Ana Paula Menezes e Bruno Moretti: Desvinculação de receitas, barbárie anunciada na saúde pública

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Crônica de uma Barbárie Anunciada

por Ana Paula Menezes e Bruno Moretti*, especial para o Blog da Saúde

Desde a criação do SUS, o Brasil vem enfrentando o desafio de prover um financiamento público adequado para assegurar o direito à saúde.

De acordo com o artigo 195 da Constituição Federal (1988), o SUS seria financiado com recursos do orçamento da Seguridade Social, dos entes federados, além de outras fontes.

Apesar de todo o esforço em ampliar os recursos, não foi possível garantir do ponto de vista financeiro as conquistas constitucionais.

No Brasil, o gasto total em saúde se mantém em torno de 8% do Produto Interno Bruto (PIB), sendo mais da metade com gastos privados.

As evidências internacionais sugerem que a universalização dos sistemas de saúde implica gastos públicos iguais ou superiores a 70% dos gastos totais em saúde, estando o Brasil mais de vinte pontos percentuais abaixo deste patamar.

A Emenda Constitucional 29/2000 (EC29/2000) marca o início da vinculação orçamentária da saúde.

Ela levou a um crescimento dos recursos aplicados em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), que passaram de 2,9% do PIB em 2000 para 4,1% do PIB, em 2017.

Esse aumento foi consequência, principalmente, da vinculação das receitas estaduais e municipais destinadas para a saúde.

Em 1993, o governo federal contribuía com 72% dos recursos para o SUS, os municípios com 16% e os estados com 12%.

Recuando à década de 1980, a participação da União nos gastos em saúde chegou a ser de 80% do total.

Em 2017, os estados aplicaram em ASPS R$ 68,3 bilhões (26%), os municípios, R$ 82,5 bilhões (31%) e a União, R$ 114,7 bilhões (43%).

Já a Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95/2016), de autoria do Poder Executivo (Governo Temer), instituiu o novo regime fiscal, subjugando as políticas sociais ao princípio da austeridade, congelando os gastos públicos (a rigor, reduzindo-os em relação ao PIB ou às receitas), aí inseridos os gastos com saúde, por 20 anos.

Ademais, congelou os valores mínimos obrigatórios de aplicação no setor nos níveis de 2017.

Assim, se o orçamento do Ministério da Saúde  se limitar ao piso, ele seria reajustado, por duas décadas, apenas pela inflação do período (medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA).

A EC 95 desconsidera as necessidades de saúde da população, o impacto do crescimento populacional, o envelhecimento populacional (em 2030, mais de 30% da população terá mais do que 65 anos), a indispensável expansão da rede pública, o impacto da incorporação tecnológica (crescente e cumulativa na área da saúde) e os custos associados à mudança do perfil assistencial determinado pela prevalência das doenças não transmissíveis e das causas externas, e a própria inflação setorial, superior aos demais setores da economia.

O princípio básico da EC 95 foi evitar que ganhos reais vindos do crescimento econômico fossem automaticamente transferidos às despesas primárias e, portanto, aos gastos em Ações e Serviços Públicos de Saúde.

Dessa forma, mesmo que haja aumento da arrecadação federal, não haverá mais investimentos nas áreas sociais.

No que se refere à aplicação mínima, o problema se aprofunda quando se opta por uma base de partida deprimida pelo fraco desempenho da economia e da receita.

A emenda dispôs que o valor mínimo obrigatório para ASPS equivale a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2017, acrescidos da inflação.

Com a nova regra, o piso para 2019 é de R$ 117,3 bilhões. Caso não vigorasse o piso da EC 95, o valor mínimo em 2019 seria de R$ 127 bilhões (15% da RCL estimada para 2019), R$ 8,6 bilhões acima dos valores disponíveis para 2019, que já estão próximos ao piso.

Entre 2003 e 2017, as despesas federais de saúde passaram de 58% para 43% das despesas públicas totais.

Significa dizer que os estados e, sobretudo, os municípios gastam proporcionalmente cada vez mais em saúde. Se mantido o congelamento, esses entes serão responsáveis por cerca de 70% dos gastos públicos em 2036.

A situação pode se agravar.

Apesar do quadro de desfinanciamento do SUS, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu em audiência pública na Comissão de Assuntos Econômicos , do Senado Federal, que vai encaminhar ao Congresso Nacional uma PEC para desvincular recursos da União, estados e municípios.

Como as despesas obrigatórias com salários e benefícios previdenciários, em princípio, não poderiam deixar de ser efetuadas, sobrariam as áreas de educação e saúde, para serem impactadas pela medida.

Vale lembrar que as alternativas, diante de um quadro fiscal complexo, não apontam inexoravelmente para o desfinanciamento das políticas sociais.

Por exemplo, um caminho de aprimoramento seria, como apontaram recentemente os governadores do Nordeste [1], pensar em soluções criativas para tornar o gasto social ainda mais eficiente, preservados os direitos e seus instrumentos de financiamento.

Um exercício simples pode ajudar a mostrar os efeitos perversos dessa desvinculação.

Se, entre 2000 e 2017, o valor aplicado por todos os entes em saúde tivesse sido corrigido apenas pela inflação, sem o efeito da vinculação instituído pela EC 29/00, o valor total gasto em saúde em 2017 teria sido de R$ 104,6 bilhões.

Ou seja, equivalente a apenas 39% do que é gasto atualmente (R$ 265,5 bilhões), correspondendo a um gasto público total de 1,6% do PIB.

O gasto de saúde nesse período (2000-2017) seria 1,2 trilhão menor do que o observado [2]. A diferença é visualizada pela distância das curvas no gráfico abaixo.

Poderíamos falar de SUS universal ou de saúde como direito de cidadania com um sistema encolhido?

A resposta é não, porque teríamos, nesse caso um “SUS Menor”, equivalente a quase 1/3 do que é hoje.

O novo governo (é como se autointitula o de  Bolsonaro) traz de volta a premissa de um sistema de saúde para poucos.

Não ousamos nem pensar quais critérios seriam propostos para estratificação da nossa população e quem teria direito de acesso aos serviços de saúde.

Com a substituição da lógica de nossa Previdência Social, inscrita na seguridade social, para capitalização, com a desconstrução das políticas de assistência social, de saúde e de educação, teríamos a barbárie.

“Novo Governo, nova política, nova previdência, novo pacto federativo” são expressões que compõem os discursos do atual governo, em nível federal.

Contudo, os projetos apresentados até agora remetem ao passado, quando a política social não era praticada de modo a efetivar direitos, mas para manter a dependência de caridade e da lógica individual de acesso (mediado pelo poder aquisitivo de cada um).

Tomando o sociólogo Jessé Souza como referência, pode-se dizer que para um país que descende da escravidão, o problema não é o gasto social caber no orçamento público, mas os direitos universais caberem no imaginário das elites, que representam a “ralé” como “não-gente”, indigna de direitos.

E aí, invertendo a propaganda oficial, só nos resta combater o admirável mundo velho, travestido de novo, em que o orçamento público, livre de obrigações e vinculações sociais, serve apenas à naturalização da exclusão.

Ana Paula Menezes  é médica, Doutoranda em Saúde Coletiva, Unifesp.

Bruno Moretti é economista, pós-doutor em Sociologia, UnB.

[1] https://www.cartacapital.com.br/politica/governadores-do-nordeste-criam-consorcio-para-fazer-mais-com-menos/.

[2] Se o cenário for projetado para o período 2020-2036, a perda é ainda mais intensa. Para maiores detalhes, ver: http://brasildebate.com.br/o-sus-a-coca-cola-e-a-desvinculacao-de-receitas-como-retirar-r-2-trilhoes-da-saude/.


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