Dossiê da Unicamp denuncia: Atividade lucrativa da uberização adoece os motoboys e o SUS paga a conta

Tempo de leitura: 9 min
Fotos: Agência Brasil e reprodução

Uberização deteriora saúde de motoboys

Dossiê da Unicamp expõe dados alarmantes sobre a situação desses trabalhadores

Por Mariana Garcia*, no Jornal da Unicamp

Enquanto a expectativa em torno da regulamentação do trabalho de motofretistas (motociclistas que fazem entregas de mercadorias) por aplicativo tem atraído a atenção de diversos setores da sociedade, as discussões sobre a questão se mantêm restritas a seus aspectos trabalhistas, previdenciários, legais e tecnológicos.

À margem dessa conversa, a saúde pública segue arcando com o custo principal da uberização: cuidar de suas vítimas.

As evidências do impacto para a saúde desse trabalho “sob demanda” – condição em que a pessoa fica disponível para ser convocada quando a empresa determinar – estão no Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado:  (na íntegra, ao final).

Em Barão Geraldo, Campinas: motoboys descansam como podem; uberização traduziu-se em jornadas excessivas e baixa remuneração. Foto: Antonio Scarpinetti, Antoninho Perri

A obra, que chega para ampliar esse debate, traz os primeiros resultados de uma pesquisa da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da Unicamp empreendida em 2023 com 200 motofretistas de Campinas.

Visto que a uberização diminuiu o salário e as proteções legais de toda a categoria dos entregadores, o estudo abrangeu trabalhadores que têm como principal (ou única) fonte de renda as corridas via aplicativos e também os motoboys que não dependem das plataformas digitais para obter seu sustento.

A médica Silvia Santiago é uma autoras do dossiê. Ela é diretora da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp e professora da Faculdade da de Ciências Médicas da instituição

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“É preciso qualificar essa discussão, do ponto de vista da cidadania, e pensar sobre o direito de viver dignamente e prover dignidade para a família, como está posto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Refletir sobre como nós, enquanto sociedade, toleramos esse arranjo laboral”, diz Silvia Santiago, diretora-executiva da DEDH e uma das autoras do dossiê.

Os resultados da avaliação expõem um panorama mais complexo do que fazem crer as empresas da área.

Dos 200 entrevistados, 90% eram do sexo masculino e quase 60%, negros – corroborando estudos anteriores que já haviam constatado esse abismo racial.

Embora em média mais jovens, os que dependiam dos aplicativos para trabalhar como entregador apresentaram mais questões de saúde preocupantes, com a mesma proporção de medidas de pressão arterial alteradas do grupo geral (com média de idade maior) e menor ingestão de líquidos ao longo do dia. A situação dos primeiros se revelou pior também em relação à renda.

“Vimos que quem tem mais tempo de trabalho adere menos aos aplicativos, porque já tem clientes e experiência, porque consegue enxergar a longo prazo. Ainda assim, suas condições laborais foram transformadas, pois a uberização impacta o setor como um todo, dado os processos de oligopolização alcançados por essas empresas. Quando as pessoas se uberizam da forma como está posta, suas vidas se degradam mais. Toda a categoria, porém, está submetida à deterioração da saúde. O cenário é trágico”, relata a socióloga Ludmila Abílio, pesquisadora visitante da DEDH e coautora do dossiê.

A socióloga Ludmila Abílio é coautora do dossiê. Ela é pesquisadora visitante da Diretoria Exceutiva de Direitos Humanos da Unicamp

A fim de não relegar mais a um segundo plano o diagnóstico sobre a precarização do bem-estar físico e mental dos motoboys, o dossiê sugere medidas inspiradas nos modelos de cogestão e gestão participativa do próprio Sistema Único de Saúde (SUS), que visam proteger esses trabalhadores e transformar o progresso tecnológico em evolução social – e não em retrocesso.

O documento recomenda também a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), atualizada frente às mudanças sociais, como base para o reconhecimento da subordinação desses trabalhadores às plataformas digitais.

“Na forma como a situação está posta, enquanto o Estado se omite, há uma série de danos para o trabalhador e a sociedade. Nosso objetivo é oferecer instrumentos analíticos para quem quiser entrar na conversa, pois a uberização nos atravessa, pressionando o mercado como um todo. Suas características estão se generalizando”, diz a socióloga.

Infográfico: Luis Paulo Silva

O estopim

Em janeiro de 2021, cerca de 220 motofretistas participaram de uma ação realizada pela Força-Tarefa da Unicamp contra a Covid-19. A expectativa, confirmada mais tarde, era encontrar muitos casos da doença nesse grupo.

Já a surpresa foi o alto índice de desidratação entre os motoboys, dificultando a coleta de sangue necessária para fazer o teste da doença.

“Devido a uma provável diminuição da fluidez [sanguínea], havia dificuldade em obter uma gota de sangue para o teste”, relata Santiago, que é professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e que coordenou aquela ação.

O quadro, explica a professora, resultava de uma rotina exaustiva em que o acesso a banheiros e a disponibilidade de água fresca para beber eram restritos.

A descoberta, somada a outros achados inesperados da iniciativa, impulsionou a realização da investigação sobre as condições laborais e de saúde da categoria, ação realizada pela DEDH em 2023 – e que deu origem ao dossiê.

“Não conhecíamos nenhuma atividade que imprimisse aquele modo de organizar o trabalho, em que a pessoa está subordinada a uma plataforma e vive em função disso”, justifica Santiago.

Os resultados do novo estudo não apenas corroboraram as descobertas feitas na pandemia como também trouxeram achados surpreendentes, confirmando o dano provocado pela uberização na saúde e na qualidade de vida dos integrantes dessa categoria.

Apesar de atingir setores como a educação, a medicina, a comunicação e o direito, a oligopolização promovida por essas empresas favoreceu a uberização dos motoboys, pontua Abílio, que estuda as mudanças ocorridas nesse tipo de trabalho ao longo dos últimos anos.

“Primeiro, jogaram o valor da entrega para o alto, para quebrar todas as concorrentes, o que conseguiram. Agora, essas plataformas têm meios técnicos de organizar 100 mil, 1 milhão de trabalhadores, popularizando e barateando o serviço.”

Graças a esse modelo de negócio, as grandes corporações conseguiram manter à sua disposição milhares de pessoas no mesmo espaço de tempo. “Portanto não há necessidade de determinar uma jornada, o que torna qualquer regulação desnecessária. Para o direito e para o Estado, isso é um desafio.”

Totalmente legalizadas, essas empresas imprimiram uma operação calcada na informalização: sem regulamentação, a falta de transparência torna-se regra. “As regras perderam as formas estáveis e reconhecíveis”, resume Abílio.

Não é necessário, por exemplo, disponibilizar os critérios utilizados para não recrutar um motoboy – mesmo que ele esteja acessível – ou para definir o valor de cada corrida.

“Trata-se de uma relação diferente, de total instabilidade e imprevisibilidade”, afirma a socióloga. Nessa nova configuração, não há possibilidade de negociar. Ao trabalhador, cabe submeter-se.

Com a dataficação – processo em que qualquer ação, comportamento e situação são transformados em dados –, é possível prever comportamentos do trabalhador e do consumidor.

Usado para definir estratégias operacionais a partir do cruzamento de informações, esse processo permite, por exemplo, mudar regras, criar bonificações e expectativas e definir preços e penalizações.

Com base, por exemplo, na dinâmica do trânsito da cidade, na previsão meteorológica, no tempo que o motofretista passa conectado no aplicativo e na avaliação feita pelo consumidor. É o que Abílio chama de gerenciamento algorítmico. “Isso traz novas possibilidades para a forma de organização do trabalho.”

Epidemia de acidentes de trânsito

Para analisar os efeitos das condições laborais sobre a saúde física e mental da categoria, uma equipe composta por pesquisadores da FCM, com o apoio de profissionais do Centro de Saúde da Comunidade (Cecom) da Unicamp, avaliou os 200 motociclistas entre janeiro e fevereiro de 2023.

Todos foram submetidos a entrevista (anamnese), exames laboratoriais – como glicemia, teste de covid-19 e aferição de pressão arterial – e testes psicológicos para avaliar níveis de atenção e estresse no trabalho.

Na ocasião, os participantes responderam a um questionário elaborado especificamente para mapear os aspectos de suas vidas afetados pela forma de organização do seu trabalho.

Os motoboys foram questionados, por exemplo, sobre a quantidade de dias trabalhados na semana, a quantidade de horas dormidas a cada noite e a característica e frequência das refeições feitas em cada dia.

Segundo Santiago, o índice de entregadores que declarou ter sofrido acidente de trânsito enquanto trabalhava superou o esperado.

Se em 2021 o índice já era excessivo (cerca de 45%), passados dois anos a situação se tornou alarmante: 65,7% dos entregadores atendidos durante a ação de 2023 afirmaram ter se acidentado pelo menos uma vez na vida enquanto trabalhavam. Por acidente, referiam-se especificamente aos incidentes que os impediam de trabalhar.

Infográfico: Luis Paulo Silva

Simplesmente cair da moto ou ralar alguma parte do corpo, pontua Santiago, eram ocorrências desconsideradas e descritas como algo característico de suas rotinas. “Quando a gente pensa em uma atividade laboral, nada chega perto de 65,7%. É uma tragédia.”

Igualmente inesperada foi a frequência de casos de pressão arterial acima do patamar considerado ideal.

A discrepância maior verificou-se entre os mais jovens, com menos de 30 anos, mas o panorama revelou-se igualmente grave entre os que tinham até 40 anos – média de idade de todos os examinados.

“Isso significa o dobro do que se vê na população brasileira”, compara a médica, frisando que esse tipo de achado não é tão frequente em um grupo de pessoas mais jovens.

Para completar, os motofretistas com mais de quatro anos de mercado tiveram mais alterações na pressão arterial. “Isso pode indicar que, depois de passar um tempo nessa ocupação, começa a haver uma degradação da saúde com o risco de desenvolver mais cedo um problema de hipertensão arterial, uma doença crônica.”

O aumento no número de acidentes de trânsito envolvendo motofretistas, a alta frequência com que ocorrem e a gravidade desses casos afetam até mesmo a dinâmica de funcionamento dos hospitais, exigindo desses locais adaptações constantes para acolher as vítimas.

Uma das consequências desse cenário, diz Santiago, é o aumento das filas de atendimento para casos crônicos no SUS, principalmente para pacientes ortopédicos e neurológicos.

“O sistema não consegue dar vazão porque todo dia entram alguns casos de politraumatismo envolvendo esses trabalhadores. Com essa nova realidade, os municípios precisaram ficar mais qualificados para atender esses acidentes.”

Por outro lado, o inesperado resultado sobre as aferições de pressão arterial dos motociclistas atendidos mostra que os custos da uberização para o SUS não se limitam aos cuidados com aqueles envolvidos em acidentes.

As condições laborais a que eles são submetidos podem provocar danos ao seu organismo precocemente.

“São pessoas que vão precisar de cuidados mais cedo, pensando em doenças crônicas, como a hipertensão arterial e seus efeitos no organismo”, alerta a professora. “Essa é uma profissão altamente degradada, arriscada e insalubre”, completa Abílio.

Em 2023, confirmaram-se os dados de 2021 sobre a interferência desse arranjo laboral na qualidade de vida dessa população – sobretudo quanto à privação de sono, à alimentação e hidratação insuficientes e ao estresse psicológico.

Um quarto dos participantes afirmou dormir no máximo cinco horas por noite, uma realidade relacionada ao fato de permanecerem disponíveis para atender aos chamados de entrega, explica a socióloga.

“A uberização transforma todo tempo em tempo de trabalho. Se o trabalhador está em casa, logado no [conectado ao] aplicativo, vai atender à noite. Inclusive, durante a madrugada, há horários em que entram mais corridas.”

De acordo com a socióloga, as plataformas digitais se valem da falta de regulação para adotar um modelo de operação nebuloso, em que as regras não estão claras para quem trabalha e, portanto, podem ser alteradas sem anúncio prévio ou esclarecimentos.

“Como consequência dessa dinâmica, o motoboy passa a organizar todo o seu tempo em torno dessas determinações, que não são definidas, mas obscuras – e que vão mudando. Ninguém o contratou, ele não ganha hora extra ou adicional noturno, no entanto sua vida vai sendo estruturada e colonizada pelo trabalho.”

O conflito fica evidente nas negociações recentes empreendidas pela categoria, cuja reivindicação é receber pela “hora logada” (ou seja, pelo tempo em que permanece disponível no aplicativo para trabalhar), e as empresas – que pretendem pagar apenas pela hora em que os motoristas estão de fato em trânsito.

As implicações dessa relação indefinida não se restringem ao sono, afetando também a saúde mental, conforme observaram os profissionais envolvidos na pesquisa.

Segundo Santiago, ainda que não estivessem formalmente vinculados às plataformas digitais, os respondentes manifestaram temor de serem penalizados de alguma forma pelas companhias, caso sua participação na pesquisa fosse divulgada.

“Depois do nosso convite, houve muita fake news nas redes dos próprios motofretistas. Avisos para que não comparecessem e mensagens questionando o que faríamos com os seus nomes, sugerindo que esses nomes poderiam ser repassados para as empresas. Durante os atendimentos, alguns contavam que seus colegas decidiram não ir por medo de terem seus nomes revelados.”

Abílio ressalta que o fato de os trabalhadores sentirem-se ameaçados por comparecerem a um atendimento básico de saúde indica a falta de conhecimento dos motoboys sobre o funcionamento dos aplicativos utilizados para trabalhar.

Afinal, em nenhum momento o trabalhador tem acesso a qualquer informação sobre a existência de implicações ou punição em caso de participação em uma pesquisa sobre suas condições de saúde, por exemplo.

Não obstante a falta de acesso às regras operacionais, os indivíduos afirmaram que, na prática, os “bloqueios brancos” (não confirmados nem oficializados) são um recurso comumente aplicado para penalizar alguns comportamentos – como recusar um certo número de corridas ou manter uma baixa aderência ao aplicativo.

“Nenhuma empresa diz que isso existe, mas acontece. Só que é algo obscuro, informal”, afirma a socióloga.

Para os trabalhadores, esse modo de atuar das plataformas digitais resulta em insegurança e ansiedade, constatou Santiago.

“Existe um poder nesse modo nebuloso de atuar muito interessante, para não dizer assustador. Fomos percebendo, psicologicamente, uma certa tortura. Mesmo os mais jovens se mostraram, de forma impressionante, obedientes ao que vinha das plataformas, mesmo que isso não tivesse muita concretude. Então essa é a voz da uberização: se você trabalha em um determinado padrão, você vai conseguir sobreviver de uma determinada maneira.”

O problema, continua a docente, é que o padrão muda, sem explicação, e o trabalhador precisa se reorganizar e tentar entender quais são as novas regras.

* Fotos Antonio Scarpinetti, Antoninho Perri

* Infográficos Luis Paulo Silva

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