Eliara Santana: “Balbúrdia” na Unicamp revela como fake news e desinformação sistemática ameaçam a democracia

Tempo de leitura: 8 min
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Por Eliara Santana

O tema fake news foi discutido a partir de várias perspectivas durante o Abralin em Cena na Unicamp. Nas fotos, da esq. para a dir.: Simone Hashiguti (UFU, coordenadora da mesa), Beatriz Raposo (USP), Sandra Cavalcanti (PUC Minas), Edwiges Morato (IEL/Unicamp) e Cláudia Wanderley (CLE/Unicamp); Anna Christina Bentes (IEL/Unicamp), Eliara Santana (PUC Minas), Vinicius Romanini (ECA-USP, coordenador da mesa) e Maria Eduarda Giering (Unisinos); a linguista e deputada federal Margarida Salomão; as coordenadoras do evento, Anna Christina e Cláudia; Wagner Romão (IFCH/ADUnicamp), Ivana Bentes (UFRJ) e Kanavilil Rajagopalan (IEL/Unicamp)

Pocket show mostra as fake news no samba, com a banda Qualquer Nota, que é composta por: professora Edwiges Morato (violão); dentista e professora Marcia Piccin (cavaquinho); professora Cecília Pinho (percussão,); químico Aldebaran Prado (percussão e voz) e professor Petrilson Pinheiro (percussão e voz)

por Eliara Santana*

De nada adiantaram as denúncias e ameaças do excelentíssimo ministro da Educação: as universidades brasileiras continuam a promover muita balbúrdia, trazendo à tona a discussão de temas essenciais para ajudar a sociedade a entender o que está acontecendo no Brasil e no mundo.

E assim foi a “balbúrdia” do 14º Abralin em Cena – Fake News e Linguagem, nos dias 21 a 23 de novembro, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo.

O evento, uma realização da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), foi proposto pelo Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp e por seis cursos de pós-graduação: Linguística da Unicamp; Linguística Aplicada da Unicamp; Língua Portuguesa/USP; Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana/USP; Linguística e Língua Portuguesa/UNESP-Araraquara; Linguística da UFSCar.

O tema, essencial na atual conjuntura brasileira, abordou a centralidade da linguagem na compreensão desse fenômeno, que não é prerrogativa do Brasil mas que encontrou, em nosso país, um terreno muito fértil.

Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento construíram uma riquíssima discussão, em várias abordagens, que possibilitou a projeção de um panorama das fake news e da desinformação como questões graves que ameaçam não apenas processos eleitorais, mas os direitos fundamentais, as liberdades individuais e a democracia como um todo.

Propor essa discussão e ampliá-la para os diversos canais, expondo a importância do tema, é um serviço importante que a universidade, como centro difusor do conhecimento, presta à sociedade.

A coordenação da “balbúrdia” ficou por conta das professoras Anna Christina Bentes (professora livre-docente do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp) e Cláudia Wanderley (pesquisadora permanente no Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp).

Nos três dias do evento, muitas mesas-redondas, apresentações de trabalhos, discussões e o show “Fake news no samba”.

Em minha apresentação no evento, na mesa “Fake news, jornalismo e cidade”, propus uma reflexão sobre o ecossistema das fake news e seu papel fundamental no cenário político brasileiro (além de falar do papel do JN nesse cenário). A mesa também foi composta por Anna Christina Bentes (Unicamp), Maria Eduarda Giering (Unisinos) e Vinícius Romanini (USP, coordenador).

Trago aqui algumas questões sobre as quais acho relevante pensarmos bastante – se quisermos entender esse fenômeno e fazer frente a ele.

1.Desinformação como projeto político

O fenômeno das fake news não está, de forma alguma, desconectado do cenário da comunicação no Brasil (e no mundo).

Isso porque a desinformação se estrutura – ou é estruturada – como um projeto político.

Um projeto político que se baseia no processo de imbecilização das pessoas e na consolidação de um sistema estratégico de propaganda que é capaz de levar milhares de pessoas, de todas as faixas de renda e de escolaridade, a acreditarem que um ministro da Educação vai idealizar, publicar e distribuir um material didático para “transformar” meninos de seis anos em gays.

Ou que um navio venezuelano vai “passear” pela costa do Nordeste do Brasil para despejar petróleo.

Ou que as creches vão dar leite às crianças pequenas em mamadeiras com bico no formato de pênis.

Ou que uma revista vai receber 600 milhões de reais para falar mal de Bolsonaro.

Para além do fenômeno grave das fake news, a desinformação como projeto político leva as pessoas a acreditarem que a desigualdade é uma questão de apertar o cinto e não parar de sonhar, portanto, uma questão individual e não estrutural; que a deflação é uma coisa boa para um país; que um astro milionário de Hollywood está interessado em tacar fogo na Amazônia; que o racismo nunca existiu; que a Terra é plana.

A desinformação como projeto político ajuda a convencer a população de que todo mundo pode ser empreendedor – basta querer, e então, todos ficaremos ricos vendendo bolos como Maria da Paz, não importando se o preço do gás está fazendo centenas de famílias voltarem a cozinhar com carvão.

Em resumo, a desinformação como projeto político subtrai das pessoas a capacidade crítica, a conexão com a realidade, a  ligação com o processo histórico, enfim, a capacidade de pensar. No Brasil, o cenário mais amplo de um sistema de comunicação deve levar em conta muitos fatores. Podemos resumir esse cenário mais ou menos assim:

Há muitos fatores que se mesclam para compor um cenário complexo, que nos desafia bastante.

No Brasil, a desinformação estruturada vincula-se a um perverso contexto nacional.

De um lado, a vergonhosa concentração dos meios de comunicação, o que possibilita à mídia corporativa ter o controle da informação, pois controla a produção das notícias (que transportam viés, valores e crenças dos grupos dominantes) e da distribuição, posto que esses meios alcançam todo o território nacional, chegando a todos os lares brasileiros.

Sem pluralidade no acesso, a sociedade é guiada por um único ponto de vista, vendido como informação imparcial.

Aliado a isso, a explosão de grupos neopentecostais com grande espaço na mídia e o controle de amplas fatias do mercado.

Do outro lado, a realidade de um país semiletrado.

De acordo com o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf, do Instituto Paulo Montenegro, em parceria com o Todos pela Educação e o Ibope Intelligentsia), três em cada 10 brasileiros entre 15 e 64 anos têm capacidade limitada para ler, interpretar textos e identificar ironia, portanto, 30% dos brasileiros.

Entretanto, esse grupo, apesar das limitações na interpretação de textos, é extremamente ativo nas redes sociais – do grupo de pessoas semi-alfabetizadas, 86% usam WhatsApp com frequência, 72% utilizam o Facebook e 31% têm conta no Instagram.

De cada 10 brasileiros, SEIS têm WhatsApp no celular. Ou seja, 120 MILHÕES DE PESSOAS a uma mensagem de distância.

Confirmando essa realidade grave e inquietante, a última pesquisa do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa 2018), divulgada no dia 3/12, revelou que o Brasil está estagnado há 10 anos no nível BÁSICO de leitura e compreensão de textos.

Repito: estagnado no nível  BÁSICO de leitura e COMPREENSÃO de textos.

Segundo a pesquisa, apenas 2% dos estudantes brasileiros atingiram os níveis 5 e 6 de proficiência em leitura (os níveis máximos), ou seja, apenas 2% dos estudantes no país têm condições de lidar com conceitos abstratos e diferenciar fato de opinião.

Trocando em miúdos, os estudantes brasileiros não têm habilidades para compreenderem o que leem, veem, assistem, escutam…

Nesse cenário, a indústria perniciosa de fake news encontra um terreno muito fértil para se consolidar e se propagar.

2.As fake news e o mascaramento da realidade

Pensar as fake news num ecossistema nos permite entender que não se trata de um processo simples, de pessoas que, individualmente, “inventam coisas”.

Trata-se de uma produção sistematizada com fins específicos – não é à toa que, no Brasil, o assunto principal das fake news é a política.

De acordo com pesquisa recente divulgada pelo jornal inglês The Guardian, as fake news difundidas pelo WhatsApp durante a eleição do ano passado favoreceram o candidato Jair Bolsonaro – em uma amostra de 11.957 mensagens, compartilhadas por 296 grupos no período da campanha, 42% dos itens divulgados pelo candidato de direita eram falsas, e menos de 3% das mensagens da campanha de esquerda estavam nesse patamar.

Pensando nessas questões, vamos observar o seguinte quadro:

Ao pensarmos o processo das fake news como fenômeno estruturado no Brasil (não espontâneo), vemos, por esse quadro (adaptado para o cenário brasileiro a partir de pesquisa desenvolvida pelo grupo de estudos sobre fake news do MASClab – Teachers College), vários atores que desempenham papel importante nessa configuração, desde os cidadãos comuns (que espalham sabendo ou não se tratar de mentiras) até o esquema de produção bem profissional (como já denunciado por alguns veículos e pesquisas).

Portanto, nosso problema não é “apenas” a disseminação  em larga escala de boatos ou notícias falsas.

É um problema quase sistêmico de ressignificação da realidade no cenário de um país semi-alfabetizado.

Porque não estamos falando somente de boatos. Estamos falando de um processo bem estruturado de desinformação que leva a um mascaramento da realidade. Uma produção sistemática de notícias falsas que recriam o dado real com um viés propositadamente mentiroso.

Ou seja, a distorção mentirosa é deliberada, intencionalmente produzida, não é obra espontânea de um indivíduo entediado.

E essa produção sistemática e sistematizada de fake news, com a ressignificação dos fatos, reconfigura o cenário macropolítico.

As fake news, no atual contexto, retiram da agenda temas essenciais – desemprego, educação, saúde – que desaparecem sob o mascaramento de abordagens estapafúrdias e idiotas como balbúrdia nas universidades, médicos guerrilheiros, navios que derramam petróleo de propósito.

Assim, enquanto nos tiram direitos e recursos da educação, enquanto o país convive com a realidade de mais de 100 milhões de cidadãos sobreviverem com a miséria de 413 reais por mês, ficamos discutindo se as universidades plantam maconha e produzem anfetaminas, ou se Leonardo Di Caprio dá dinheiro a ONGs para tacarem fogo na Amazônia.

Por isso, o enfrentamento a essa sistemática desinformação é urgente!

3.Letramento midiático como forma de enfrentamento

Em linhas gerais, o letramento midiático dispõe sobre o desenvolvimento de habilidades relativas à avaliação crítica da mídia.

Ou seja, o letramento midiático ajudar a desenvolver habilidades para  que adolescentes e crianças (mas não apenas, adultos também) sejam capazes de identificar tipos de mídia, entender como esses diferentes tipos produzem conteúdo, compreender esses conteúdos e analisá-los criticamente.

O letramento midiático ajuda na compreensão de que todo conteúdo vem de algum lugar, ou seja, é produzido por alguém (pessoa ou grupo ou organização) e que a produção daquele conteúdo tem uma razão de ser, tem um objetivo.

De acordo com o Center for Media Literacy (CML), o letramento midiático (ou alfabetização midiática) constrói uma compreensão do papel da mídia (do impresso à internet) na sociedade, bem como das habilidades essenciais de investigação e autoexpressão necessárias para os cidadãos em uma democracia.

Segundo a Unesco, que utiliza o conceito de a alfabetização midiática e informacional, ela cumpre o papel de empoderar os cidadãos a partir de competências (conhecimento, habilidades e atitudes) necessárias para que eles possam compreender o papel e as funções da mídia nas sociedades democráticas; as condições sob as quais a mídia pode exercer suas funções; para avaliar criticamente os conteúdos de mídia e para se envolverem com a mídia para se expressarem e participarem democraticamente da sociedade.

O letramento midiático, portanto, deve ser compreendido como instrumento imprescindível para a cidadania.

O letramento midiático não se limita a ensinar crianças e adolescentes e adultos a “usarem” recursos digitais.

Ele trata, essencialmente, da formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos, ajudando a desenvolver neles as habilidades necessárias para uma compreensão crítica do sistema de comunicação, do sistema midiático, para que possam ter um posicionamento crítico em relação aos conteúdos de todas as mídias.

E é essencial para que esses cidadãos sejam capazes de perceber que alguns veículos, por exemplo, enganam a população quando tentam mostrar que a deflação é um sinal positivo na economia, ou quando omitem certas informações, ou quando deixam de usar certos termos (como desemprego) e os substituem por outros (como emprego informal) para mascarar uma realidade de precarização do trabalho no país.

Para que possam perceber que as representações e associações que a mídia faz, mesmo pretendendo dizer que é humor, criam sérios estereótipos.

O letramento midiático é essencial para que os cidadãos possam perceber, enfim, que o direito à informação plural, de qualidade, acessível a todos é fundamental numa democracia.

P.S: A recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), do Ministério da Educação, propõe: “Analisar o fenômeno da disseminação de notícias falsas nas redes sociais e desenvolver estratégias para reconhecê-las, a partir da verificação/avaliação do veículo, fonte, data e local da publicação, autoria, URL, da análise da formatação, da comparação de diferentes fontes, da consulta a sites de curadoria que atestam a fidedignidade do relato dos fatos e denunciam boatos etc.”.

Diante do cenário brasileiro e mundial, é uma proposição muito tímida no enfrentamento ao problema, sobretudo porque o ele não se restringe apenas ao quadro da disseminação de notícias falsas e das formas de identificar, com checagem. Trata-se de entendê-lo como fenômeno complexo, que envolve uma produção bem estruturada, entre outros elementos.

*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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Eliara Santana

Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e Historia da Ciência (CLE) da Unicamp, desenvolvendo pesquisa sobre ecossistema de desinformação e letramento midiático.


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Comentários

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Zé Maria

O Analfabetismo ‘Disfuncional’, inclusive ‘Acadêmico’,
está afundando o Brasil e o Mundo Ocidental na Lama.

wendel

Fico feliz em ver iniciativas como esta pois só assim iremos nos contrapor a esta imbecilidade que atinge nosso pais atualmente principalmente no MEC.
Bando de imbecis querendo imbecilizar ainda mais esta populaçao semi-analfabeta e de analfabetos funcionais !

Zé Maria

Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN)
interpelou, na Justiça Federal, o ministro da Educação, Abraham Weintraub.

A entidade cobra que o responsável pelo MEC apresente explicações
e informações sobre as declarações que proferiu contra as Universidades
Federais, em entrevista concedida no último dia 22, ao Jornal [SIC] da Cidade.

ANDES, via GGN: https://t.co/Z8aIHKW763

https://twitter.com/luisnassif/status/1202312587469377537
https://jornalggn.com.br/noticia/andes-sn-interpela-ministro-da-educacao-na-justica/

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