Em campanha, O Globo do Chile usa o espantalho do chavismo

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O jornal ‘El Mercurio’, os meios de comunicação e o fantasma do chavismo

Convencido do triunfo de Michelle Bachelet nas próximas eleições presidenciais do Chile, o diário El Mercurio trabalha para desqualificar propostas programáticas da candidata socialista que poderiam mudar o status quo e corrigir ostensíveis déficits políticos, sociais e econômicos de nossa democracia.

Gustavo González Rodrígues*, na Carta Maior

O jornal El Mercurio parece convencido da inevitabilidade do triunfo de Michelle Bachelet nas próximas eleições presidenciais e se mostra empenhado em colocar o curativo antes da ferida ou, o que vem a ser o mesmo, exercer sua influência para desqualificar propostas programáticas da Nueva Mayoría [1] que poderiam mudar o status quo e corrigir ostensíveis déficits políticos, sociais e econômicos de nossa democracia.

As páginas editoriais do decano da imprensa chilena mostram, nos últimos meses, um compêndio de alarmes a propósito do “desnecessário afã refundacional” que implica uma Assembleia Constituinte e da emergência de um “sentimento antiempresarial e estatista” que põe em perigo “o crescimento obtido graças à economia de mercado”, para mencionar os dois tópicos principais da preocupação mercurial, que coincidem obviamente com o discurso da Alianza por Chile [2].

Nos últimos dias El Mercurio acrescentou um novo tema que, para dizer a verdade, esteve solapado na vitalícia transição chilena pelos quatro governos concertacionistas e pela administração de Piñera: o da indústria midiática.

Na quinta-feira 30 de julho, o matutino dedicou seu principal editorial, sob o título “Risco para os meios de comunicação”, às propostas que contém ao respeito o documento “Compromissos para o Chile que queremos”, elaborado pela Comissão de Programa dos partidos da Nueva Mayoría.

Se deve celebrar que finalmente as coletividades da clamada centro-esquerda abordem este vital assunto e, embora tivesse que agradecer ao [documentário] Diario de Agustín [3] por contribuir de sua maneira a fazer visível um problema que vem afetando profundamente a qualidade da democracia, não cabe mais impugnar a forma em que o faz, com um discurso fundamentalista que desconhece os dados da realidade e cai levianamente na desqualificação, recorrendo a dois termos que a linguagem direitista utiliza grosseiramente como estigmas: chavismo e kirchnerismo.

Em uma espécie de sobremesa do prato forte editorial, na segunda-feira 5 de agosto, também na página 3 do decano, se inclui uma coluna de opinião da jornalista Tamara Avetikian (“Hegemonía mediática ¡no!”), acerca do enfrentamento na Venezuela entre o governo de Nicolás Maduro e o jornal El Nacional.

A colunista fecha seu texto dizendo que dispararam “alarmes” a propósito das propostas programáticas sobre os meios de comunicação recebidas por Michelle Bachelet, que poderiam reproduzir no Chile a situação venezuelana.

Nos “Compromissos para o Chile que queremos” se postula “o direito a uma informação plural, veraz e transparente, o que nos leva a lutar por estabelecer as condições para democratizar o atual sistema de meios de comunicação, que permitiu concentrar em poucas pessoas ou empresas, nacionais ou estrangeiras, o controle dos meios de comunicação massivos”.

“Também resulta necessário incentivar, nos meios de comunicação tradicionais, um autêntico pluralismo tanto nos conteúdos como na propriedade”, acrescenta o documento das comissões programáticas dos partidos da Nueva Mayoría.

Na visão mercurial o diagnóstico sobre a concentração da propriedade dos meios de comunicação e as aspirações de pluralismo viriam a ser consignadas chavistas ou kirchneristas, que ameaçariam o sistema de meios de comunicação no Chile, que por oposição a esses obscuros desígnios não teria rasgos monopólicos nem oligopólios e seria garantia de uma informação veraz, plural e transparente.

Foi esse próprio sistema de meios de comunicação o que se encarregou de construir visões tendenciosas, estereótipos, demonizações e estigmas sobre as experiências políticas da Venezuela e da Argentina, assim como do Equador e da Bolívia (seguidores do “modelo chavista” no discurso editorialista do El Mercurio).

Assim, vem a ser quase um passe de mágica dar por encerrado o debate sobre a paisagem midiática chilena com o simples expediente de qualificar de chavistas aqueles que reivindicam sua democratização.

Para que a operação seja completa, os meios de comunicação tradicionais (imprensa escrita, rádio e televisão) ignoraram ou censuraram os numerosos relatórios e estudos que documentam a concentração da propriedade dos meios de comunicação no Chile, elaborados por investigadores a salvo de qualquer suspeita de chavismo.

“Os magnates de la prensa”, da Prêmio Nacional de Jornalismo María Olivia Mönckeberg (Random House Mondadori, 2009), foi mencionado por El Mercurio, contra sua vontade, só nos rankings de altas vendas das livrarias.

A lista de exemplos similares é demasiado extensa. Basta citar dois casos recentes.

A imprensa tradicional silenciou as “Propostas do Colégio de Jornalistas do Chile sobre Políticas Públicas para a Comunicação Social”, dirigidas a candidatas e candidatos presidenciais e parlamentares apresentadas no dia 11 de julho.

Segundo os cânones mercuriais, esse documento estaria também contaminado com o vírus do chavismo, pese a sua aprovação por unanimidade no Conselho Nacional desta ordem, onde estão representadas diversas correntes ideológicas e políticas, algumas francamente identificadas com a oposição venezuelana. (Nota: O texto pode ser lido aqui).

Entre outros pontos, o Colégio de Jornalistas faz eco a propostas das relatorias para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas e da Organização de Estados Americanos, no sentido de que o pluralismo comunicacional se garanta com a convivência em pé de igualdade de três tipos de meios: comerciais, comunitários e públicos (não governamentais).

Segundo caso: quando em janeiro-fevereiro de 2014 se reunir o Conselho de Direitos Humanos da ONU para seu exame periódico universal sobre a situação nos países membros da organização mundial, contará quando analisar a situação da liberdade de imprensa com a contribuição de Repórteres sem Fronteiras (RSF), ONG internacional com caráter consultivo nessa instância.

O que diz a RSF sobre a liberdade de imprensa no Chile?

Vale a pena ler o primeiro parágrafo do relatório: 

“O Chile ocupa o sexagésimo lugar, entre 179 países, na Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2013 de Repórteres sem Fronteiras. Esse país se caracteriza por uma concentração excessiva dos meios de comunicação, daí sua flagrante falta de pluralismo. Aproximadamente 95% das publicações de imprensa escrita se encontram em mãos de dois grupos de comunicação privados: El Mercurio e Copesa, únicos beneficiários do sistema de subvenção do Estado instaurado ainda na ditadura – pelo que recebem cerca de 5 milhões de dólares ao ano –, em detrimento dos meios de comunicação independentes. Também cerca de 60% das estações de rádio pertencem ao grupo de imprensa espanhol Prisa. Assim, os meios de comunicação independentes – como as rádios comunitárias – se debatem para sobreviver e assegurar sua subsistência econômica, posto que o país ainda não conta com um marco legislativo que garanta um equilíbrio entre os diferentes tipos de meios de comunicação no espaço de difusão”.

Dificilmente a RSF pode ser acusada de organização chavista.

Pelo contrário, desde setores de esquerda afins aos governos de Cuba e Venezuela, é acusada de ser uma entidade “de fachada” da CIA estadunidense e de receber financiamento do Departamento de Estado norte-americano.

O ranking da liberdade de imprensa em 179 países, onde o Chile aparece no lugar 60, relega a Venezuela ao posto 117 e Cuba ao 171.

Os Estados Unidos ocupam a posição número 32, ainda que a RSF tenha levado a cabo uma campanha de defesa do soldado Bradley Manning, condenado a 35 anos de prisão por uma corte marcial estadunidense, sob acusações de espionagem pelas informações que vazou ao WikiLeaks.

O substantivo é que o diagnóstico sobre a falta de pluralismo no sistema midiático chileno é compartilhado pelos mais variados setores e só a partir de uma visão tendenciosa, como a que abunda nos editoriais do El Mercurio, se podem negar os perigos reais que representa a concentração da propriedade dos meios tradicionais.

A imprensa e a televisão chilenas estão contaminadas de afãs censuradores, que inclusive chegam a um canal supostamente público como TVN [TV Nacional], manejado já não com critérios somente comerciais, mas com a lógica empresarial que permeia todo o atual governo.

A vergonhosa censura à exibição do [documentário] El diario de Agustín [acima], o fim escondido do programa “La nueva belleza de pensar” e o patético episódio dos “problemas técnicos” que derivaram em mutilações do documentário “Nostalgia de la luz” [Nota do Viomundo: o documentário de Patricio Guzmán enfrentou problemas ao ser exibido na TV Nacional do Chile, estatal. O diretor levantou suspeitas. A TV Nacional justificou com problemas técnicos, alegou que já tinha mostrado o documentário e promoveu uma reexibição], são atos atentatórios à liberdade de expressão.

Não é uma simples anedota que o Canal 13, do grupo Luksic, com uma direção encabeçada pelo militante do PPD e ex-ministro da Fazenda Nicolás Eyzaguirre, censure um programa de investigação jornalística que denuncia más práticas de empresas produtoras de alimentos de consumo massivo.

O que esse fato pôs de manifesto é a contradição implícita entre a liberdade de informação e a apropriação dos meios de comunicação por grandes grupos econômicos.

Quando El Mercurio ataca o rascunho programático da Nueva Mayoría, lança advertências, implícitas chantagens em termos de suas pautas de cobertura da campanha eleitoral e, sem dúvida, busca também que no heterogêneo comando de Michelle Bachelet se imponham figuras moderadas e, obviamente “antichavistas”.

Entre eles René Cortázar, outro ex-ministro e membro da direção do Canal 13 que, segundo o ex-senador Ricardo Hormazábal não está ali representando a Democracia Cristã, mas o grupo Luksic.

Juan Somavía, até há pouco diretor geral da Organização Internacional do Trabalho, integrante também do comando bacheletista, teve a honra, nos anos 80, de acompanhar Gabriel García Márquez como membro da comissão redatora do Relatório McBride, famoso documento da Unesco que colocou no debate internacional o tema da democratização das comunicações.

Uma matéria pendente no Chile que deve ser debatida de frente ao país nesta hora de promessas de mudanças, à margem dos interessados “alarmes” de El Mercurio.

Notas

[1] Nueva Mayoría, o conglomerado político que respalda a candidatura presidencial de Michelle Bachelet, integrado pelos partidos da Concertação Democrática — Democracia Cristã, Socialista, Radical Socialdemocrata e Partido pela Democracia (PPD) –, mais o Partido Comunista, o Movimento Amplo Social e a Esquerda Cidadã.



[2] Coalizão política da direita chilena.



[3] El Mercurio, principal jornal chileno, desde o ano de 1875 propriedade da família Edwards. Agustín Edwards Eastman (85 anos), presidente da empresa desde 1956, conspirou junto a Henry Kissinger contra o governo da Unidade Popular e recebeu financiamento da CIA, segundo consigna o censurado documentário “El diario de Agustín”.




*Jornalista. Ex-acadêmico do Instituto da Comunicação e Imagem, Universidade do Chile. Diretor da Escola de Jornalismo desta universidade desde 2003 até 2007. Entre 1978 e 2006, desempenhou funções de editor e correspondente do IPS [Instituto Prensa e Democracia] em Quito, Roma, San José da Costa Rica e Santiago do Chile.

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Wagner Ortiz

Lá como cá. Corporações midiáticas são o câncer da sociedade, principalmente na América Latina

FrancoAtirador

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O editorial de O Globo e a caixa preta da relação da mídia com a ditadura

Argumento do editorial de O Globo, em resumo, é:
“à luz da história, olhando 50 anos depois, foi um erro,
mas naquele momento foi imprescindível
para a manutenção da democracia”.
A participação da mídia brasileira no Golpe de 1964 é um episódio que ainda está para ser plenamente contado.
Há muitas lacunas e zonas cinzentas nesta história. E isso não parece ocorrer por acaso.
Muitos dos compromissos que levaram uma parte importante da imprensa brasileira a se aliar com setores golpistas e autoritários permanecem presentes e se manifestam em outros debates da vida nacional.
Comissão da Verdade tem oportunidade para abrir caixa preta da relação da mídia com a ditadura.
Abrir essa caixa preta é uma condição para o avanço da democracia no país.

Por Marco Aurélio Weissheimer, no SUL21, via Carta Maior

O jornal O Globo publicou editorial, dia 31 de agosto, admitindo que “o apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, ou um “equívoco” como também diz o texto. A decisão de tornar pública essa avaliação, diz ainda o editorial. “vem de discussões internas de anos, em que as Organizações Globo concluíram que, à luz da história, o apoio se constituiu um equívoco”. Quase 50 anos depois do golpe civil-militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart, as organizações Globo vêm a público falar desse “equívoco”, lembrando que outros grandes jornais do país também aderiram ao movimento golpista (cita o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Jornal do Brasil e o Correio do Brasil, “apenas para citar alguns”) e admitindo que as vozes recentes das ruas afirmando que “a Globo apoiou a ditadura” são inquestionáveis.

Mas o que poderia parecer uma autocrítica acaba descambando ao longo do texto do editorial para um exercício cínico de justificação da decisão tomada em 1964 e de ocultamento dos benefícios que a empresa teve por seu apoio aos golpistas. O texto cita um editorial assinado por Roberto Marinho em 1984, que “ressaltava a atitude de Geisel em 13 de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos institucionais, o principal deles o AI5, reestabeleceu o habeas corpus e a magistratura (…)”. Logo em seguida, justifica o apoio ao golpe destacando “os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos” e a crença de que o golpe foi “imprescindível para a manutenção da democracia e, depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana”. O argumento do editorial, em resumo, é: “à luz da história, olhando 50 anos depois, foi um erro, mas naquele momento foi imprescindível para a manutenção da democracia”.

Mídia e ditadura: uma história a ser contada

O exercício editorial de cinismo e memória seletiva de O Globo serve ao menos como oportunidade para trazer à luz um debate que permanece escondido nas sombras no Brasil. É uma oportunidade histórica para debater as relações entre as grandes empresas de comunicação do país e a ditadura civil-militar que atingiu o Brasil entre 1964 e 1985. Várias dessas empresas construíram seus impérios midiáticos gozando de favores e benefícios dos governos da ditadura. A imensa maioria da população brasileira não conhece essa história, especialmente as novas gerações.

O nosso país está muito atrasado neste processo. A Argentina, por exemplo, ao contrário do que aconteceu no Brasil, está acertando as contas com o período da ditadura militar (1976-1983). Além de dar prosseguimento ao julgamento dos militares e policiais acusados de crimes como tortura e assassinato, o governo argentino decidiu mexer em outro vespeiro e levantou o tapete que escondia as relações promíscuas entre a ditadura e meios de comunicação. No dia 24 de agosto de 2010, por exemplo, a presidente Cristina Fernández de Kirchner apresentou um relatório de mais de 20 mil páginas acusando os donos dos principais jornais do país de envolvimento em crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura.

No relatório, intitulado “Papel Prensa, a Verdade”, o governo argentino denunciou os proprietários dos jornais La Nación, Clarín e do extinto La Razón de terem se apropriado ilegalmente e mediante ameaças da maior empresa fornecedora de papel jornal do país na época da ditadura, a Papel Prensa, em novembro de 1976. O documento relata como os antigos proprietários da empresa, o banqueiro David Gravier e sua esposa Lídia, foram sequestrados pelos militares em 1977 e forçados a assinar papéis “vendendo” suas ações na empresa. Uma parte importante das investigações do governo argentino baseia-se no testemunho de Lídia Papaleo que, além ter sido sequestrada, foi torturada pelos militares argentinos.

Em um artigo, intitulado “O que há por trás de um jornal chamado Clarín” (Carta Maior (04/06/2012), o jornalista Eric Nepomuceno relata um trecho de um novo depoimento de Lídia Papaleo à Justiça argentina. Ela afirmou:

“Até hoje lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e minha filha seríamos mortas.”

Héctor Magnetto, assinala Nepomuceno, era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. Foi quem, naquele distante 1976, e antes do sequestro e das torturas de Lidia Papaleo, se reuniu com ela, e foi diante dele que ela capitulou.

Os proprietários dos jornais acusados acusaram e seguem acusando o governo argentino de querer controlar a imprensa e impor um regime de censura. A verdade é que, como aconteceu também no Brasil, essas empresas apoiaram a ditadura, beneficiaram-se com ela e, possivelmente, são cúmplices diretos ou indiretos de vários crimes cometidos pelo regime ditatorial.
Ao mexer na caixa preta da mídia, Cristina Kirchner comprou aquela que é, talvez, a mais pesada luta de seu governo.

Porta-vozes do interesse público?

As empresas de comunicação têm o hábito de se apresentarem como porta-vozes do interesse público. Em que medida uma empresa privada, cujo objetivo central é o lucro, pode ser porta-voz do interesse público? Essas empresas participam ativamente da vida política, econômica e cultural do país, assumindo posições, fazendo escolhas, pretendendo dizer à população como ela deve ver o mundo. No caso do Brasil, assim como ocorreu na Argentina, a história recente de muitas dessas empresas é marcada pelo apoio a violações constitucionais, à deposição de governantes eleitos pelo voto e pela cumplicidade com crimes cometidos pela ditadura militar (cumplicidade ativa muitas vezes, como no caso do uso de veículos da Folha de São Paulo para o transporte de presos políticos torturados durante a famigerada Operação Bandeirantes-OBAN).

Até hoje nenhuma dessas empresas julgou necessário justificar seu posicionamento durante a ditadura. O Globo faz o primeiro ensaio disso agora, em um texto que, a todo momento, procura justificar o “erro” pelo “contexto histórico”. Muitas delas sequer usam hoje a expressão “ditadura” ao se referir àquele triste período da história brasileira, preferindo falar em “regime de exceção”. Agem como se suas escolhas (de apoiar a ditadura) e os benefícios obtidos com elas fossem também expressões do “interesse público”. Apoiar o golpe militar que derrubou o governo Jango foi uma expressão do interesse público? Ser cúmplice de uma ditadura que pisoteou a Constituição brasileira, torturou e matou é credencial para se apresentar como defensor da liberdade? O silêncio dessas empresas diante dessas perguntas, por outro lado, não deixa de ser uma resposta às mesmas.

Aqui no Rio Grande do Sul, temos também um triste capítulo dessa história que ainda está para ser devidamente contada. O jornal Zero Hora ocupou o lugar da Última Hora, fechado pelos militares por apoiar Jango. O batismo de nascimento deste jornal foi marcado por atos de violência contra o Estado Democrático de Direito. Três dias depois da publicação do Ato Institucional n° 5 (13 de dezembro de 1968), ZH publicou matéria sobre o assunto afirmando que “o governo federal vem recebendo a solidariedade e o apoio dos diversos setores da vida nacional”. No dia 1° de setembro de 1969, o jornal publica um editorial intitulado “A preservação dos ideais”, exaltando a “autoridade e a irreversibilidade da Revolução”. A última frase editorial fala por si: “Os interesses nacionais devem ser preservados a qualquer preço e acima de tudo”.

Interesses nacionais ou interesses empresariais?
A expansão da empresa de mídia gaúcha se consolidou em 1970, com a criação da RBS. A partir das boas relações estabelecidas com os governos da ditadura militar e da ação articulada com a Rede Globo, a RBS foi conseguindo novas concessões e diversificando seus negócios. Hoje, quem falar em resgatar essa história será acusado de ser “inimigo da liberdade de imprensa”.

Mas não foi apenas a Zero Hora. O Correio do Povo teve ativa participação no Golpe de 1964 que derrubou o governo de João Goulart. O artigo “1964: o Rio Grande do Sul no olho do furacão”, de Enrique Serra Padrós e Rafael Fantinel Lamiera, descreve o comportamento da publicação então pertencente ao grupo Caldas Junior:

“O jornal Correio do povo assumiu uma crítica violenta, acusando Goulart de agitador, violador da democracia, demagogo e de querer instalar um ‘neoperonocastrismo’ no Brasil (seja lá o que isso quisesse dizer).”

Adotava uma linha de questionamento como a que vinha sendo utilizada por Lacerda e a imprensa do centro do país nos ataques tanto ao governo federal quanto ao próprio Brizola. Tratava-se de uma referência explícita aos planos de instalar no Brasil um regime comunista aos moldes “caudilhescos” e populistas dos pampas; em decorrência, uma mistura de Perón e Fidel Castro, dois dos maiores pesadelos das direitas latino-americanas” (p.41, in A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul)”.

Repetindo posição assumida por outros jornais de grande circulação do país, o Correio do Povo publicou às vésperas do golpe de 1964, um editorial clamando “para que as Forças Armadas cumprissem sua histórica missão de serem sustentáculos da lei e da ordem, sob o espírito de sua vocação histórica, o cristianismo e a democratismo-liberal. O final do desse editorial afirma:

“O caminho a seguir nesta hora de decisão não comporta dúvidas ou vacilações: é o do saneamento ético das cúpulas políticas e administrativas e da anulação dos inimigos da pátria e da democracia, que se encastelaram funestamente na própria cidadela do poder”.

A participação da mídia brasileira é um episódio que ainda está para ser plenamente contado. Há muitas lacunas e zonas cinzentas nesta história. E isso não parece ocorrer por acaso. Muitos dos compromissos que levaram uma parte importante da imprensa brasileira a se aliar com setores golpistas e autoritários permanecem presentes e se manifestam em outros debates da vida nacional. Enquanto a sociedade não decidir que abrir essa caixa preta é uma condição para o avanço da democracia no país, essas empresas, no Brasil, na Argentina e em outros países da América Latina seguirão praticando um de seus esportes preferidos: pisotear a memória e apresentar os seus interesses privados como se fossem interesses públicos.

(http://www.sul21.com.br/jornal/marco-weissheimer/o-editorial-de-o-globo-e-a-caixa-preta-da-relacao-da-midia-com-a-ditadura)
(http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6259)

Don Chicho

Curto e grosso? O bicho só pega se a “gordis” mexer com o latifúndio dos Luksic nas terras araucanas. Improvável. Resta saber o poder da histeria dos Edwards…

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