Roberto Heloani: Organização do trabalho induz à agressão

Tempo de leitura: 7 min

Chaplin já dizia…

do Instituto Humanitas Unisinos, sugerido pela Sgeral, reprodução parcial

A partir da experiência que possui ao longo dos anos na área da Psicologia do Trabalho, o professor Roberto Heloani, da Unicamp, identifica que foi se criando uma cultura dentro das organizações cujo mote é o seguinte: “aproveite enquanto der; o futuro ninguém sabe; nem você tem controle desse futuro”.

Na entrevista que aceitou conceder por telefone à IHU On-Line, ele argumenta que, em uma situação como essa, “não se pode esperar dos jovens sonhos de longo prazo, uma lealdade estrita às pessoas e à organização e, muito menos, uma dedicação incondicional. Ele pode até trabalhar muito, até 16 horas por dia, como alguns trabalham, mas é um trabalho voltado para si, que quer uma recompensa rápida, imediata e de preferência segura. Ele construiu uma lógica que não é perversa”.

E continua: “temos uma organização do trabalho que exige uma nova modelagem, uma nova subjetividade – chamo isso de manipulação da subjetividade – e responde com uma nova subjetividade: sendo individualista para melhor se adaptar a essa realidade. Quem é perverso não é o jovem, nem o gestor, nem o chefe. Se tem alguém perverso é a própria forma de organizar o trabalho. Essa forma diferenciada de organizar o trabalho tem obviamente benefícios, pontos positivos, mas também tem muitos pontos negativos”.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, José Roberto Montes Heloani é mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas/SP e doutor em Psicologia pela PUC-SP. É professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, na área de Gestão, Saúde e Subjetividade.

Também é professor conveniado junto à Université de Nanterre (Paris X). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Trabalho, Saúde no Trabalho e Psicodinâmica do Trabalho. É membro-fundador do site www.assediomoral.org, coautor de Assédio moral no trabalho (São Paulo: Cengage Learning, 2008), e autor de, entre outros, Gestão e organização no capitalismo globalizado – História da manipulação psicológica no mundo do trabalho (São Paulo: Atlas, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza o perfil dos jovens no mercado de trabalho? Como a intolerância a problemas e a cobrança por resultados aparece, nesse sentido?

Roberto Heloani – Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que o mundo do trabalho mudou de forma significativa, e aqui me refiro à forma de organizar o trabalho.

Há 30 anos uma pessoa entrava para uma grande organização e sabia que poderia permanecer lá a vida toda, caso tivesse um bom desempenho, fosse uma pessoa leal à organização, que se aplicasse, se qualificasse, aproveitasse as oportunidades oferecidas pela organização, e se fosse minimamente disciplinada. E o sonho de muitos jovens era justamente fazer carreira na organização e depois ser substituído pelo próprio filho.

Isso caracterizou o que chamamos de modelo fordista de produção, que era piramidal, com uma hierarquia mais explícita – não é que não se tenha hierarquia hoje em dia, apenas pessoas ingênuas pensam que ela não existe.

Em consequência disso, o grande sonho era fazer certos sacrifícios, postergar a felicidade para depois ter os louros, a recompensa. O próprio modelo de produção era de longo prazo. Hoje não.

Esse jovem já entra na escola e logo acaba recebendo a ideologia da internet, da informação virtual, na qual não se exige do sujeito grande reflexão, mas muito mais uma pró-atividade de resposta. Isso não quer dizer que o sujeito está pensando, mas que ele está sendo treinado para responder rapidamente.

O resultado disso é que, quando ele entra no mundo corporativo, começa a ouvir comentários de que aquela pessoa que estava lá outro dia já não está mais e que a média de permanência naquela organização é de 2 a 3 anos.

Daí ele para e pensa: afinal de contas, me é permitido pensar que vou passar minha vida toda aqui? Será que essa será a minha casa? Será que devo compartilhar minhas angústias e incertezas com esse grupo? É outra lógica.

Uma coisa é ter um amigo, uma pessoa com a qual você compartilha as ansiedades, desejos, medos, receios, neuras. E outra coisa é ter uma amizade profissional.

Esse jovem, desde cedo, aprende que no mundo do trabalho atual é preciso construir amizades profissionais, o que é diferente de construir amizades. A amizade profissional dura enquanto for do interesse de ambos.

São raras as pessoas que saem de uma organização e mantêm contato com seus ex-colegas. Será que é porque são pessoas perversas e frias? Nada disso. São pessoas “normais”, que aprenderam que ter uma relação afetiva e efetiva pode ser até perigoso, porque essas amizades são datadas, não são verdadeiras.

A relação que se estabelece com os colegas é a mesma que se acaba tendo com as empresas. E esse perfil vai sendo moldado.

Mais do que isso: vai se criando uma cultura dentro das organizações, e hoje boa parte delas está moldada por essa lógica, cujo mote é o seguinte: aproveite enquanto der; o futuro ninguém sabe; nem você tem controle desse futuro. É claro que em uma situação como essa não se pode esperar dos jovens sonhos de longo prazo, uma lealdade estrita às pessoas e à organização e, muito menos, uma dedicação incondicional.

Ele pode até trabalhar muito, até 16 horas por dia, como alguns trabalham, mas é um trabalho voltado para si, que quer uma recompensa rápida, imediata e de preferência segura. Ele construiu uma lógica que não é perversa.

Temos uma organização do trabalho que exige uma nova modelagem, uma nova subjetividade – chamo isso de manipulação da subjetividade – e responde com uma nova subjetividade: sendo individualista para melhor se adaptar a essa realidade.

Quem é perverso não é o jovem, nem o gestor, nem o chefe. Se tem alguém perverso é a própria forma de organizar o trabalho.

Essa forma diferenciada de organizar o trabalho tem obviamente benefícios, pontos positivos, mas também tem muitos pontos negativos.

Não é à toa que ainda nesta década, até 2020, segundo relatórios internacionais, a segunda causa de afastamento do trabalho será o transtorno mental, sendo que a mais recorrente será a depressão. Isso é gravíssimo. Uma característica muito forte desse modelo de organização do trabalho é a solidão. Encontra-se rodeado de pessoas, mas verdadeiramente se está só.

IHU On-Line – Quais são os novos formatos da agressão no trabalho?

Roberto Heloani – Quando comecei a trabalhar com o tema do assédio moral, há mais de 15 anos, o assédio era mais explícito. Mas de uns tempos para cá ele está cada vez mais sofisticado, mais sutil. Temos o assédio a jornalistas, na área de serviços, na justiça, tem assédio a médicos, na academia, até nas grandes universidades, como USP e Unicamp. Ou seja, não é que o assédio não existisse há décadas. É óbvio que sim, mas por que hoje se fala tanto e por que ele tanto se disseminou?

Essa nova lógica do trabalho tende a reificar a coisificação das pessoas. Hoje não tenho grandes amigos, pois as pessoas que trabalham comigo poderão vir a ser meus concorrentes para uma futura vaga. Isso para um jovem de 20 e poucos anos é muito duro. É muito deseducativo saber que ele vai ter que desejar que tantas pessoas se deem mal para que ele garanta sua vaga.

O próprio modelo de organização prega o trabalho coletivo. No entanto, as avaliações continuam sendo individuais. Isso causa na cabeça das pessoas uma sensação de guerra constante. Esse é o modelo indutor de agressão. Então, teremos desde agressões mais grosseiras e explícitas até aquelas bem sutis, acompanhadas de elogio, com grande cinismo. Não é à toa que o assédio moral se sofisticou, está complexo, mas extremamente destrutivo.

IHU On-Line – Qual o preço que os trabalhadores do mundo inteiro estão pagando em função da crise financeira internacional? Qual a especificidade do Brasil?

Roberto Heloani – A crise nos países europeus nos mostrou muito bem isso. A gente sabe que a União Europeia é algo difícil de se estabelecer, uma ficção.

Não quero ser pessimista, mas me diga o que um português tem a ver com um grego? O que um grego tem a ver com um alemão? Sabemos que foi uma tentativa de fazer um acordo econômico.

No entanto, a Europa tem línguas e culturas muito diferentes. Já não era uma união fácil. O que mantinha unidos povos tão diversos, que há pouco tempo se digladiavam, era o interesse econômico e o Welfare State – Estado-previdência.

Os países capitalistas centrais tentaram – e conseguiram – bolar um sistema na lógica keynesiana de redistribuição, que é a lógica da social-democracia.

O projeto keyenesiano é um estado, dentro do capitalismo, minimamente protetor. Isso, até certo ponto, manteve as coisas a contento.

Quando, a partir da década de 1980, esse projeto vai sendo paulatinamente substituído pelo projeto neoliberal, teremos o seguinte: o projeto neoliberal vai pregar, afinal de contas, outra lógica, que é a do “salve-se quem puder”, a lógica do Estado mínimo.

Não compete ao Estado ficar pensando muito em educação, saúde, segurança, mas compete ao indivíduo. Esse projeto neoliberal diz o seguinte: você é o principal responsável por você próprio. Esse negócio de sociedade é um “lero”. O neoliberalismo vai, pouco a pouco, minando o Estado protetor, vai tornando esse Estado cada vez menor, menos interventor, menos positivo. E o mercado vai fazendo a vez do Estado.

É claro que, quando se tem uma concepção de Estado dessa forma, se acaba tendo outra concepção de sociedade e de homem, que vai induzir as pessoas a terem projetos voltados a um pequeno grupo social: a si e a família.

Essa nova lógica econômica respinga nos países latino-americanos. Por que o Brasil foi um dos menos afetados? Porque ele foi, na América Latina, um dos poucos países que não aderiu ao projeto neoliberal. Ao contrário da Argentina e principalmente do Chile, onde a previdência foi privatizada.

O respingo da financeirização no Brasil ocorreu e ocorre até hoje. Temos uma inflação latente, um medo latente; porém, apesar de tudo isso, por termos um Banco Central com políticas de intervenção, graças ao governo Lula e ao Bolsa Família, conseguimos incluir como consumidores uma parcela significativa da população que estava totalmente à margem.

É a política interna e as políticas públicas, as ações concretas do governo que amortecem os efeitos, ou, pelo contrário, exponenciam e os aumentam.

Nunca tivemos Estado de bem-estar social no Brasil. O emprego formal aumentou recentemente. Tem mais gente com carteira assinada, mas ainda temos subemprego.

Onde se tem um capital financeiro muito forte em detrimento da produção, é claro que isso trará consequências para a questão do emprego. Há setores que estão se automatizando cada vez mais. Há também a questão dos terceirizados, que será regulamentada agora.

Temos uma situação de uma classe média que perdeu muito, temos as chamadas classes C, D e E que se mantiveram, mas permanece no Brasil um percentual mínimo de pessoas, da ordem de 2%, que detém uma quantidade de riqueza estonteante.

Isso é justamente consequência do processo de financeirização da economia.

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Comentários

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Roberto Heloani: Organização do trabalho induz à agressão | Jornal A Verdade

[…] às pessoas e à organização e, muito menos, uma dedicação incondicional. Ele pode até trabalhar muito, até 16 horas por dia, como alguns trabalham, mas é um trabalho voltado para si, que quer […]

José Augusto Azeredo

O Professor Heloani sabe das coisas… O problema será, como substituirmos o atual estado de coisas, sem uma revolução radical na sociedade que, por enquanto, não a vemos no horizonte.
Sem um caminho de superação, esse estado de coisas tende a se agravar, cada vez mais, avançando para o caos.

Mardones

Muito bom. Foi direto ao ponto. Neoliberalismo não combina com defesa de direitos sociais.

Isidoro Guedes

Excelente essa entrevista com o professor Roberto Heloani. Ele está certo quando reconhece que a lógica neoliberal do individualismo e da competição predatória (do “salve-se quem puder”) levada as últimas consequências, está desumanizando as pessoas e substituindo as saudáveis relações afetivas e de amizade em relações voláteis e de permanente competição e tensão. Não é a toa que os males da psiquê (como a depressão e outras síndromes correlatas) tenham crescido e se disseminado tanto nos últimos anos. E que o assédio moral tenha se estabelecido e venha se sofisticando para não se tornar perceptível.
Não podemos continuar nesse diapasão, assistindo ao crescimento de uma sociedade cada vez mais adoecida mentalmente e cada vez menos criativa e feliz.

claiton

O TRABALHO E OS PRODUTOS NATURAIS SÃO O ÚNICO CAPITAL PURO E IMACULADO…. A DEFESA DOS DIREITOS DO TRABALHADOR E DOS PRODUTOS NATURAIS É OBRIGAÇÃO MAIOR DE TODAS AS SOCIEDADES HUMANAS…..Não existe: riqueza; bens estar humano, e social; desenvolvimento; estabilidade e harmonia social; e o viver pleno em sociedade, sem a participação destes dois elementos.

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