Sob a sombra da pandemia, “leis retrógradas na calada da noite”

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Bolsonaro aparentemente saúda a grama no dia de sua posse. Reprodução

Pandemia e suas consequências – a luta é de classes?

Por Boris Vargaftig*

O confinamento, embora acertado do ponto de vista médico-sanitário, é forte obstáculo às lutas populares.

A indispensável quarentena é emergencial, não divide águas entre os defensores da civilização e os agentes da barbárie, como escreve poeticamente Valério Arcary (Brasil de Fato , 17/04/20).

Por razões sociais evidentes, ficar em casa atinge mais gravemente os trabalhadores: perdas salariais, dificuldades ligadas ao desconforto e escassez de espaços para populações extremamente prejudicadas do ponto de vista urbanístico…

Enquanto os governantes brasileiros discutem e armam armadilhas verbais, a pandemia se afirma.

A grande maioria dos países, a começar pela China, implanta medidas de distanciamento físico, devidas ao agravamento da pandemia.

Portugal tem hoje um governo socialista – com suas conhecidas limitações e qualidades nos dias de hoje – mantém um exemplar confinamento de 85%.

A França tem mais de 17.000 mortos, 688 marinheiros do porta-aviões Charles de Gaulle apresentaram testes positivos para Covid-19, dentre os quais 31 pacientes estão em UTI.

Os dados brasileiros são escandalosos; lembremo-nos do famigerado teto de despesas, que explica parcialmente as dificuldades presentes e o viés para a medicina privada, portanto para os mais abastados.

As medidas tomadas têm um custo que se prolongará por anos.

Assim, a revista Scientific American (edição virtual US, 15/4/20), nota que nas últimas três semanas, o número de desempregados nos Estados Unidos subiu para 22 milhões.

Mais de 10% dos lares afro-americanos são formados por um só parente feminino com uma ou mais crianças, enfrentando agora a insegurança dos empregos e a falta de opções para o cuidado dos filhos sem escola.

O desemprego também afeta fortemente o índice de mortalidade. Dados alarmantes sobre incidência de infarto do miocárdio e depressão em desempregados são comparáveis aos de fumantes moderados ou com obesidade recente.

Assim, nos Estados Unidos o risco de cardiopatia, aumenta de 15 a 30% em homens desempregados por mais de 90 dias.

No Brasil, o fechamento das escolas afeta fortemente mais de 1.3 milhões de escolares desprovidos de domicílio, para quem sua presença constituiria um apoio indispensável.

Destaco que no Brasil o número de pessoas consideradas pobres, hoje, é de 38.1 milhões!

A demissão de Mandetta, político conservador, mas que dentro de seus limites de classe, aplicava uma política sanitária correta, é a prova do prosseguimento da política de ocupação dos espaços pela extrema-direita.

As posições dos governadores Caiado, Witzel e Dória refletem uma divisão das classes dominantes, mas não é de princípios, é divisão de espólio entre carreiristas.

Nos dias 18 e 19 de abril, a extrema-direita, que não acredita em doenças, saiu à rua com seu irracionalismo habitual, mas cada vez mais agressiva, inclusive contra governadores em quem votou com entusiasmo nas últimas eleições.

A política conservadora do governo federal muda de aparência, o populismo e o golpismo são exacerbados e as agressões se multiplicam contra seus próprios aliados e eleitores passados: pressão para a volta ao trabalho, e, agora, substituição do Ministro da Saúde por um bolsonarista desconhecido do Sistema de Saúde e da população.

Portanto, é consenso: o contágio, em especial quando a epidemia não tem testes, medicação e nem vacina, só pode ser minorado pelo confinamento.

Mais prosaicamente, se a defesa do confinamento é compartilhada pela esquerda, não se trata de posição de princípio, mas de situação real, de bom senso e de compreensão intelectual: pouco importa se o bombeiro é de esquerda ou de direita, contanto que apague o incêndio.

A diferença fundamental aparece no projeto que segue o incêndio: vai-se construir uma escola e um hospital, ou alternativamente uma prisão ou um empreendimento imobiliário para a classe média?

É o tema de luta após guerras devastadoras: qual o projeto de sociedade a ser instituído e baseado em que forças sociais?

Não se trata, contrariamente ao que alguns imaginam, de uma guerra teórica, com consequências estéticas ou no máximo, de comodidades.

Vale lembrar que o Estado é uma estrutura de classe e, no caso, é burguês, capitalista.

Isto é flagrante, basta ver a pressão contra os salários e direitos adquiridos em lutas anteriores, o aumento da duração de tempo de trabalho etc.

Esta crise dita sanitária terá sido enfrentada com maior ou menor perícia, mas com vistas à preservação e fortalecimento da economia e do regime capitalista, pois está sendo utilizada para, na calada da noite, promulgarem leis retrógradas.

Em outras circunstâncias como na França em 1938-39 na Alemanha de Bismarck com as leis anti-socialistas, a crise foi pretexto para o mesmo tipo de “solução”, aumento da carga nos trabalhadores e preservação da dos capitalistas.

Como hoje as circunstâncias impedem ações mais enérgicas do movimento social, o momento é de reflexão militante: o que provocou este recuo da esquerda; Marx acreditava na iminência da vitória do socialismo na Europa. Mais de 150 anos se passaram.

A revolução russa mostrou que o inimigo não provém somente do exterior, quando quase trinta países intervieram para combater o primeiro estado dito socialista.

O inimigo de dentro provém do renascimento da classe burguesa aliada à burocracia herdada do tzarismo, que passou a dominar e ao final do século que havia assistido à derrocada do capitalismo, promoveu seu retorno.

Uma grande diferença operacional entre a revolução russa, temporariamente vitoriosa e, por exemplo, as derrotadas revoluções alemãs de 1919, 1921 e 1923, consistiu na existência na primeira de uma direção forte e decidida.

A história pode, em circunstâncias especiais, depender fortemente de uma ou duas personalidades, no caso, de Lenin e Trotski.

Outra diferença essencial foi a existência de um programa de transição, a cujo respeito tratarei em outra ocasião.

*Boris Vargaftig é médico farmacologista, professor titular aposentado da USP


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Zé Maria

https://tribunadaimprensalivre.com/wp-content/uploads/2020/04/1-190.jpg

Governo do Estado do RS suspende
contrato de testes de coronavírus
com “Agropecuária de Pelotas/RS”
O contrato seria de R$ 8 milhões
para processar 250 testes por dia,
por R$ 175,00 cada teste.

O governador Eduardo Leite (PSDB/RS) anunciou,
em coletiva por videoconferência nesta sexta-feira,
que a Secretaria Estadual de Saúde (SES) suspendeu
o contrato para testes de coronavírus junto a uma
Agropecuária de Pelotas.

A decisão se deu um dia após o Ministério Público
do Estado ingressar (MPE-RS)* com uma ação na
Justiça para o encerramento do contrato firmado
no dia 6 de abril com a M&S Produtos Agropecuários
Ltda – a primeira empresa a ser contratada fora da
estrutura pública, para a realização de testes à Covid-19.

A contratação ocorreu sem licitação, baseada na lei
13.979/2020 que dispõe da aquisição de bens, serviços
e consumos destinados ao enfrentamento do coronavírus.

*(https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/mp-ingressa-com-a%C3%A7%C3%A3o-em-caso-de-testes-de-coronav%C3%ADrus-por-agropecu%C3%A1ria-de-pelotas-1.413337)

https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/governo-do-estado-suspende-contrato-de-testes-de-coronav%C3%ADrus-com-agropecu%C3%A1ria-de-pelotas-1.413665

https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2020/04/735063-leite-suspende-contrato-com-agropecuaria-que-faria-exames-de-covid-19.html

https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/coronavirus/2020/04/governo-do-estado-suspende-contrato-polemico-com-agropecuaria-para-testes-de-covid-19/

https://tribunadaimprensalivre.com/opiniao-agropecuaria-contratada-por-governador-para-testes-do-covid-19-nao-tinha-habilitacao-de-laboratorio/

Zé Maria

“A Ciência é a Inteligência do Mundo; A Arte, o seu Coração”

“O eterno revolucionário é um fermento que irrita constantemente os cérebros
e nervos da Humanidade; ou é um gênio que, destruindo as verdades criadas
antes dele, cria novas; ou um homem modesto, calmamente confiante
em seu poder, queimando com um fogo silencioso, às vezes quase invisível,
iluminando os caminhos para o futuro”

Maksim Gorki (1868-1936), Estivador, Pedreiro, Marceneiro, Corista,
Ferroviário, Sapateiro, Fruteiro, Jardineiro, Tintureiro, Secretário,
Pintor de Ícones, Padeiro, Editor, Contista, Poeta, Romancista
e Dramaturgo Russo, autor de “A Mãe” e “Pequenos Burgueses”.
Comissário Popular para Desenvolvimento das Artes e das Ciências.

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