Fim do Departamento de HIV/aids do Ministério da Saúde: o que se sabe

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“Mais um capítulo de um desmonte generalizado”. Foto: Divulgação/SES-RS

O que se sabe até agora sobre o fim do Departamento de HIV/aids do Ministério da Saúde

por Gabriel Galli*, no Sul21

A mudança no nome e estrutura do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, anunciada no dia 17 de maio de 2019, é mais do que apenas uma reforma administrativa.

É um recado ao povo brasileiro de que as políticas públicas para o tema saem dos holofotes e passam a ser secundarizadas, ação motivada por questões ideológicas da Presidência da República e executadas por gestores de alto escalão do Ministério da Saúde, somadas à displicência com uma doença que atinge cada vez os mais pobres ao ritmo de 40 mil novos casos por ano, de acordo com dados do próprio governo.

Os movimentos sociais, corretamente, entenderam o episódio como uma extinção do órgão. Isso não significa que houve uma desestruturação completa, mas sim um rebaixamento, ao torná-lo uma coordenadoria.

Neste sentido, houve quem dissesse que os militantes estariam exagerando e que o assunto não é de tanta importância.

Entendo que não podemos sucumbir a essa lógica. Olhando o cenário mais amplo, este é apenas mais um capítulo de um desmonte generalizado. Por isso, listo o que se sabe até agora sobre o tema:

1) Os movimentos sociais não foram convidados a dialogar sobre a mudança

A mudança da estrutura pegou de surpresa quem trabalha com o tema, demonstrando que a política até agora vitoriosa de articulações com os movimentos sociais está em risco.

A nota assinada por Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids), Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), Fórum das ONG/Aids do Estado de São Paulo (FOAESP), Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS no RS (GAPA/RS), Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil), as instituições relatam que há pouco mais de um mês aconteceram reuniões da Comissão Nacional de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais (CNAIDS) e da Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais (CAMS) e o assunto não foi tratado.

2) A decisão foi tomada por diretores de alto escalão

Conversei com técnicos do Ministério da Saúde, que relataram que, apesar de haver uma discussão não necessariamente nova sobre a mudança de estrutura e nome, a decisão foi um movimento repentino do alto escalão da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), onde fica o departamento, o que fez com que o departamento ficasse em um limbo de informação sobre como as coisas passariam a funcionar.

Há uma pressão do Ministério da Economia para que se reduza a quantidade de cargos nos ministérios e isso foi levado em consideração.

3) Para alguns, foi uma forma de proteger a pauta perante os fanáticos

Dentro do departamento, a motivação inicial da proposta de mudança de nome seria tirar o foco em “HIV/aids” do setor e, assim, não chamar tanta atenção dos políticos mais fanáticos do governo Bolsonaro, quase como se estivessem escondendo o tema para que não seja atacado.

Técnicos relataram, entretanto, que houve preferência, na hora de escolher quem ficaria nas coordenações, por profissionais que se posicionem menos referente às pautas consideradas “de esquerda”, como o aborto de fetos anencéfalos e campanhas voltadas ao público LGBTI.

4) A mudança do nome é apenas mais um episódio de um desmonte generalizado

Além do rebaixamento de departamento, uma série de desmontes e mudanças negativas se acumulam. Em 2016, foi aprovada a PEC 95, que congela os gastos públicos por 20 anos.

É real o risco de que importantes políticas públicas, como a distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais e profilaxias (PEP e PREP), além de insumos de prevenção, como preservativos e gel lubrificante, sejam racionadas nos próximos anos.

Fora isso, não podemos esquecer que o presidente Jair Bolsonaro já declarou publicamente, enquanto era deputado federal, que as pessoas vivendo com HIV/aids não devem ser alvo de políticas públicas do governo.

Há relatos recorrentes de pessoas soropositivas idosas nestas condições que estão tendo seus direitos de aposentadorias retirados em perícias médicas do INSS.

O Ministério da Saúde tem mudado as campanhas de prevenção ao HIV/aids e outras ISTs deixando de dar atenção a públicos que historicamente são atingidos pela doença, como as populações de homens gays, travestis e transexuais, população negra, trabalhadoras sexuais e jovens, com o próprio ministro afirmando publicamente que duvida da efetividade das campanhas e que elas não podem ofender famílias.

No início do ano, o governo exonerou a médica sanitarista Adele Benzaken da coordenação do departamento, uma das principais referências nacionais no combate à AIDS.

Ao mesmo tempo, há movimentos conservadores sendo estimulados por diversos ministérios que dificultam o trabalho de prevenção nas escolas, com constante proselitismo contra o respeito à diversidade sexual e de gênero.

5) Mudanças na estrutura envolvem fim do setor de Comunicação do departamento

Um dos trunfos do departamento é a rara configuração que garanta um setor de comunicação próprio, algo que não é o mais comum no Ministério da Saúde.

De acordo com nota da ABIA, isso não existe mais. Ele era responsável, entre outras coisas, por desenvolver campanhas de prevenção, reconhecidas internacionalmente como um pilar importante na prevenção, somado ao trabalho de base dos movimentos sociais e distribuição de medicamentos.

6) Há risco de impacto nas políticas locais de HIV/aids

Para os movimentos sociais, a ação do Ministério da Saúde pode impactar os departamentos de HIV/aids nos estados ao dar o exemplo de que seria possível eliminar ou juntar os departamentos estaduais e municipais com outros temas.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, não são novas as reclamações de grande dificuldade no estabelecimento de contato para articular ações de prevenção, realizações de editais para projetos e fortalecimento de instâncias de controle social.

O doutor em Saúde Coletiva Adriano Henrique Caetano Costa relata em texto no El País que desde 2016 diversos estados brasileiros sofrem com crises de desabastecimento de antirretrovirais e as discussões sobre prevenção se tornam cada vez mais ausentes.

7) Há movimentações na Câmara dos Deputados para convocar o ministro a dar explicações

A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS) protocolou uma convocação ao Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para que dê explicações aos deputados sobre o decreto Nº 9.795 e um requerimento de audiência pública para tratar da situação da epidemia de HIV/aids no Brasil.

Os dois pedidos, feitos na Comissão de Seguridade Social e Família, foram pautados e devem ser votados na próxima semana. O deputado Chico d’Ângelo (PDT/RJ) também realizou pedido de audiência com o mesmo tema.

Finalizo com uma constatação triste, porém que deve nos motivar a encontrar novas formas de organização e resposta: o desmonte do Sistema Único de Saúde e das políticas públicas para as populações mais vulneráveis acontece em um ritmo muito mais rápido do que estamos acostumados.

Lutamos diariamente de forma incansável e no final do dia, exaustos, percebemos que não demos conta de metade dos ataques que o grupo fanático detentor do poder de uma máquina pública gigantesca como a brasileira nos impõem.

É o momento de nos articularmos com outros movimentos, como o dos estudantes, dos trabalhadores, do povo negro e contra a Reforma da Previdência para resistir. Se não lutarmos contra o projeto de sociedade que querem implantar à força no Brasil, continuaremos sendo eliminados aos poucos de forma cruel e constante.

Gabriel Galli é jornalista, mestre em Comunicação e ativista por direitos humanos . É fundador do grupo Freeda – Espaços de Diversidade, foi diretor do grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade e trabalha como assessor na Câmara dos Deputados.


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Zé Maria

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Desmonte dos Conselhos Participativos de Direitos Humanos

3 DE JUNHO DE 2019 ÀS 17H15
Ministério Público Federal (MPF)
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC)

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que integra
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[…]
Em 11 de abril, o governo federal publicou o Decreto Presidencial 9.759/2019,
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[…]
Conselhos, comissões e comitês são mecanismos democráticos de consulta
e deliberação social e atuam no acompanhamento e na avaliação do desenvolvimento de políticas públicas em áreas como educação, saúde, trabalho,
assistência social, cultura e promoção da igualdade.
Algumas dessas instâncias foram instituídas há décadas, como é o caso do
Conanda – previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90)
como o principal órgão articulador do sistema de garantia de direitos dessa
população – ou do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência
(Conade), criado pelo Decreto 3.076/1999 para tomar parte do processo de
definição, planejamento e avaliação das políticas destinadas a essa população.

Assessoria de Comunicação e Informação
PFDC/MPF

http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pfdc-pede-a-ministra-damares-informacoes-sobre-manutencao-de-conselhos-participativos-de-direitos-humanos

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