideia de não-violência brilha através dos protestos pacíficos que estão surgindo em todo o país contra a emenda à Lei de Cidadania, que é discriminatória.

O tempo dirá se esses protestos continuarão e se expandirão, mas eles já estão criando solidariedades entre classe, casta e religião.

O Estado está encarando esses protestos com medidas repressivas.

Considerando as reflexões de Gandhi sobre o hinduísmo, não é uma contradição que grupos religiosos fundamentalistas sejam acusados ​​de cometer esses atos de perseguição e repressão contra os muçulmanos hoje? É possível supor que, se ele estivesse vivo, Gandhi estaria condenando esses atos e a posição do BJP nesses conflitos?

Não é uma contradição, pois esses atos de violência são praticados por quem admira a ideologia do assassino de Gandhi. [Nota do Viomundo: O assassino de Gandhi pertencia a um grupo paramilitar ultranacionalista de direita, o  Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), de tendências nazistas]

Essas práticas constantes de violência não são uma exceção. Elas fazem parte de uma estratégia multifacetada para mostrar às minorias seu lugar e garantir conflitos sociais perpétuos.

O legado de Gandhi está em jogo. No Brasil, por exemplo, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro fará uma homenagem no memorial de Gandhi em sua visita a Nova Delhi. Bolsonaro atua como defensor da indústria de armas e faz um discurso violento contra minorias. Como você vê esse tipo de homenagem e como analisa a apropriação do legado de Gandhi por políticos considerados autoritários?

Bolsonaro tem muito em comum com a liderança que está no poder na Índia, além de seu completo desrespeito às normas democráticas e à urgência da crise ambiental. Não é de surpreender que ele se junte ao governo local na apropriação de Gandhi e na distorção das ideias e do legado de Gandhi.

O governo e os grupos aliados tentam purgar os fatos sobre o assassinato de Gandhi. Eles querem um Gandhi despido de seu poder e força radical.

PS do Viomundo: Este texto foi atualizado para correções e acréscimos.


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Zé Maria

A Guerra de Bolsonaro contra a Verdade

“A eleição de Bolsonaro, um deputado do baixo clero, homofóbico e misógino,
foi o resultado de uma extraordinária campanha baseada na disseminação
de fake news nas redes sociais.
Mais de 98% dos seus eleitores foram expostos a uma ou mais manchetes falsas
durante a campanha e quase 90% acreditavam que elas eram verdadeiras,
segundo estudo da organização Avaaz.
O seu governo dominou a arte de manipular a verdade”

Por Petra Costa*, no Washington Post, via GGN

Na semana passada, meu documentário Democracia em Vertigem foi indicado ao Oscar na categoria melhor documentário.
No filme, entrelaço a ascensão e queda dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro com a minha própria história familiar — tenho a mesma idade da democracia brasileira e, em grande parte, a divisão do país está refletida na minha família.

Após a nomeação, minha equipe foi inundada por mensagens nas mídias sociais nos parabenizando pela conquista.
Já o governo reagiu de forma diferente.
O então Secretário de Cultura, Roberto Alvim disse:
“se fosse na categoria de ficção, a nomeação seria correta”.

Em 2016, eu entrevistei Bolsonaro sobre seus planos para o setor cultural e ele reclamou que nenhum filme brasileiro era bom o suficiente para ser premiado com uma indicação ao Oscar.
Na semana passada, no entanto, ele desprezou nossa indicação dizendo “para quem gosta do que urubu come, é um bom filme”.
Em seguida, ele admitiu não ter visto o filme, mas isso não impediu que a legião de trolls que o seguem nas redes sociais de papaguear a acusação de que o filme era fake news.

Na quinta-feira, era Roberto Alvim quem estava nas manchetes.
Em um vídeo postado nas redes sociais para promover um prêmio nacional de arte, ele proclamou que “a arte brasileira da próxima década será heróica e será nacional”, “será dotada de uma grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que é profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo — o então não será nada”.
O discurso repete frases do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels, proclamadas em maio de 1933.
Um retrato de Bolsonaro aparecia atrás de Alvim, enquanto Lohengrin — uma ópera do compositor favorito de Adolf Hitler, Richard Wagner — podia ser ouvida ao fundo.

Alvim foi deposto um dia depois, após um clamor público que incluiu a veemente condenação das embaixadas da Alemanha e de Israel.

Mas creio que ele foi demitido não porque o governo condena suas opiniões
e sim porque foi demasiado explícito sobre opiniões que ambos compartilham.

Este é apenas um exemplo de como a democracia brasileira se aproxima do abismo.

O assalto sistemático do governo Bolsonaro à verdade tomou agora um rumo preocupante.
Na terça-feira, os promotores federais acusaram o jornalista americano Glenn Greenwald de crimes cibernéticos.
As acusações decorrem de uma série de artigos publicados no site The Intercept Brasil, que ele co-fundou, expondo o que parecia ser conluio entre os principais atores da Operação Lava Jato, uma investigação anti-corrupção.

Nos últimos cinco anos, o Brasil tem estado atolado em um drama contínuo, repleto de reviravoltas inesperadas.

Em 2016, Dilma Rousseff, nossa primeira mulher presidente, foi alvo de um impeachment por conta uma questão técnica ininteligível para a maioria da população.

A imprensa e mídias sociais propagaram a percepção de que ela estava sendo alvo de impeachment por corrupção, o que um grande setor da população estava satisfeita em acreditar.

Na semana do seu impeachment, três das cinco notícias mais compartilhadas
no Facebook eram falsas.

Dois anos depois, Lula, candidato favorito para as eleições presidenciais de 2018,
foi preso e impedido de concorrer, no que pareceu ser a conclusão perfeita para
um longo reality show.

Sérgio Moro, o juiz responsável pela prisão de Lula, foi premiado com o cargo
de ministro da Justiça depois que Jair Bolsonaro foi eleito.

A eleição de Bolsonaro, um deputado do baixo clero, homofóbico e misógino, foi o resultado de uma extraordinária campanha baseada na disseminação de fake news nas redes sociais.
Mais de 98 por cento dos seus eleitores foram expostos a uma ou mais manchetes falsas durante a campanha e quase 90 por cento acreditavam que elas eram verdadeiras, segundo estudo da organização Avaaz.

O seu governo dominou a arte de manipular a verdade.

Em “Democracia em Vertigem”, eu entrecorto as últimas décadas da história política brasileira com a minha história familiar.
Meu avô co-fundou uma das maiores construtoras do país, uma das empresas investigadas pela Operação Lava Jato.
Meus pais foram militantes de esquerda durante a ditadura (1964-1985), chegaram a ser presos e passaram anos no Sul do país fazendo trabalho de base com estudantes e trabalhadores.
Os ideais deles me fizeram acreditar que um Brasil melhor, menos desigual e que não fosse governado por elites corruptas e autoritárias, era possível.
Eu votei em Lula com a esperança de que ele faria as mudança políticas tão necessárias.
Mas logo o vi formar alianças com as velhas oligarquias do país.

Espectadores do mundo inteiro se identificaram com minha tentativa de discernir os fatos em meio a tanta ficção que está moldando o futuro do Brasil.
Acredito que as pessoas se conectam com nosso filme porque sentem que suas democracias estão sob um tipo de ataque semelhante.
O que inicialmente pareciam ser casos isolados (na Índia, Brasil e Turquia) se transformou em uma epidemia global.
O filme critica os líderes que tentam silenciar pensamentos divergentes.
Talvez esta seja a razão pela qual alguns políticos autoritários de extrema-direita,
no Brasil e no exterior, queiram classificar os esforços artísticos e jornalísticos
para desvendar a verdade como ficção e fake news.

É interessante que Lügenpresse, ou “imprensa mentirosa”, foi um slogan
amplamente usado na Alemanha durante o terceiro Reich para descreditar qualquer jornalista que discordasse da posição do governo.

Esforços para descreditar a imprensa e as artes tem sido particularmente devastadores no Brasil.
A sua influência vai muito além da política partidária. Desde 2019, as elites de extrema-direita e os grupos conservadores religiosos têm travado uma guerra cultural a níveis que não se viam desde os anos mais duros da ditadura militar.

O líder do governo caracterizou o Carnaval brasileiro, uma grande fonte de orgulho em nossa cultura, como uma festa degenerada.
Alguns de nossos maiores artistas foram atacados, livros escolares estão sendo reescritos e recursos foram cortados para séries e projetos cinematográficos sobre temas L.G.B.T.Q.
Mais de 30 obras de arte foram censuradas, auto-censuradas ou canceladas.
Essa guerra cultural atingiu novos patamares em dezembro quando a produtora, Porta dos Fundos, foi atacada com coquetéis Molotov por conta de seu episódio satírico A Primeira Tentação de Cristo, que retrata Jesus como homossexual.

Não há luz visível no fim do túnel desta guerra cultural que procura censurar os valores liberais e progressistas e desconstruir a verdade para impor um fascismo tropical.
Como aponto em Democracia em Vertigem, a elite se cansou do jogo da democracia.
A história do nazismo mostra que as elites que se calaram diante do avanço
do autoritarismo acabaram sendo engolidas por ele.
A extinção é o preço da omissão.

*Petra Costa é cineasta brasileira.
Seu último filme “Democracia em Vertigem”
(“The Edge of Democracy”) foi indicado para
o “Prêmio Oscar de Melhor Documentário”.

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