PEC de Bolsonaro cortará o SUS pela metade e vai afundar o Brasil ainda mais na crise econômica

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Saúde não é moeda de troca: por um piso emergencial em 2021

Por Bruno Moretti, Carlos Ocké, Erika Aragão, Francisco Funcia e Rodrigo Benevides*, especial para o Blog da Saúde

O presidente do Senado Federal anunciou que será votada a PEC 186/2019 – a PEC da emergência fiscal.

O relatório aponta para a retomada do auxílio emergencial, provavelmente em valor inferior aos R$ 600, e para um público menor.

A proposta do governo é atrelar o auxílio à adoção de medidas de austeridade fiscal, estruturais e conjunturais, que tendem aprofundar ainda mais as desigualdades sociais no Brasil.

A proposta revoga os pisos constitucionais de educação e saúde.

Para se ter uma ideia do impacto da medida, sem as garantias constitucionais atuais, estimou-se que os valores aplicados em saúde por todos os entes poderiam corresponder a menos de 40% dos valores observados [i].

Na prática, teríamos um SUS para poucos, com enormes restrições de acesso.

É como se o sistema de saúde contasse com menos da metade dos profissionais, das vacinas, dos leitos e assim por diante.

A radicalidade da PEC é tamanha que ela revoga até os pisos congelados de saúde e educação da EC 95, sequer preservando a atualização dos mínimos pela inflação.

Além disso, a PEC criaria regras fiscais para ativar gatilhos de contenção do gasto quando as despesas correntes dos entes subnacionais alcançassem 95% das receitas.

Para a União, os gatilhos da EC 95 seriam acionados já na proposta orçamentária, quando 95% das despesas fossem obrigatórias.

Com isso, seria proibido, por exemplo, criar despesas obrigatórias para combater a pandemia em 2021.

Trata-se de uma espécie de “teto dentro do teto”, mais uma regra para compor o emaranhado fiscal brasileiro com implicações para o gasto, ainda que os limites do teto não sejam rompidos.

A lei também passaria a dispor sobre a sustentabilidade da dívida pública, apontando não só seus limites, mas propondo a adoção de medidas para forçar a convergência para o patamar definido, incluindo até privatização de empresas.

Mas por que essa PEC será votada diretamente em plenário, dificultando a ampla discussão sobre seus efeitos?

A resposta do governo é que a PEC viabilizará a volta do auxílio emergencial, devendo suspender regras fiscais que impõem limites artificiais à ampliação de gastos.

Apenas por esse motivo, a PEC torna-se, paradoxalmente, necessária, tendo em vista a rigidez do regime fiscal brasileiro, que, de um lado, impede a proteção social das famílias em um contexto em que há mais de 32 milhões de pessoas subutilizadas e 33 milhões de pessoas na informalidade, segundo dados da Pnadc/IBGE.

Por outro lado, o auxílio seria retomado com redução de valor e cobertura, excluindo 30 milhões de pessoas que foram beneficiadas pela concessão inicial do benefício [ii]. 

Em relação às medidas de contenção de gasto, as novas regras se somariam à regra de ouro, ao teto de gasto e à Lei de Responsabilidade Fiscal, consolidando a existência de normas sobrepostas, que determinam tanto uma redução estrutural de serviços públicos (o teto de gasto implica diminuição da despesa em relação ao tamanho da economia, independente da arrecadação), quanto uma política fiscal pró-cíclica na crise (gastos caem abaixo do teto quando a economia desacelera, tendo em vista a frustração de arrecadação).

Vale lembrar que não há descontrole nas despesas obrigatórias da União: os gastos do RGPS se estabilizarão como proporção do PIB em função da reforma da previdência e as despesas de pessoal já sofreram queda real entre 2019 e 2020, segundo dados do Tesouro Nacional.

O Brasil vai na contramão das regras fiscais modernas, adotadas na maioria dos países centrais.

Por exemplo, na União Europeia, embora haja limite à dívida, o monitoramento dos países se dá por indicadores fiscais estruturais, que descontam os efeitos do ciclo econômico (especialmente a baixa arrecadação) e os gastos extraordinários, como os decorrentes da elevada ociosidade da economia.

Medidas corretivas (análogas aos gatilhos) apenas são ativadas se o desequilíbrio for estrutural, permitindo que a política fiscal apoie a estabilização da economia.

Tais medidas também envolvem o aumento de receita, diferente do Brasil, que pratica um ajuste fiscal pelo lado da despesa (redução de gasto), prejudicando os investimentos públicos e os gastos sociais.

Além disso, a meta de gasto por lá adotada permite crescimento do gasto acompanhando o PIB potencial e ainda há cláusula de escape autorizando que o gasto cresça se houver arrecadação adicional.

Tais regras são, portanto, ajustáveis ao ciclo econômico e permitem que não haja cortes de gastos drásticos num contexto de baixa atividade, o que agravaria o desemprego, a desigualdade e a pobreza.

Tanto é assim que, após forte política de austeridade com a crise financeira global de 2008, a União Europeia praticou uma flexibilização a partir de 2015, favorecendo a retomada do crescimento.

Países que não fizeram isso em momentos de crise, historicamente, não só tiveram piora dos indicadores de saúde, educação, dentre outros, como demoraram a retomar o crescimento, a exemplo da Grécia pós crise de 2008.

Este traço estabilizador da política fiscal se intensificou com a pandemia, com a previsão de programas de combate à COVID-19 e de recuperação da economia.

Até instituições conservadoras como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, a seu modo, defendem medidas expansionistas para combater a crise.

O Brasil vai no sentido diametralmente oposto.

O governo propõe a aprovação de medidas que cortam mais despesas e prejudicam o combate à crise.

Aqui, para o governo, a questão não é flexibilizar as regras fiscais, mas endurecê-las em favor da redução do Estado e dos direitos sociais, rasgando a Constituição de 1988.

Portanto, precisamos mudar essa rota perversa e caminhar no sentido oposto.

O problema do SUS é frequentemente reduzido à falsa dicotomia financiamento versus gestão.

Mas, sem recursos, não há como melhorar a gestão.

Além da retomada do auxílio no valor de R$ 600,00, o país requer — urgentemente — um arcabouço fiscal que fortaleça o SUS.

Com a EC 95, o orçamento federal de saúde perderá R$ 37,2 bilhões, comparando valores empenhados em 2020 e a proposta orçamentária de 2021 [iii].

Entre os impactos da redução orçamento, está a queda do número de leitos de UTI destinados à COVID-19 e financiados pelo Ministério da Saúde, que, segundo o Conass, passaram de 12 mil em dezembro para 3,2 mil em fevereiro [iv].

Como não podem emitir dívida soberana e sofrem os efeitos da crise sobre a sua arrecadação, os entes subnacionais têm dificuldade em manter/ampliar leitos sem o apoio federal.

Após 248 mil óbitos e mais de 10 milhões de casos confirmados, o governo Bolsonaro insiste em reduzir o orçamento do SUS e agora pretende revogar os pisos de aplicação do setor.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) coletou quase 600 mil assinaturas em defesa de piso emergencial do SUS em 2021.

O SUS precisa de R$ 168,7 bilhões em 2021 para assistência à saúde da população, para se somar aos R$ 21,6 bilhões estimados para a vacina.

Este é um momento dramático. O Senado Federal deve se abrir às demandas da sociedade.

Afinal, num contexto de baixas taxas de juros internas e externas, o Brasil não teria dificuldades de ampliar gastos e combater a pandemia e seus efeitos.

A dívida brasileira é em moeda local e, por definição, o país não quebra se endividando na moeda que emite.

O governo federal dispõe de quase 20% do PIB na Conta Única do Tesouro e tem capacidade para administrar a dívida, inclusive garantindo sua rolagem em condições vantajosas, tendo em vista o patamar da taxa SELIC.

Como vimos no Amazonas, dadas as crises sanitária e humanitária, o Congresso precisa rechaçar propostas de desvinculação do financiamento público de saúde e educação, aprovando fora do teto de gasto o auxílio e o piso emergencial federal para o SUS.

A saúde não é moeda de troca, a emergência é sanitária e não fiscal.

Não há limites técnicos para tanto, apenas restrições políticas, impedindo que o orçamento público atenda às demandas da sociedade e financie o combate à COVID-19 para salvar vidas.

Manter a política de austeridade em meio à pandemia não levará apenas ao caos social, é genocídio.

*Bruno Moretti, economista e Assessor Técnico do Senado Federal.

Carlos Ocké, economista do Ipea.

Erika Aragão, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABrES.

Francisco Funcia, professor da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde – CNS.

Rodrigo Benevides, economista e Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ.

[i] O estudo simula a correção do gasto público de 2000 até 2017 somente pela inflação. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/ana-paula-menezes-e-bruno-moretti-desvinculacao-de-receitas-barbarie-anunciada-na-saude-publica.html.

[ii] Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/02/22/governo-quer-novo-auxilio-emergencial-de-r-250.ghtml.

[iii] Vale lembrar que mais de R$ 20 bilhões de créditos editados em 2020 foram reabertos em 2021, porque não houve planejamento e coordenação nacional do SUS para que tal despesa ocorresse ano passado, o que agilizaria a vacinação.

[iv] Disponível em: https://www.conass.org.br/nota-a-imprensa-habilitacao-de-leitos-de-uti-para-covid-19/.


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Zé Maria

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