Eliara Santana: A cinco meses da eleição, JN leva os brasileiros para Nárnia

Tempo de leitura: 5 min
Array

Por Eliara Santana

Por Eliara Santana*

Abrimos a porta do armário, entramos nele e vamos caminhando por entre casacos, num caminho comprido que desemboca em uma floresta densa, e então caímos numa realidade paralela que não é a realidade do nosso quarto onde estava o armário.

Esse é mais ou menos o começo do filme “Crônicas de Nárnia – o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”.

É um filme ótimo – assim como todos os outros da série – que eu vi com meus filhos e super recomendo.

Mas não estou aqui pra comentar filmes, porque sou péssima nisso. Quero falar sobre a realidade paralela a que somos transportados pelo Jornal Nacional em muitos momentos da vida brasileira, como agora.

Porque essa sensação de abrir o armário e aparecer em Nárnia foi a que eu tive ao sintonizar a TV no JN nestes últimos dias. Me senti sendo levada para aquele lugar mágico (e eu adoraria encontrar o Leão), para uma realidade paralela, onde só existem tartarugas marinhas, roubo de celular, campeonato de kitesurf, futebol americano, guerra lá longe, o frio intenso que leva turistas para a Serra Gaúcha e mobiliza redes de solidariedade etc. etc.

Nessa realidade paralela da Nárnia tupiniquim, não há política, não há economia afundando, não há detalhes da briga intestina do PSDB, não há eleições, não há Jair Bolsonaro confrontando as instituições e a própria democracia a todo o momento, não há discussão sobre a proposta de homeschooling que avança no Congresso, não há terceira via e João Dória.

Em resumo, não há nada que mostre que estamos em um momento de grande tensionamento político, social e econômico.

As edições do JN estão pulverizadas e sem grandes blocos temáticos, como em outros momentos – os grandes temas perdem espaço, e temas periféricos ganham muito destaque.

Um exemplo: na edição de 18/05, uma reportagem de três minutos mostrou vários detalhes sobre a saúde das tartarugas, e outra, de dois minutos, mostrou avanços da Federação Americana de Futebol no pagamento a jogadores.

Editorialmente, é claro que o jornal pode ter uma grade variada, com assuntos diversificados.

Mas o JN não é folhetim, não é Globo Rural nem Globo Repórter. É o telejornal de maior audiência da TV brasileira, assistido ainda por milhões de telespectadores e deve, sim, priorizar os temas da conjuntura nacional, como tão bem fazia em outros momentos e contextos históricos recentes.

Estamos a menos de cinco meses desta que será a eleição mais conturbada desde a redemocratização, e é urgente que os temas políticos, econômicos e sociais sejam colocados em destaque na pauta.

Uma reportagem grande sobre a saúde das tartarugas marinhas – que pode ser feita hoje, amanhã, daqui a um ano – no momento em que o presidente da República dá todos os sinais de que vai tumultuar ao máximo o processo eleitoral (na melhor das hipóteses) e em que a inflação galopante está sem controle não faz sentido algum. Ou faz, quem sabe.

Vamos a alguns pontos das últimas edições:

Política e economia encolhem; violência aumenta

Nas edições, o espaço para os temas de política fica cada vez mais reduzido, e os temas de economia (inflação, desemprego, queda na renda, juros etc.) nem sempre estão na pauta – detalhe: não há ministro que aparece para dizer qualquer coisa – como em Nárnia, não há governo.

Os temas violentos – assaltos, roubos, mortes – ganham mais espaço e mais detalhes, assim como os acidentes de trânsito. A briga do PSDB perde lugar para acidente entre ônibus e caminhão no Mato Grosso.

Notícia é, numa definição bem genérica, algo inédito, que traz “novidade” e tem relevância, é o relato de um fato mais importante ou de maior interesse para o público em geral. Ok.

Mesmo a partir dessa definição técnica e superficial, não se justifica que assuntos como a pesca predatória causando diminuição de tainhas ou o transporte de elefantas entre Brasil e Argentina tenham mais destaque no maior jornal da TV brasileira do que a discussão sobre homeschooling que avança no Congresso ou sobre a disputa cheia de golpes do PSDB, que já foi um dos maiores partidos do Brasil.

Enfim, precisamos estar muito atentos para outros componentes do gênero notícia para além dos meramente técnicos, porque esses últimos não explicam o que ocorre no JN.

Bloco de Internacional tem espaço maior

Os assuntos de outros países passam a ser mais importantes do que discutir todas as questões que temos por aqui.

Além da guerra na Ucrânia – variações sobre um mesmo tema –, há muito destaque para questões bem específicas em outros lugares, exemplos: perda do bebê de Britney Spears, casos de Covid na Coreia, venda de trigo da Índia para outros mercados, fim do inquérito sobre as festas do primeiro-ministro inglês na pandemia e por aí vai.

Vejam: não estou dizendo que temas ou assuntos internacionais não devam estar na grade. Pelo contrário. Mas há uma abordagem excessiva e exagerada em relação a vários temas que nem mereciam estar na pauta e que tomam o lugar dos assuntos que nos interessam de fato.

Além disso, a cobertura é eurocentrada – não há nada sobre América Latina, e quando há é negativo, e a cobertura relativa ao Oriente se dá pelo viés da Covid, como o lockdown na China. Sem considerar que muitas das notícias internacionais (como a perda do bebê pela cantora) deveriam estar no Fantástico e não no JN.

Por fim, nada justifica que a notícia da falta de leite artificial para os bebês norte-americanos tenha destaque por dois dias seguidos no jornal – não faltam assuntos por aqui, vale.

Boletim do Tempo ganha mais tempo

A onda de frio extremo que atinge o sul e o sudeste do país deve estar na pauta sim, é algo inédito mesmo. Mas me parece que a onda de frio foi um bálsamo para o JN escapar dos temas difíceis em política e economia – e a tendência de mais tempo para o Boletim do Tempo não é desta semana apenas.

Quero registrar também que a cobertura do JN até se esforça para mostrar o absurdo da situação dos moradores de rua em São Paulo, destaca as ações de solidariedade, mas não problematiza minimamente a ausência do Estado, do Poder Público – nenhuma autoridade é ouvida, é como se o problema fosse somente o frio extremo.

Não se mostra que o presidente afronta a democracia

É bastante claro que a estratégia de Bolsonaro é criar factóides para alimentar seus seguidores e fugir dos assuntos conjunturais do país. E é ótimo que a imprensa não caia nas armadilhas.

No entanto, simplesmente fingir que não há um governo que afronta a democracia e que está destruindo o país – política, econômica e socialmente – não é o melhor caminho, pelo contrário. É preciso que a população saiba o que ocorre, especialmente em ano eleitoral.

Por fim, ao conduzir os brasileiros para uma realidade paralela, que não reflete a situação de gravidade política, econômica e social que o país vive, o JN contribui para a desinformação e cerceia ou interrompe um debate que poderia e deveria estar sendo feito num ano eleitoral.

*Eliara Santana é jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. Coordenou o curso “Desinformação, Letramento Midiático e Democracia no Brasil”, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e foi co-coordenadora do I Ciclo de Letramento Midiático do PPGL da Universidade Federal do Rio Grande

Leia também:

Samuel Pinheiro Guimarães: Bolsonaro, o destruidor do futuro do Brasil

Mujica, horrorizado: Por que 25% a 35% dos latino-americanos apoiam governos autoritários?

Luis Fernando Miguel: Ciro Gomes tem uma segunda chance

Array

Eliara Santana

Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e Historia da Ciência (CLE) da Unicamp, desenvolvendo pesquisa sobre ecossistema de desinformação e letramento midiático.


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

https://twitter.com/i/status/1528378768573743104

Caro Professor Cristiano Zanin Martins, Eminente Jurista Brasileiro,
vamos lembrar à Imprensa-Empresa Fascista Lavajatista Antipetista
que não paira na Justiça Brasileira qualquer acusação ao ex e Futuro
Presidente Luiz Inácio LULA da Silva, o Melhor Chefe de Estado e de
Governo da História deste País; que todos os Processos contra Lula
foram Arquivados e “só sobraram Fake News, Mentiras, inclusive uma
Antiga Reportagem do Jornal O Globo, nada mais ?

https://mobile.twitter.com/LulaOficial/status/1528378768573743104

Zé Maria

A Globo já esqueceu da Corrupção no desgoverno Bolsonaro
e tá nem aí para as Atrocidades do Energúmeno Genocida
e as Falcatruas Econômicas do Guedes Poço-Sem-Fundo.

Os Globais – assim como a Mídia Fascipaulista – estão de Abraços com a Candidatura à Reeleição do Miliciano-Mor.

Sem os Neoliberais PSDB e DEM, na Parada, vão de Centrão.
É a Única Via que restou à Imprensa-Empresa Tradicional.

Zé Maria

OTAN infectada com o Vírus da Monkeypox:

Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Espanha,
Estados Unidos da América, França, Holanda,
Itália, Portugal, Reino Unido da Grã-Bretanha
e Suécia.

No braZil, há um Caso de Monkeypox Reversa:
É o de uma Pústula que matou o Víruspox no
Palácio da Alvorada, em Brasília-DF.
Mas, por enquanto, felizmente, só contagiou
as Emas e o Gado do Cercado.

Haroldo Cantanhede

A redebobo é GOLPISTA. E age como tal, desinformando, imbecilizando, anuviando a capacidade pensar dos nativos; esta é a sua “missão”. E isso se presumirmos que os espectadores dela pensem.

Cleiton do Prado Pereira

“A L E L U I A”
Alguém enfim descobriu que as organizações Globo estão desde 2018 trabalhando para reeleição do sujeito. Quando era o PT que governava com Lula e Dilma nunca ouvi no JN o nome deles, era sempre “Governo Federal” e ou “O Presidente da República”, agora o nome completo e com impostação de vós, é sempre “O PRESIDENTE JAIR MESSIAS BOLSONARO” que é dito pelo menos umas trinta vezes todos os dias por todos os participantes de toda a organização.

Henrique Martins

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/homeschooling-senado-deve-votar-contra-o-estudo-em-domicilio/
“Não haverá açodamento para essa apreciação. Existe uma comissão de educação e não seria razoável subtrair dela um tema desses”, disse Pacheco.

Ao menos uma decisão sensata do presidente do Congresso. Não há como discutir um assunto tão sensível neste momento de turbulência eleitoral e com o país correndo o risco de sofrer um golpe de Estado o que significa que o próprio Congresso está correndo o risco de ser fechado. Se Bolsonaro contestar o resultado das eleições obviamente vai estar contestando as eleições de todos que forem eleitos simplesmente porque não tem como provar fraudes nas eleições e, portanto, não tem como provar quem poderia ter fraudado. Ele não tem provas hoje de que as urnas podem ser fraudadas e não terá amanhã não. O cara pretende instalar o caos no país para justificar a intervenção das Forças Armadas. Acontece que uma vez que a ditadura estiver instalada ele não sairá mais do poder, ou se sair, outro militar assumirá o lugar dele. Já tivemos que aceitar 20 anos de ditadura militar. Uma vez que as ditaduras militares se instalam não é fácil tirá-las do poder não. A história não me deixa mentir. Agora deixar que seja instalada uma ditadura militar sob o comando de um cara louco não tem nem comentário. A ditadura militar que sofremos era perniciosa sim e cometeu atrocidades, mas não tem como negar que prezava pela soberania do país, era desenvolvimentista, não tinha fundamentalistas, não destilava preconceitos na sociedade, não destruía a educação, a saúde e nem o meio ambiente, não matava índios e muito menos incentivava o armamento (até por razões óbvias). Agora essa que Bolsonaro pretende instalar é a desgraça total. Pacheco diz que não acredita na possibilidade de golpe. Então continua nesta toada Pacheco e você vai ver aonde isso pode chegar. Esse cara é louco e são mal intencionados e/ou oportunistas todos aqueles que o apóiam porque sabem muito bem disso. Estão todos pegando carona na loucura dele e levando o país ladeira abaixo. Bolsonaro quer a ditadura ou o caos com organizações paramilitares. Simples assim. Se não conseguir uma coisa vai tentar a outra.
Dentre outras coisas (como a entrega da soberania do país um bilionário a serviço dos EUA), você acha que o Musk veio fazer o que aqui após anunciar a compra do Twitter e ser ferrenho apoiador de Donald Trump?
Vocês não são ingênuos não. De duas uma: ou estão acreditando na sorte ou são mal intencionados porque defender interesses próprios em detrimento do direito e bem estar de mais de 200 milhões de pessoas é uma atrocidade. Corajosos vocês. Sinal que não acreditam na existência da providência divina. Vocês congressistas e militares de pijama não sabem o tamanho da responsabilidade espiritual que estão assumindo. Aqui se faz aqui se paga nesta ou noutra vida.

abelardo

Avalio o jornalismo das Organizações Globo como inodoro, incolor, inconclusivo, inconfiavel, indesejável, imprudente, intolerante, indipentee e incapaz de ser honesto consigo mesmo. É quase um lixo, onde falta muito pouco para sê-lo.

Ibsen Marques

Nárnia foi uma excelente comparação para mostrar a realidade paralela em que a grande mídia tenta nos colocar. Problematizar não é uma possibilidade para essa imprensa, nem mesmo a escrita, porque colocaria em cheque os rumos da economia, na verdade, o rumo: o desastre.
Problematizar tarifa questionamento às privatizações, só controle – ou descontrole- imposto pelo teto de gastos. A transferência de recursos da educação para as ffaa, o descaso com a saúde e o meio ambiente. De que adianta falar da pesca predatória e não mostrar sua íntima relação com a despolíticas ambientais desse desgoverno e o estímulo ao descumprimento da lei.
Bolsonaro é fruto, e talvez não o pior, dessa mídia associada e imbricada à nos grande elite econômica. Desde que o jornalismo se fez empresa e faturou seu primeiro milhão com anunciantes e marketing, desde ali foi decretada a morte do jornalismo.

Guanabara

Sem novidades. JN está fazendo a mesma coisa que sempre fez. Apesar do alto índice de desemprego, perda de renda, maior inflação desde o início do Plano Real, a palavra “crise” não faz mais parte do vocabulário da grande mídia. O ministro da Economia, responsável direto pelo quadro devastador que vivemos, está completamente blindado. Guido Mantega não podia ir a um restaurante em SP sem ser hostilizado publicamente devido a já uma campanha de ódio disseminada pelos mesmos órgãos de mídia. Ou seja, a “grande mídia” não faz jornalismo. Faz propaganda. Sempre fez e continua fazendo.

Deixe seu comentário

Leia também