O fundamentalismo religioso não é por acaso. É sinal dos tempos

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Carlos Azenha

O professor e juiz de Direito Rubens Casara o disse bem, nos bastidores de uma entrevista com o Viomundo: enganam-se os que acreditam que vivemos um período de exceção, que logo será superado pela “normalidade”.

Todos aqueles que citam a ‘democracia liberal’ como parâmetro — ou princípios que a norteiam, como separação entre os poderes e estado laico, por exemplo — não se deram conta de que entramos numa nova fase, a da pós-democracia.

Foi o que me levou a revisitar uma viagem que fiz ao Paquistão, para uma série de reportagens.

Desembarcamos em Karachi, uma das cidades mais violentas do mundo. Como um dos temas seria uma visita a um estaleiro onde navios são demolidos, pedi ao produtor local que marcasse uma entrevista com um sindicalista.

Acabamos na sala de um líder sindical comunista. Ele narrou o profundo declínio da esquerda no Paquistão, apesar da profunda miséria e da extrema concentração fundiária ao longo do rio Indo, o mais importante do país.

O principal partido de esquerda, a chamada “coalizão do desespero”, formada justamente para enfrentar o isolamento, não chegou a 1% dos votos nas eleições gerais de 2013.

Por outro lado, o país tem mais de uma dezena de partidos religiosos, muitos deles com representação no Parlamento.

Como explicar?

Segundo meu entrevistado, a falta de influência dos partidos de esquerda poderia ser atribuída a uma miríade de razões, mas uma de importância é que os fundamentalistas islâmicos ‘sequestraram’ o desejo de mudança e canalizaram a energia popular para o caráter religioso da luta contra a influência estrangeira no Paquistão.

Em outras palavras, em vez de se revoltar contra o imperialismo dos Estados Unidos, da Índia ou da China, ou contra a estrutura econômica que provoca desigualdade no Paquistão, os paquistaneses estão majoritariamente preocupados com a ‘decadência’ de seus próprios valores, causada pelos ímpios com inspiração estrangeira — os filmes ‘decadentes’ de Holywood, por exemplo.

Ainda de acordo com o sindicalista, a elite paquistanesa está satisfeitíssima com o desempenho dos partidos religiosos, ainda que por conta disso tenha tido de turbinar a hipocrisia (álcool, sexo e outras ‘imoralidades’ só no esconderijo do lar ou em viagens ao Exterior, especialmente aos países do Golfo Pérsico).

É que os partidos fundamentalistas cumprem o papel essencial de naturalizar a desigualdade e desviar o ímpeto por mudanças para questões não econômicas, justamente aquelas que podem ameaçar a elite.

Meu entrevistado lembrou que a Irmandade Muçulmana, uma força por mudança no Egito, por exemplo, tem uma política econômica neoliberal. Os irmãos praticam o assistencialismo em larga escala, mas sempre condicionado ao pertencimento à religião: as mesquitas funcionam como centros de distribuição de alimentos e outras benesses.

De minha parte, tendo morado quase 20 anos nos Estados Unidos, lembrei ao meu entrevistado paquistanês o papel essencial que os fundamentalistas cristãos tiveram na eleição de Ronald Reagan, em 1980. O Partido Republicano, que até então não tinha militantes para enfrentar o sindicalismo, lançou mão de uma coalizão religiosa conservadora entre católicos, evangélicos e judeus.

Foram todos bater de porta em porta para eleger e reeleger Reagan, como testemunhei.

Ligados ao valores tradicionais e enfatizando sempre as questões morais, estes fundamentalistas tinham outra coisa em comum: a defesa de uma política econômica neoliberal, algo natural para quem acredita que o Estado laico é uma ameaça a seus valores, se intrometendo na educação das crianças, ensinando a teoria da evolução e privilegiando a Ciência em detrimento dos livros religiosos.

Depois de minha entrevista com o sindicalista, tive a oportunidade de percorrer algumas vizinhanças de Karachi. Nos moldes das milícias que assumiram o controle de bairros do Rio de Janeiro, havia muitas ‘fronteiras’ na cidade. Só que as milícias eram de caráter religioso.

Aqui mandavam os homens de um determinado líder religioso fundamentalista, em seguida mandavam os de outro. Com todas as vantagens econômicas derivadas de tal controle geográfico.

Também visitei um trecho do vale do rio Indo, onde era comum homens atirarem ácido no rosto de mulheres que desafiassem seu poder no âmbito doméstico.

Viajei com uma mulher com o rosto deformado, que ao descer nas feiras das pequenas cidades nos alertava: não posso andar muito com o rosto descoberto. Se alguém me ver com o rosto deformado, posso ser denunciada e seremos linchados.

Incitados por líderes religiosos, os camponeses pobres viam mulheres fora do padrão como seus principais inimigos, deixando em segundo plano o fato de que uma dúzia de famílias controlam 90% da terra e são beneficiárias da desigualdade e da miséria locais.

O fundamentalismo religioso, portanto, não é uma aberração, mas adequado aos tempos em que 1% controlam 90% da riqueza do mundo. Handmaid’s Tale, a série, um dia pode ter sido vista como ficção disparatada. Espero que nunca se transforme numa produção futurista.

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Comentários

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Bacellar

Existe tb uma ligação profunda entre o crime organizado e setores evangélicos. Gostaria de confirmar essa informação com mais acuidade porém circula um rumor de que as milícias cariocas possuem forte influência evangélica…

Bacellar

Amém!

ari

Sempre que posso , tenho procurado trazer o assunto à baila em minhas conversas, chamando a atenção para o perigo do avanço do fundamentalismo religioso em nosso país, inclusive com números significativos de representantes nas câmaras, assembleias e congresso. Extremamente conservadores, esses grupos tem se posicionado sistematicamente contra todas as ações afirmativas em favor dos mais fracos e oprimidos.
Lamentavelmente a grande maioria da igreja católica faz parte desse grupo e, o que é pior, praticamente controla toda a rede de comunicações da igreja. Se você tiver tempo – e estômago – assista um pouco a TV Canção Nova, por exemplo. Nessa emissora, os grandes pecados são álcool e fumo, infidelidade conjugal, novelas, e, claro, sexo fora do casamento. O uso de preservativos é visto como crime de lesa divindade e, antes de o papa fazer os católicos engolirem a língua em sua visita ao Brasil, homossexuais por pouco não eram queimados diante das câmeras. Ali milita o Pe. Paulo Ricardo, o Malafaia do catolicismo, de cuja sanidade mental chego a duvidar ao ouvi-lo
Infelizmente, ao chegar ao poder, o PT e demais partidos de esquerda esqueceram-se das base, do povo, das grandes massas e seu lugar tem sido ocupado pelas religiões.
Além dos desafios históricos do Brasil, como a(quase) criminosa distribuição de renda, não tenho dúvidas que nosso maior problema é a imprensa, na forma como funciona entre nós, e as religiões, ambos atuando fortemente para eliminar a capacidade crítica das pessoas

Jair de Souza

Parabéns ao Azenha pelo excelente trabalho. Um texto muito bom para ajudar-nos a refletir sobre um problema muito sério na atualidade. Retirar o foco das relações econômicas desiguais entre as pessoas para evitar o questionamento ao sistema de dominação de uns poucos sobre a imensa maioria é de fato algo que atende totalmente os interesses dos que estão por cima. Desviar a revolta para questões morais e atrair para essa causa um grande números de homens e mulheres que vivem na penúria vem sendo uma grande jogada para os poucos que querem manter seus privilégios materiais intocados. Na verdade, entre os que se dizem cristãos, a pregação do fundamentalismo (com um apego muito forte ao Velho Testamento) pode inclusive conduzir a uma aceitação da volta da escravidão, considerando-a como algo normal e nada abominável. Afinal, especialmente no Velho Testamento, não se encontra nenhuma condenação à escravidão. Aceita-se friamente a existência de seres humanos propriedades de outros seres humanos. Eu também entendo que é por isso que as chamadas elites econômicas veem com bons olhos o crescimento das igrejas que pregam o fundamentalismo.

Steiger

Morou vinte anos nos EUA e não aprendeu nada? Aí voltou pra essa porcaria e virou esquerda? Vai entender…

    Luiz Carlos Azenha

    Aprendi nos EUA que idiotas se tornam massa de manobra para militar contra seus próprios interesses e defender um sistema que mata, tortura, promove guerras, concentra renda, etc.

    Steiger

    Pensei que tivesse aprendido o que é uma nação de verdade. De qualquer forma os brasileiros ainda fazem fila na porta do consulado pra conseguir um visto e migrar pq ninguém é besta. Em tempo, não sou americano, sou suíço.

    ari

    Imbecil, quando parar de vomitar, lave a boca e, se tiver algo minimamente inteligente para falar, volte e ouviremos. Caso contrário, aproveite que você está no banheiro, enfie a cara no vaso e dê descarga

Pedro

Não esquecer que quem abriu a porta para isso foi o Serra em 2010.

Tânia Elias

Boa matéria. Bem preocupante. Todo fundamentalismo precisa de uma base material para ganhar veracidade e de um inimigo para ser o bode expiatório e de uma população ignorante. Esses fatores são a base da propagação dos fundamentalismo que se apegam a dogmas como verdades indiscutíveis. Seja ele de cunho religioso ou politico.

Oscad Marrento

Bom dia;
Quem está destruindo o Brasil, não são os evangélicos, os crentes; São eles:》
Lula, ateu – Temer, maçon – Aécio, católico apostólico romamo – Caiado, agnóstico –
Eliseu Padilha, Moreira Franco, católico apostólico romamo, Geddel, agnóstico, – Alckimin, católico apostólico romamo. ..
e por ai vai…

    Antonio Lisbôa Antonio

    Nunca vi um único crente, ou evangélico, defender o interesse da classe trabalhadora nem dos mais necessitados. Os políticos eleitos por maioria evangélica não os representa, nem perante os homens e muito menos perante DEUS, pois os seus desejos são terrenos e numéricos. Onde houver quem der mais, é ai que estarão empoleirados. Não uso essa informação apenas por preconceito, isso não, graças a DEUS a minha formação religiosa é bastante eclética; convivi em plenitude entre Testemunhas de Jeová, Presbiterianos, Católicos e Batistas, num tempo de respeito e amor ao próximo, o que esses neo evangélicos políticos estão destruindo em nome de “mamon”.

    Mark Twain

    Eduardo Cunha (Quem começou esta merda toda): Evangélico.
    Marco Feliciano: Evangélico.

fernando

é o futuro do brasil com esses evangélicos extremistas pró eua que temos aqui…o brasil acabou!!!

    Araujo

    Você tem razão Fernando. Sou evangélico fundamentalista a mais de 40 anos e hoje sei que, ao invés do que esperava, que era o sonho de ver O Evangelho mudando vidas para melhor, hoje vejo que mudou, sim mas para pior. Isso não tem nada a ver com Jesus ou o cristianismo em si que ainda acredito serem a verdadeira panaceia para a humanidade, isto tem mais a ver com a utilização do modelo que após sua adequação à lavagem cerebral e manipulação de massas acaba sendo uma poderosa ferramenta de bestialização dos seguidores. Repito mais uma vez: Isto não tem nada a ver com Jesus ou com o cristianismo original…o que se vende por aí é ingresso falsificado para o reino dos céus sem direito a troca.

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