Estudo de 4 cientistas brasileiros mostra como a covid se espalhou: “Se o governo tivesse cumprido seu dever, Brasil teria evitado essa catástrofe”, afirma Nicolelis; vídeo

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Por Conceição Lemes

Há quase 40 anos o neurocientista Miguel Nicolelis divide o seu tempo entre o Brasil e Estados Unidos, onde é professor na Universidade de Duke.

No final de fevereiro de 2020, ele estava em São Paulo, visitando a mãe, quando foi surpreendido com a notícia da chegada ao país do novo coronavírus — o SARS-CoV-2– via viajantes infectados vindos do exterior.

Os EUA logo fecharam os aeroportos para voos internacionais procedentes de países onde havia transmissão do vírus, inclusive os do Brasil.

Nicolelis teve, então, que ficar aqui.

E, aí, mergulhou nos estudos da covid-19, a doença causada pelo SARS-CoV-2.

Quem acompanha as descobertas de Nicolelis nesses 15 meses de pandemia talvez se lembre que, em abril de 2020, ele alertou sobre o espalhamento da covid-19 através das rodovias e a necessidade de bloqueios rodoviários.

Registrou também que a cidade de São Paulo, devido à proximidade com o Aeroporto Internacional de Guarulhos (o maior do País) tinha se convertido na maior disseminadora da covid-19.

Depois, em junho de 2020, advertiu sobre o fenômeno preocupante ao qual deu o nome “efeito bumerangue”.

Na época, Nicolelis coordenava o Comitê Científico do Consórcio dos Governadores do Nordeste.

No Boletim 9 do comitê, ele explicou:

Depois  de chegar ao Brasil pelos aeroportos internacionais, o SARS-CoV-2 começou a se multiplicar pelas capitais dos estados onde estão localizados esses aeroportos.

Depois de infectar um grande número de residentes dessas capitais, como não houve um bloqueio rodoviário eficaz e o espaço aéreo brasileiro permaneceu aberto com voos nacionais e internacionais em plena operação, pessoas infectadas começaram a levar a covid-19 para o interior do Brasil. 

Uma vez que esse processo de interiorização começou a gerar casos graves de COVID-19, pacientes em estado crítico tiveram que ser transferidos para as capitais dos estados (ou, em alguns casos, cidades de grande porte do interior) em busca de leitos de UTI que simplesmente não existem na maior parte do interior brasileiro.

A esse fluxo recíproco entre capital e interior em cada estado, formado pelo deslocamento de pessoas infectadas da capital para o interior, seguido do retorno de pacientes graves do interior para a capital, deu-se o nome de “efeito bumerangue” 

Detectado no Nordeste no final de junho, esse efeito bumerangue ocorreu em todo o Brasil, materializando-se independentemente da via de transporte de pacientes, fosse ela rodoviária (na maior parte do país), ou pelos grandes rios da região amazônica.

Pois é exatamente disso que trata o estudo publicado nesta segunda-feira, 21 de junho de 2021, na edição on-line da revista britânica ‘Scientific Reports’ por este grupo de cientistas brasileiros:

Miguel A.L. Nicolelis, Departamento de Neurobiologia, Duke University Medical Center, Durham, NC, EUA, e Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, Natal, Brasil

Rafael L. G. Raimundo, Departamento de Engenharia e Ambiente do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental (PPGEMA), Centro de Ciência Aplicada e Educação, Universidade Federal da Paraíba – Campus IV, Rio Tinto, Paraíba, Brasil.

Pedro S. Peixoto, Departamento de Matemática Aplicada, Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Cecilia S. Andreazzi, Laboratório de Biologia e Parasitologia da Reserva de Mamíferos Silvestres, IOC, Fundação Oswaldor Cuz, Rio de Janeiro, Brasil.

 A íntegra do trabalho publicado na Scientific Reports está aqui.   

OS CAMINHOS PELOS QUAIS A COVID-19 SE ESPALHOU PELO BRASIL

O trabalho desses cientistas brasileiros revela a influência de três fatores principais na dinâmica de espalhamento geográfico do SARS-COV-2 no Brasil durante a primeira onda da pandemia, em 2020.

Modelos matemáticos usados no estudo revelaram que, durante as primeiras semanas de março de 2020, a cidade de São Paulo, devido à sua proximidade tanto com o maior aeroporto internacional como com o maior entroncamento rodoviário do Brasil, foi responsável por mais de 85% do espalhamento de casos de covid-19 pelo país. Esta marca fez de São Paulo a maior cidade disseminadora de SARS- COV-2 do Brasil.

Mapas do Brasil foram utilizados para representar as rotas das principais rodovias federais longitudinais (A-D), transversais (E-H), diagonais (I-L), radiais (M-P), e conectoras (Q-T), e também a evolução da distribuição geográfica dos casos de covid- 19 em três datas (1º de abril, 1º de junho, e 1º de agosto), e a distribuição do número de óbitos por covid-19 em 1º de agosto (D). Os números de algumas dessas rodovias espalhadoras estão destacados em vermelho. Embora as distribuições de número de casos e de mortes por covid-19  sejam correlacionadas, as discrepâncias geográficas entre as duas distribuições podem ser vistas ao compará-las em 1º de agosto (C e D). O código de cores (parte inferior da figura) classifica as microrregiões brasileiras (cada uma contendo vários municípios) de acordo com seus números de casos e óbitos por covid-19.

Levando-se em conta outras 16 cidades que mais espalharam casos no período, os autores foram capazes de explicar até 99% de todos os casos de covid-19 durante os três primeiros meses da pandemia em 2020.

A maioria deste espalhamento de casos se deu por pessoas viajando pela malha rodoviária e aeroviária do país, uma vez que nenhum tipo de restrição sanitária foi imposto nas estradas e no espaço aéreo pelas autoridades federais e estaduais em boa parte do mês de março de 2020.

Por exemplo, quando o fluxo de viajantes pelas estradas foi analisado, na fase inicial da pandemia, 26 rodovias federais eram responsáveis por aproximadamente 30% do espalhamento dos casos de covid-19 por todo Brasil.

Uma vez que a transmissão comunitária da covid-19 se estabeleceu nas 16 maiores cidades super espalhadoras do Brasil, os casos de SARS-COV-2 começaram a se espalhar pelo interior do país, principalmente através das rodovias federais e estaduais.

Contribuição individual das 17 capitais estaduais responsáveis por 98% da dispersão dos casos de covid-19 para os 5.570 municípios brasileiros, entre 1º de março e 11 de junho. São Paulo contribuiu com o espalhamento de mais de 80% dos casos durante as primeiras semanas de março. Por todo o período até 11 de junho, a contribuição de São Paulo nunca ficou abaixo de 30%. Por esta razão, a cidade foi considerada como a grande cidade disseminadora de covid-19. Note também a grande contribuição de Rio de Janeiro e Brasília, e as cinco capitais do Nordeste: Fortaleza, Recife, Salvador, São Luís e João Pessoa. Manaus e Belém foram as grandes dispersoras na região Norte (Amazônica); Porto Alegre e Curitiba, as mais importantes na região Sul. 

À medida que os casos começaram a crescer exponencialmente no interior, pacientes em estado grave que residiam nessas áreas começaram a ser transferidos para as capitais dos estados em busca de leitos de UTI ou mesmo de enfermaria.

Este fluxo bidirecional de pessoas gerou o que os autores chamaram de “efeito bumerangue”, contribuindo de forma decisiva para um viés na distribuição geográfica de mortes por covid-19 no país.

Como resultado deste efeito, a distribuição espacial de mortes por covid-19 por todo território brasileiro começou a se sobrepor à distribuição geográfica dos leitos de UTI, concentrados de forma desigual nas capitais.

“A nossa análise mostrou claramente que, se um lockdown nacional e bloqueios sanitários nas rodovias ao redor das cidades super espalhadoras brasileiras, particularmente na cidade de São Paulo, tivessem sido implementados, o impacto da covid-19 durante a primeira onda da pandemia teria sido significativamente menor”, afirma Miguel Nicolelis.

” Se essas mesmas medidas tivessem sido aplicadas em janeiro de 2021, também teriam diminuído o número de casos e mortes durante a segunda e mais devastadora onda da pandemia, ocorrida um ano depois, nos meses de março e abril de 2021″, prossegue.

“De junho de 2020 a junho de 2021, o número de óbitos por covid-19 no Brasil foi de 50 para 500 mil. Um aumento de 10 vezes em 12 meses”, faz as contas do crime contra a saúde pública brasileira.

“Este dado por si só ilustra como o governo federal brasileiro abdicou de forma explícita e crassa de seu dever de proteger o povo brasileiro da maior catástrofe humanitária da sua história”, afirma Nicolelis.

No Brasil, a vasta maioria dos hospitais terciários, e por conseguinte, a maior fração dos leitos de UTI, localizam-se nas grandes cidades que servem como capitais dos estados, nas áreas metropolitanas destas capitais e num pequeno grupo de cidades de médio porte do interior.

Como resultado do “efeito bumerangue” ter ocorrido por todo o país, o Brasil experimentou a maior taxa de admissão hospitalar da sua história, fato que gerou picos recordes de letalidade em cada uma das capitais com grande concentração de leitos de UTI.

Este fluxo do “efeito bumerangue” não se deu apenas por rodovias e estradas. Por exemplo, na região Amazônica, pacientes gravemente enfermos residentes em pequenas comunidades ribeirinhas foram transportados por embarcações de toda sorte através dos grandes rios, e também por pequenos aviões, para as cidades de Manaus e Belém do Pará.

Quantificação do “efeito bumerangue” brasileiro. (A) Representação de todos os “bumerangues” que ocorreram ao redor das principais capitais estaduais brasileiras (nomes indicados na figura) e cidades de tamanho mediano em todo país. Neste mapa, os arcos representam o fluxo de pessoas do interior em direção à capital. As cores representam o número de cidades do interior que encaminharam pacientes graves para serem internados em hospitais da capital ou cidades de porte médio. Vermelho indica os maiores números de localidades, seguidos por laranja e amarelo, enquanto o menor número de localidades está representado em azul claro. A maior parte do fluxo de pessoas representado neste gráfico aconteceu pelas rodovias. Os arcos vermelhos provavelmente representam o fluxo de longa distância por aviões. Na Amazônia, a maior parte do fluxo em direção a Manaus aconteceu por barcos ao longo do rio Amazonas e seus afluentes. São Paulo novamente aparece como a cidade com o maior efeito bumerangue, seguida por Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza Que Teresina. (B) Dados de letalidade e hospitalização, divididos por capital e interior (para letalidade), e residentes e não-residentes na capital (hospitalização), para uma amostra de capitais estaduais em todas as cinco regiões brasileiras. O sombreado amarelo nos gráficos de letalidade representa períodos em que mais mortes ocorreram no interior, em relação a capital. Nos gráficos de hospitalização, o sombreado amarelo retrata períodos de aumento de internação de pessoas residentes no interior no sistema hospitalar da capital. O fluxo geral de pessoas da capital para o interior e de volta para a capital caracterizou o efeito bumerangue, tendo como alvo o sistema hospitalar da capital. O efeito bumerangue foi geral em todo país, ocorrendo em todos os estados brasileiros.

A análise do fluxo geográfico revelou que a cidade de São Paulo foi a que mais recebeu pacientes com covid-19 de outras cidades brasileiras: um total de 464.

Seguiram-se Belo Horizonte (351 cidades), Salvador (332), Goiânia (258), Recife (255) e Teresina (225).

São Paulo também foi a cidade que mais transferiu pacientes para hospitais de outros municípios: Ao todo, 158.

Ela foi seguida por Rio de Janeiro (73 cidades), Guarulhos (41), Curitiba (40), Campinas (39), Belém (38), e Brasília (35).

Desta forma, como resultado deste “efeito bumerangue”, um enorme número de pacientes gravemente enfermos teve que migrar para as grandes cidades brasileiras para conseguir algum tipo de tratamento.

Eventualmente, uma grande parcela destes pacientes veio a falecer nestas cidades.

Combinado com o alto número de mortes de residentes das grandes cidades, a ocorrência do “efeito bumerangue” por todo o país contribuiu decisivamente para o viés geográfico da distribuição de mortos pelo Brasil.

O professor Rafael Raimundo, outro autor do estudo, comenta os achados:

“O trabalho elucidou em grande detalhe os mecanismos através dos quais a covid-19 rapidamente se espalhou por todo o Brasil. Os nossos achados também indicam que, se medidas não farmacológicas, como bloqueios rodoviários sanitários e lockdowns, tivessem sido utilizadas no começo da pandemia a nível nacional ou mesmo regionalmente, milhares de vidas poderiam ter sido salvas no início da pandemia”.

Os autores também enfatizaram nas suas conclusões a importância fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia.

Rafael Raimundo avalia:

“Sem a infraestrutura pública do SUS, construída ao longo dos últimos 40 anos, o impacto da covid-19 teria certamente sido ainda mais devastador. Ainda assim, os nossos resultados mostraram que a magnitude exacerbada do ‘efeito bumerangue’ expôs a necessidade de se instalar uma infraestrutura hospitalar de maior porte, incluindo mais leitos de UTI no interior brasileiro, para melhor assistir às demandas da população interiorana”.

(A) Distribuição de leitos de UTI em todo Brasil. A altura da barra é proporcional ao número de leitos de UTI em cada cidade. Note como as capitais dos estados litorâneos acumulam o maior número de leitos de UTI de todo país, com um número bem

menor de leitos disponíveis no interior da maioria dos estados. A cidade de São Paulo apresenta o maior número de leitos de UTI de todo país. (B) Sobreposição da distribuição de mortes por COVID-19 (legenda com o código de cores no canto inferior esquerdo) no topo da distribuição de leitos de UTI conforme visto em (A). Para cada barra, sua altura representa o número de leitos de UTI de uma cidade, enquanto a cor representa o número de mortes ocorridas naquela cidade. Novamente, a cidade de São Paulo, que de longe possui o maior número de leitos de UTI, acumulou o maior número de fatalidades relacionadas à COVID-19, seguida pelos capitais estaduais como Rio de Janeiro, Fortaleza, Brasília, Salvador, Manaus, Recife e Belém. Os mapas 3D foram feitos com recursos online disponíveis em http://kepler.gl/.

O professor Miguel Nicoelis arremata:

“Certamente, a falta de infraestrutura hospitalar adequada e de um maior número de profissionais de saúde no interior do Brasil contribuíram decisivamente para um grande número de fatalidades que deveriam e poderiam ter sido evitadas. Todavia, se o governo brasileiro tivesse reagido rápida e apropriadamente à chegada do SARS- CoV-2, criando uma comissão nacional de combate à pandemia, implementando uma campanha nacional de comunicação que informasse adequadamente a população sobre a gravidade da crise sanitária, decretando o fechamento do espaço aéreo brasileiro, e realizado um lockdown nacional, com bloqueios sanitários nas estradas, no começo de março de 2020, o Brasil certamente teria evitado a perda irreparável de dezenas de milhares de vidas”.

Nicolelis avalia atuação, impactos e principais descobertas do Comitê Científico do Nordeste


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Zé Maria

Brasil Supera os 550 Mil Mortos por Covid-19

Taxa de Mortalidade no País subiu para
262 Óbitos por 100 Mil Habitantes, a 8ª
Mais Alta do Mundo, atrás apenas do Peru
e de alguns pequenos países europeus.

Deutsche Welle (DW): (https://p.dw.com/p/3y63g)

O Brasil superou nesta segunda-feira (26/07) a marca das 550 mil mortes ligadas à covid-19. Foram mais 578 óbitos nas últimas 24 horas, elevando o total a 550.502, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O número foi alcançado 37 dias depois de o país ter registrado 500 mil mortes pela doença. Nesse período, a oposição realizou três protestos de rua em centenas de cidades do país contra as medidas adotadas pelo governo para lidar com a pandemia, e uma CPI no Senado revelou escândalos relacionados à compra de vacinas.

Também foram confirmados nesta segunda 18.999 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções reportadas no país chega a 19.707.662.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.107, e a média móvel de novos casos, em 45.117.

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 262 no Brasil, a 8ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, depois dos Estados Unidos, que somam mais de 610 mil óbitos, mas têm população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, após EUA (34,4 milhões) e Índia (31,4 milhões).

O Conass não divulga o número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 18.349.436 pacientes no Brasil haviam se recuperado da doença até a noite de domingo.

No entanto, o governo não especifica quantos desses recuperados ficaram com sequelas ou outros efeitos de longo prazo. A forma como o governo propagandeia o número de “recuperados” já foi criticada por cientistas, que classificam o número como enganador ao sugerir que os infectados estão completamente curados da doença após a fase aguda ou alta hospitalar.

Estudos no exterior estimaram que entre 10% e 38% dos infectados sofrem efeitos da “covid longa” meses após o vírus ter deixado o organismo. Um estudo alemão apontou que sequelas podem surgir até meses depois da fase aguda da doença. Já uma pesquisa da University College London em 56 países listou mais de 200 sintomas observados em pacientes com sequelas pós-covid.

Ao todo, mais de 194 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 4,16 milhões de mortes associadas à doença, segundo contagem da Universidade Johns Hopkins, dos EUA.

https://www.dw.com/pt-br/brasil-supera-os-550-mil-mortos-por-covid-19/a-58651980

Maria Carvalho

Parabéns pelo minucioso estudo. Obrigada!

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