Edson Teles: Os protestos e a Doutrina da Segurança Nacional

Tempo de leitura: 6 min

Ferido com bala de borracha em Fortaleza, em dia de jogo da Copa das Confederações

As manifestações, o discurso da paz e a doutrina de segurança nacional

 por Edson Teles, especial para o Viomundo

Experimentamos nas últimas semanas as maiores manifestações populares dos últimos 20 anos, fato marcante do processo de construção da democracia por levar às ruas uma enorme quantidade de pessoas.

Estes acontecimentos ensejaram as mais variadas tentativas de apropriação ou denegação dos movimentos, os quais, a despeito disto, se alastraram por todo o país, alcançando até mesmo os cantos do interior brasileiro.

Principalmente a partir do momento em que as manifestações ganharam proporções gigantescas a variedade de propostas e denúncias foi enorme, quase tão grande quanto a quantidade de sujeitos políticos presentes nos atos.

Palavras de ordem e demandas distintas como: “vem pra rua vem, contra o aumento”; “enfia os 20 centavos nos SUS”; “contra a PEC 37”; “contra os gastos abusivos com a Copa do Mundo”; “quando ficar doente leve seu filho a um estádio”.

Apesar das várias proposições que podiam ser lidas nos cartazes (um dos principais meios de mensagem durante as manifestações), a questão que mobilizou e ganhou o Brasil, especialmente as grandes capitais e cidades, foi o aumento dos preços das passagens do transporte urbano, especialmente em face da baixa qualidade do serviço oferecido.

As manifestações se iniciaram com os atos convocados pelo Movimento Passe Livre, que já havia feito ações semelhantes em anos anteriores. Nas experiências passadas, tal como nestas últimas, a resposta do Estado foi a repressão policial. E foi após a violenta repressão da Polícia Militar de São Paulo no dia 13 de junho que as grandes concentrações ocorreram.

É significativo que tenha havido, muito devido a grande mídia e por parte de suas análises políticas, a justificativa para a repressão do Estado a partir da violência de ‘vândalos’ e ‘desordeiros’ que, ou queriam desestabilizar os governos, ou não visavam qualquer ação política e simplesmente queriam roubar e prejudicar a vida social.

Contra a violência dos manifestantes adotou-se, além do gás lacrimogêneo, da bomba de efeito moral e das balas de borracha (às vezes, um cassetete ou tiro de arma de fogo), o discurso da pacificação e da confraternização política dentro dos parâmetros da ordem.

Esta cena da violência do Estado autorizada para impôr a paz e a reconciliação entre os brasileiros (os verdadeiros, é claro) já nos é velha conhecida.

Para não nos estendermos à história do Brasil colônia e império, ou da República, podemos nos referir diretamente à experiência das graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante a ditadura militar (1964-1985).

Sob a justificativa de combate ao comunismo e aos subversivos, os militares organizaram junto com setores da elite brasileira um forte aparato repressivo, com base na Doutrina de Segurança Nacional.

Durante os anos de Guerra Fria incrementaram-se a substituição das declarações de estados de exceção por doutrinas de segurança nacionais, tornando-as técnica de governo.

A Doutrina de Segurança Nacional surge nas Forças Armadas a partir dos contatos com os militares norte-americanos, desde as ações da Força Expedicionária Brasileira (FEB), ainda na Segunda Guerra Mundial.

No Brasil, sua elaboração e divulgação em discurso ideológico nacional ficaram sob o mando da Escola Superior de Guerra (ESG), uma das instituições que mais formaram militares para os principais postos de mando na ditadura.

Buscando, além de bloquear qualquer iniciativa política de crítica ao regime, eliminar aqueles que se engajassem em nesta luta. Os criminosos da ditadura prenderam, bateram, torturaram, mataram e desapareceram com os corpos de centenas de opositores.

Quando, em 1979, o Congresso dominado pelo regime militar votou a Lei de Anistia, o Estado interpretou esta Lei como válida para tornar inimputáveis os crimes contra a humanidade praticados pelo Estado.

Alegava-se, à época e durante as décadas seguintes, a tese de que nos anos 60 e 70 dois lados extremos e radicalizados estiveram em confronto, ou seja, os militantes da luta armada de resistência à ditadura e os agentes torturadores dos aparelhos repressivos das Forças Armadas.

Nesta versão da história recente, a violência se justificava como meio de conter a ação ‘terrorista’ dos subversivos e a ocorrência dos ‘poucos’ excessos cometidos pelo Estado teriam como causa a desobediência de alguns agentes de segurança.

Nas manifestações pela Tarifa Zero e pelo cancelamento dos aumentos das passagens, o Estado novamente alegou a necessidade de conter a violência, agora dos ‘vândalos”e ‘desordeiros’, para autorizar a violência indiscriminada contra os manifestantes, imprensa e qualquer pessoa que saia às ruas nos dias e espaços destes palcos políticos.

E quando, estupefata, a sociedade reaje ao ‘abuso” da violência’, os secretários de segurança pública vêm a público reconhecer os excessos e dizer que os casos serão encaminhados para as ouvidorias das polícias.

Cabe notar que a repressão aos movimentos sociais é ação comum do Estado democrático. Pouco mais de um ano atrás, a mesma ‘sociedade estupefata’ falava de Pinheirinho e a invasão de universidades pela PM.

Lembremos que na Lei de Anistia de 1979 e nas leis subsequentes sobre os crimes da ditadura (lei de reconhecimento dos desaparecidos e mortos de 1995; lei de indenização via Comissão de Anistia, de 2002; e, lei de criação da Comissão Nacional da Verdade, de 2011) a palavra recorrente e presente em todas as leis foi “reconciliação”, acompanhada do discurso da pacificação.

Como exemplo, poderíamos citar, para ser breve, o discurso adotado nos papéis da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, que têm como assinatura o lema: “Comissão da Anistia, a comissão da paz!”; ou ainda, o artigo 1o. da Lei de criação da Comissão da Verdade, na qual se lê que a Comissão tem por objetivo “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

E, em reação ao violento dia 13 de junho, não só a assustada elite brasileira, por meio de sua grande mídia, mas os principais representantes políticos, desde a presidência da República, passando por governadores e prefeitos, apelaram para o agressivo discurso da pacificação.

Do ponto de vista de um governo de esquerda perde-se a significativa oportunidade de colocarmos em questão a estrutura repressiva e autoritária do Estado, existente desde sempre em nossa República, fortalecida com a ditadura militar e, por escolha dos principais partidos políticos e das instituições de governo, mantida e reforçada na democracia.

Houve, nas manifestações, a presença de pequenos grupos visando o ataque material a bancos, guaritas da polícia e prédios relacionados ao poder público (tanto do Executivo, quanto do Legislativo e do Judiciário).

O alvo, por vezes, estendia-se ao comércio e à grande imprensa. Não é preciso uma análise profunda para dizer, ainda que possamos questionar os meios, que os alvos indicavam tratar-se de ações políticas e não de “arruaça”.

Contudo, se o pensamento conservador brasileiro tivesse razão em permitir ao Estado o trato destas ações por meio da repressão, isto não desencadearia as cenas que presenciamos e assistimos abundantemente.

Estamos falando da farta utilização das tropas mais especializadas em violência urbana sendo utilizadas para reprimir, impedir e destruir um dos movimentos mais importantes da democracia nascida após a ditadura.

Além de tentar esmagar uma das maiores possibilidades de transformação social e política já experimentadas em nossa democracia, o Estado criou uma zona de anomia, cinzenta, em que não é possível distinguir a lei da sua ausência, na qual o democático e o autoritário tornam-se indistintos.

Trata-se da mais violenta novidade da vida social brasileira: milhares de pessoas se deslocando para o entorno de um estádio de futebol, com algumas sendo espancadas, enquanto outras, mostrando o ingresso na mão, passam correndo para um canto mais ‘pacíficado’ da cidade. Surreal.

A violência originária de determinado contexto político, que no caso da nossa democracia seriam mais diretamente os traumas vividos na ditadura, mantém-se, seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia, seja na repressão orquestrada contra os movimentos sociais.

Tais atos delimitam o lugar de determinada política e criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente – nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões dos sujeitos subtraídos da razão política.

Notável foi a declaração do Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, do partido que teve cerca de 100 militantes mortos e desaparecidos durante a ditadura, em tom de ameaça logo após a violenta repressão da PM de São Paulo, ao dizer que o “governo não vai tolerar que nenhum tipo de movimento tente impedir a realização destes eventos”.

Opa!?! Quem é o violento? Qual discurso é o agressivo? O da pacificação das bombas, balas de borracha e prisões ou o da ação política de transformação via a tomada das ruas e espaços públicos?

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Comentários

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De Paula

Não deixar de ler e esmiuçar o artigo deste blog em DENUNCIAS 28/06/2013 – “Facebook, Google e Youtube tem lado. O do Departamento de Estado” Este rebú todo que está formado por conta do flagrante no Tio San espionando é fichinha em relação ao que está alí, e deve ser objeto de uma profunda investigação para não virarmos um Egito.

De Paula

Doutrina de Segurança Nacional não tem nada a ver com reação às provocações e depredações. Pede-se, não uma doutrina nos moldes da ditadura, mas ações preventivas, previstas em nossa Constituição, aplicadas aos que se conectam a agentes do exterior e atuam nas redes sociais com propósitos golpistas.

Em SP, ato contra monopólio tem queima de DARF – Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Edson Teles: Os protestos e a Doutrina da Segurança Nacional […]

Edgar Rocha

O fato é que, seja de direita ou de esquerda, nenhum lado das representações políticas está disposto a abrir mão do aparato violento e criminoso dos meios de repressão para a garantia de seus anseios, por mais bem intencionados que se demonstrem (e, por razão de princípios, tenho certeza que não o sejam de fato). Nossa ação política desconhece outros meios que não sejam o de apelar às vias de fato antes de iniciar um processo de negociação propriamente dito. Impera o “manda quem pode”. Parece muito o sistema medieval: é no front que se avalia a força do inimigo para, assim, decidir se é necessário dialogar ou não. Se ainda lutamos para garantir a existência de um estado de direito mínimo, muito mais distantes nos encontramos de sua introjeção como princípio ou sua aceitação como parte da ordem natural do Estado democrático. Tenho a impressão que chegamos a vislumbrar isto em alguns momentos, em especial nos últimos anos de uma ditadura combalida e desinteressada em administrar o bagaço que por anos foi sugado. Apesar disto, a esperança de se construir uma democracia forte e cidadã era respirada por muitos. Mas, certos recalques não se desfazem da noite pro dia. E, com o rápido processo de descaracterização dos meios de participação cidadã, com o ostracismo gerado pela acomodação política e a sedimentação dos novos meios de controle ideológico, manipulação de massas, destruição da autonomia de pensamento e dissolução do espaço público e comunitário, o que restou aos descontentes, isolados pelos novos paradigmas sociais e o reforço de alguns já bem antigos, foi o espasmo. Não considero, sinceramente os movimentos recentes como uma espécie de marco fundador da democracia, senão um sintoma capaz de delinear um prognóstico pra lá de sombrio. Obviamente, ainda sustento a esperança no ser humano, capaz de ignorar solenemente todos os mecanismos de coação moral e intimidação quando o assunto é dor. Uma dor que nos toma, nos incomoda num crescente insuportável nos leva, por si só, a prescindir de justificativas para uma ação deliberada. É como um dente que dói de madrugada. A hora não passa e, mesmo o mais cagão dos mortais é capaz de pegar um pé de cabra e meter na própria boca a fim de extirpar o que lhe aflige. Passada a dor, só assim consegue-se pensar com clareza e distinguir o que é certo ou errado para planejar o futuro. Enfim, estamos todos em profunda dor. Cada qual com sua dor, e aqueles que a sentem, embora lhes seja em lugares distintos, sabem de antemão que o mal que a fomenta é o mesmo pra todos. Ainda não o delineamos, de fato. Mas, pelo jeito, estamos na iminência de conseguirmos. E só depois disto, tenho esperanças, conseguiremos adquirir a consciência de que, caso queiramos de fato nos constituir enquanto nação, devemos estender as premissas do estado de direito a todos indistintamente, buscando de uma vez por todas evitar que nosso histórico mal retorne e continuemos batendo primeiro e perguntando depois, submetidos à força maior da truculência e do poder de fogo de nossos opositores. Isto quase sempre acaba em pizza aqui no Brasil, por meio do malfadado mecanismo de cooptação. E assim, cada vez mais crápulas integram este imenso cangaço que oprime a maioria ainda resignada. Mas, um dente dói demais. Uma hora, ninguém aguenta.

Véio Zuza

Não sei de onde o sr. está falando e creio é sincero. Mas em P. Alegre, S.Paulo e outros lugares, grupos de anarquistas, marginais, fascistas, e outros, unidos, atacaram tudo, não apenas bancos e grandes empresas – muitas os estabelecimentos, simples franquias. Atacaram, sim, pessoas e prédios particulares, barzinhos, lojinhas, etc. Ao ponto de em alguns lugares pessoas simples partirem para a auto-defesa com facões e pedaços de pau contra a horda.
Não, isso não é democracia e nem se justifica. Isso é violência. E pau que bate em Chico, bate em Francisco.
Leña y punto!

    Jovem ancião

    Se diz velho e até hoje não aprendeu a diferenciar os diversos matizes políticos presentes na sociedade brasileira…
    Se junta às viúvas e pede um golpe militar de uma vez por todas, SEU BABACA!

    Paulo

    Moro em Porto Alegre e isso que disse o Véio Zuza foi real. Não era ataque direcionado e político. Queria ver você dizer na cara das pessoas que tiveram seus automóveis destruídos simplesmente por estarem na rua (e o seguro não cobre ato de vandalismo), pequenos lojistas que tiveram seus estabelecimentos invadidos e saqueados (creio que esses você não considere elite burguesa), que são diversos matizes políticos…Fala sério, é vandalismo. Só para complementar. Lula e Dilma mantém a legislação de Segurança Nacional. Creio que a visibilidade da questão de espionagem pelos EUA, consiga mostrar uma das razões pelas quais tais estruturas se mantém. Não seja inocente porquê as grandes potências não o são.

    Julio Silveira

    Esse é o dilema que os cidadãos sempre terão de enfrentar.
    Saber que sempre terão oportunistas para se infiltrar, cada um podendo ter um interesse especifico, que pode diferir do interesse coletivo.
    Em Porto Alegre, eu vivo nessa cidade, em diversas reportagens, passado o primeiro momento da critica politica midiática corporativa, generalizando como baderneiros todos os que participavam do movimento passe livre, percebeu-se (e com isso passaram a fazer jornalismo) que a parte baderneira, que quebrava e saqueava, não passavam de criminosos, grande parte com folha corrida na policia. E não por crime politico, mas fichados por roubo, furto e até estupro. Ficar impassível diante as necessidades do país, por se sentir refém dessa marginalia, que cresce exatamente na exata proporção da omissão da cidadania, é justamente aceitar inserir no preparo do país (como a inserção do fermento numa receita de bolo) ingredientes que só farão expandir, mais e mais, os motivos de nossa angustia cívica. Uma bola de neve descendo os alpes, com probabilidade de virar avalanche.

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