Washington Novaes: Perdidos em meio à soja sul-mato-grossense

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Quem poderá salvar os guarani-caiovás?

09 de novembro de 2012 | 2h 09

por WASHINGTON NOVAES, no Estadão

Há mais de 20 anos – 15 dos quais nesta página – o autor destas linhas escreve sobre a situação dramática dos índios guarani-caiovás, em Mato Grosso do Sul (MS). Naquele tempo já eram centenas os casos de suicídio entre essa gente (a segunda maior etnia indígena no País, 45 mil pessoas).

E já nesse tempo eles não tinham onde viver segundo seus formatos próprios – as terras para as quais gradativamente os expulsavam eram muito pequenas, não permitiam manter a tradição de plantar, colher, caçar, pescar.

Fora de suas terras, sem formação profissional adequada, seguiam a trajetória fatal: trabalhar como boias-frias, tornar-se alcoólatras, mendigos, loucos. E suicidas, como o jovem de 17 anos que se matou no dia seguinte ao de seu casamento – enforcou-se numa árvore e, sob seus pés, na terra, deixou escrito: “Eu não tenho lugar”.

Quando ganhou espaço na comunicação a atual crise em dois hectares onde vivem 170 índios (Estado, 29/10), dois dias antes se suicidara um jovem de 23 anos, pelas mesmas razões. Felizmente, a desembargadora Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal, determinou que os guarani-caiovás permaneçam na área até que se conclua a delimitação da que lhes deve caber – e onde estão “em situação de penúria e falta de assistência”, o que, segundo ela, “reflete a ausência de providências do poder público para a demarcação das terras”. Dizia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesse momento, que 1.500 guarani-caiovás já se haviam suicidado.

Só pode levar ao espanto trazer à memória que havia 5 milhões de índios ocupando os 8,5 milhões de quilômetros quadrados em 1500, quando aqui chegaram os colonizadores – ou seja, cada um com 1,7 quilômetro quadrado, em média.

E hoje os guarani-caiovás da aldeia em questão precisam ameaçar até com suicídio coletivo para manterem 170 pessoas em dois hectares, 20 mil metros quadrados, menos de 120 metros para cada um, pouco mais que a área de um lote dos projetos habitacionais de governos. Mas nem isso lhes concedem.

Talvez já tenha sido mencionado em artigo anterior pensamento do antropólogo Lévi-Strauss num de seus livros, no qual se perguntava por que os índios brasileiros, que eram milhões, não massacraram os primeiros colonizadores, que eram umas poucas centenas. Teria sido muito fácil. Mas ele mesmo respondia: não só não mataram, como os trataram como fidalgos; porque na cosmogonia do índio brasileiro está sempre presente a chegada do outro – e esse outro é o limite da liberdade de cada pessoa. Tal como pensava outro antropólogo, Pierre Clastres (A Sociedade contra o Estado): nas culturas indígenas não há delegação de poder, ninguém dá ordens; cada indivíduo é livre; mas o limite da liberdade de cada pessoa está em outra pessoa. Só que o respeito à liberdade dos colonizadores custou aos índios o massacre. E situações como as que vivem hoje.

De pouco têm adiantado relatórios de organismos internacionais, entre eles o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que destacam a importância (a começar pelo Brasil) das áreas indígenas para a conservação da biodiversidade, em perigo no mundo. Também têm sido esquecidas as lições do jurista José Afonso da Silva, que com seu parecer levou o Supremo Tribunal Federal a decidir pelo direito dos índios ianomâmis à demarcação de suas reservas, em Roraima: é um direito reconhecido desde as ordenações da coroa portuguesa, no século 17.

Mas quem comove o poder brasileiro? Ainda no ano passado – talvez também já tenha sido comentado aqui -, quando completou meio século a criação do Parque Indígena do Xingu pelo presidente Jânio Quadros, por proposta dos irmãos Villas Boas, o autor destas linhas, com apoio do ex-ministro Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do compositor e criador Egberto Gismonti, do ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Márcio Santilli – entre muitas outras pessoas -, tentou levar à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a proposta de transformar o parque em patrimônio ambiental, histórico e cultural da humanidade.

Afinal, naqueles 26 mil quilômetros quadrados, onde vivem 16 povos, está um pedaço riquíssimo do patrimônio ambiental brasileiro – de sua flora, sua fauna, seus recursos hídricos -, hoje cercado pelo desmatamento e pelo plantio de grãos; um pedaço importante da nossa História, pois a presença de etnias por ali tem mais de 2 mil anos; um pedaço valioso do patrimônio cultural, com todas as manifestações lá nascidas e que perduram. Mas para que a Unesco receba um pedido como esse é imprescindível – foi-nos dito – que ele tenha o aval de alguma autoridade brasileira. E não conseguimos sequer uma audiência da Funai ou de outro órgão para expor o pleito.

Não estranha. Aprendemos mais uma vez que uma iniciativa como essa é considerada “ameaça à soberania nacional e ao uso de recursos naturais”. Tal como já acontecera em 2002, quando o autor destas linhas, membro da comissão que preparava o projeto da Agenda 21 brasileira, observou, numa reunião, que faltava no texto um capítulo sobre clima e mudanças nessa área. E propunha que ele fosse escrito.

Imediatamente o representante do Itamaraty na comissão se levantou e impugnou a proposta, alegando que “essa área, que envolve a soberania brasileira, é privativa das Forças Armadas e do Itamaraty”. Ponto final. Já promulgada a Agenda, no início do novo governo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) pediu que este escriba a representasse na Comissão da Agenda. A proposta do capítulo sobre clima e desenvolvimento sustentável foi reapresentada e aprovada em princípio. Mas jamais foi discutida. Morreu.

Tampouco estranha, assim, que os guarani-caiovás enfrentem esse calvário. Se o Parque do Xingu não pode ter prioridade, se centenas de milhares de índios em todo o País vivem um drama diário, que importância tem para o poder a sina de algumas dezenas de guarani-caiovás perdidos em meio à soja sul-mato-grossense?

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Paulo Petersen: Para os ruralistas, é essencial que a Embrapa continue a serviço do agronegócio « Viomundo – O que você não vê na mídia

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João Paulo Ferreira de Assis

O grande mal do Brasil é que as etnias oprimidas não se unem para defender-se dos ataques contra elas desferidos pelo agronegócio. Vejo de um lado as comunidades quilombolas lutando sozinhas. De outro lado as comunidades indígenas, também sós. Desunidos, negros e indígenas serão massacrados.

SUGESTÃO MINHA:

Que as comunidades quilombolas e indígenas tenham o caráter de município. Assim poderão eleger prefeitos e vereadores, ter cartório de registro civil, e com a lei o governo federal deve criar uma mesa de negociação para resolver as questões entre os interesses divergentes.
Por outro lado, é até uma sugestão que resolve um outro problema: aquele acordo assinado pelo Brasil que se ratificado, irá resultar na independência de todas as nossas comunidades indígenas. Com a equiparação a um município, o Brasil pode alegar que cumpriu a sua obrigação de proteger as populações originais.

    Alberto Silva

    Caro JP,

    Aqui talvez uma resposta a sua e nossa ansiedade: http://frentequilombola.wordpress.com/Convocação para Plenária e Nota Publica da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas Sobre a Aprovação do Projeto de Relatório 18/2012 na Assembléia Legislativa do RS
    abs,

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