Ana Paula Guljor: Covid-19 desnuda adoecimento da sociedade e revela a face obscura do Brasil

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Redes sociais

Adoecimento da sociedade desnudado pela covid-19 

Tem revelado a parte obscura e não dita deste país — sua face racista, elitista e indiferente aos vulneráveis

por Ana Paula Guljor*, na Atente

Os tempos de pandemia mundial têm confrontado povos de todo o mundo com o desafio de superar uma doença ainda sem tratamento efetivamente reconhecido.

A evolução para a cura ou agravamento fatal possui um componente do imponderável, apesar dos grupos de risco possuírem taxas de letalidade mais significativas.

Ainda se busca explicações mais consistentes sobre o curso de maior gravidade para aqueles que não se enquadram no critério definido para estes riscos, sendo considerados até então como pessoas ‘saudáveis’ e fora das faixas etárias mais vulneráveis definidas como elegíveis para os grupos de risco.

Objetivamente, no dia a dia, observa-se a contaminação pelo novo coronavírus (covid-19) expandir-se progressivamente de forma exponencial em todos os continentes.

A dimensão numérica do acometimento em cada país possui inúmeros fatores e da mesma forma também é distinta a capacidade destes países em identificar e ofertar a complexidade do suporte no campo das políticas públicas para a recuperação das pessoas infectadas.

A pandemia tem gerado impactos em múltiplas dimensões que extrapolam a área da saúde, e as medidas exigidas para conter sua propagação afetam as populações de forma generalizada, não se restringindo aos danos diretos na saúde ou à vida cotidiana das pessoas contaminadas pela doença.

As desigualdades sociais e o investimento do Estado na garantia de direitos básicos são dois aspectos fundamentais nas análises destes impactos.

Não foram poucos os países onde a pandemia, com sua radicalidade letal, desnudou a face excludente do desinvestimento público e do abandono aos mais vulneráveis como componente histórico do cenário sócio-econômico e político.

De concreto sobre seus desdobramentos temos como afirmar que ainda é um processo em curso permeado por incertezas, principalmente sobre as formas de vida dos povos e suas inter-relações futuras, sejam no campo coletivo, sejam no campo individual.

Ao propor desenvolver alguns apontamentos sobre a questão das repercussões de um dos reflexos da pandemia pelo coronavírus – sobre a saúde mental – a contextualização acima, mesmo não se propondo a um detalhamento completo, se insere na necessidade de defini-la como uma questão complexa.

Os reflexos de uma pandemia em uma dada população terão seu impacto observado de modo diferenciado em cada grupo social.

Não se pode ignorar que a as condições econômicas, as vulnerabilidades sociais e a condição subjetiva de cada indivíduo interagem de forma a não ser possível adotar padronizações analíticas ou mesmo propostas de cuidado prescritivas para todos.

No campo da saúde, a estrutura de Estado para oferta de estratégias protetivas tem nas políticas de seguridade social, na observação dos direitos de cidadania e acesso aos direitos básicos, como a universalidade e integralidade, aspectos fundamentais para um enfrentamento efetivo desta pandemia.

Pensemos no Brasil com seu sistema de saúde universal e público – Sistema Único de Saúde/SUS.

Este, se capilariza nos grotões distantes através da estratégia de saúde da família.

Possui uma rede de políticas específicas para populações originárias, como os afrodescendentes e indígenas, lei de garantia de direitos a pessoas institucionalizadas e em sofrimento psíquico, estratégias de atenção aos vulneráveis como a redução de danos e oferta de medicamentos gratuitos para patologias mais prevalentes entre outras mais, seria um suposto Estado onde as ferramentas para disseminação da informação e oferta de cuidado estariam fortemente consolidadas.

No entanto, não é isso que se desnuda a cada dia.

Podemos dizer que a pandemia covid-19 tem revelado a parte obscura e não dita deste país – sua face racista, elitista e indiferente aos vulneráveis.

O desinvestimento no Sistema Único de Saúde e o desmonte de sua interface com os movimentos sociais, o cerceamento da produção científica pública com a valorização do setor privado e imposição de viés ideológico religioso como critério de financiamento, a incerteza das garantias de proteção social seja nos programas de renda mínima seja no oferecimento regular de insumos como medicamentos por exemplo.

Isto sem entrar no campo econômico onde as reformas trabalhista e previdenciária condenam apenas os mais pobres a uma progressiva deterioração das condições de subsistência.

Apesar de vivenciarmos hoje a escolha de quem vive e quem morre em vários estados do país de forma concreta na porta das emergências e unidades de terapia intensiva, esta escolha tem sido feita, principalmente ao longo dos últimos dois anos, pela adoção do que Mbembe chama de necropolítica.

Quando falamos do enfrentamento do covid-19 através do isolamento social, este apenas tem sido possível a uma parcela da população.

É claro que muitos por desinformação ou alienação política seguem de forma acrítica os desvarios do líder da nação e seguem como que em um estado onírico a ideia de uma salvação divina ou a negação das evidências da ciência tal e qual os terraplanistas defendem sua teoria.

Mas é certo também que grande parte dos circulando pelas cidades são a grande parcela daqueles que trabalham no almoço para ter o que jantar.

Isolar-se em uma casa onde convivem grande quantitativo de pessoas em dois cômodos, sem água encanada, sem esgotamento sanitário apenas para sinalizar o básico da miséria cotidiana que convive lado a lado de forma invisível com uma sociedade indiferente.

Deste modo, falar do sofrimento psíquico neste período de isolamento social exige que tenhamos claro que não bastam poucas laudas ou relatos de sinais e sintomas.

O adoecimento social vivido silenciosamente e retratado no número de assassinatos de jovens anualmente, nos milhões que vivem abaixo da linha da miséria, naqueles que tiveram fogo ateado em seus corpos por estarem em condição de rua, nos feminicídios de números inimagináveis, na ocupação do lugar mais alto do pódium de mortalidade de pessoas transsexuais, no genocídio das lideranças dos povos do campo e indígenas seria o primeiro caminho de uma discussão que pela restrição deste espaço não será possível seguir.

Optamos por sinalizar alguns pontos necessários ao debate sobre o sofrimento psíquico advindo destes tempos sombrios de pandemia sem a proposta de prescrever ações ou esgotar questões.

Neste sentido, dado o exposto acima, apontamos como questão a ser problematizada é reconhecer que o isolamento social e as formas de sua implementação geraram importante acirramento da disputa entre concepções de mundo e de relação com os semelhantes.

Mas indubitavelmente também pressupôs uma mudança dos hábitos de convivência de forma radical.

Seja na convivência em ambientes restritos do lar com novas exigências e agregação de tarefas, seja na perda da renda ou na reconfiguração dos processos de trabalho para garanti-la.

Além disso, para aqueles que compreendem o que está em jogo durante a ampliação da disseminação dos vírus, o medo se faz presente como um fator explícito ou presente nas entrelinhas de seu cotidiano.

Dado este contexto e fruto de um mundo cada vez mais prescritivo, a “medicalização” ou patologização da vida se apresenta de forma pulsante.

Isto significa descontextualizar a realidade objetiva vivida por cada sujeito gerando uma excessiva busca por diagnósticos psiquiátricos e psicofármacos como resposta reducionista para um problema mais amplo.

Exemplo simples são as massas de entregadores de compras (essenciais para a segurança daqueles que permanecem em suas casas) que desenvolvem grande angústia que por vezes se manifestam por alteração do sono, episódios de ansiedade e medo pela impotência diante da realidade de suas necessidades laborativas.

Este exemplo também se atribui aos profissionais da saúde que se mantêm na linha de frente das intervenções, mas não são imunes ao receio de serem infectados ou suas famílias.

A valorização de suas atuações, fundamentais, na manutenção da vida e das condições de vida do outro, bem como as condições de segurança (em sentido amplo) ofertadas a estes, podem determinar a incidência desses sintomas como patológicos ou possibilitar sua elaboração e amenização. Isso sem que o sujeito seja muitas vezes alçado a um diagnóstico psiquiátrico ou prescritos psicofármacos.

No entanto, não seria este o único lado da questão. Como já apontado, a necessidade de um olhar sobre o coletivo perpassa a importância da singularidade dos contextos e das existências.

Deste modo, a questão de gênero e a faixa etária são também aspectos a serem associados às questões sócio-econômicas e as vulnerabilidades de grupos e indivíduos em sua subjetividade.

Deste modo, passados mais de 30 dias do início das medidas de contenção social, em diversos estados e municípios da federação, grandes contingentes da população são orientados a se manterem em seus espaços de moradia com saídas restritas e com um protocolo de ações preventivas que transformaram de forma radical o cotidiano das pessoas e suas inter-relações.

A faixa etária dos idosos aqui recortaremos como a população acima de 60 anos, com a ressalva de que no mundo moderno este ‘retrato’ do idoso é bastante variável no que se refere a sua inserção social e potência de vida.

No entanto, é um grupo no qual, além dos problemas físicos com maior prevalência,  o isolamento social se traduz em abandono.

Por viver sozinho devido a perda ou afastamento progressivo de familiares, se faz necessário a esse grupo um suporte mais estreito e a criação de estratégias de apoio social mais fortemente consolidadas.

A existência de limitações físicas de várias ordens pode reduzir suas condições de garantir sua subsistência no cotidiano da casa ou de estabelecer um contato com o mundo externo e suas redes de convívio.

Se faz premente a garantia de ações que extrapolam o campo da saúde e são de perspectiva intersetorial.

Minorar o sofrimento significa a possibilidade de criação ou manutenção do sentimento de pertencimento a um grupo, de segurança e acolhimento. Isto sem negar que para alguns será necessária uma retaguarda especializada em saúde mental que uma rede estreita e constante possibilitará a identificação.

Outro aspecto  é a complexidade necessária ao se pensar a condição da mulher neste quadro.

Sem a intenção de detalhar cada situação, destaco dois apontamentos que considero prioritários.

Um  é a condição da mulher chefe de família cujo isolamento determina redução de renda e o fechamento das escolas no caso daquela com filhos já implica em um aumento dos gastos e um impedimento do exercício de funções remuneradas externas.

O acúmulo de tarefas no cuidado a crianças pequenas, da casa e do sustento por si é fator de grande investimento de energia e tensão pelas incertezas que se desenham.

Existem distinções entre as condições sócio-econômicas e esta condição de mulher chefe de família que precisa ser singularizada no que se refere ao acesso a recursos de suporte social e financeiro, mas destaco aqui a importância da questão.

A situação de violência doméstica é outro fator a ser considerado para o debate.

O convívio com parceiros agressivos se intensifica neste período e da mesma forma é crescente a incidência de conflitos gerados pelo uso problemático de substâncias, sendo o álcool a principal. Ainda hoje o maior gerador de agravos à saúde direto e indireto no campo das drogas lícitas e ilícitas.

No aspecto geral, a vivência de situações limítrofes permeadas pelo impacto subjetivo individual sobre o imponderável e a finitude possuem repercussões na realidade emocional de forma diversificada.

Assim, não pode ser ignorada a necessidade de um olhar singular que permita complexificar esta questão de forma a identificar as diversas variáveis envolvidas.

As manifestações emocionais estarão presentes e naturais nestes contextos.

Sensações de angústia, tristeza, desespero e as respostas a estas variações frequentemente afetam o humor, o ânimo e a condição de “continuar a andar a vida” de cada um.

No entanto, é preciso considerar que a questão do lugar social ocupado – de impotência ou protagonismo, de reconhecimento ou indiferença, de ações de impacto na positividade na vida de outros ou de passividade e inutilidade – interfere de forma direta nestes sentimentos aflorados.

A Organização Mundial de Saúde em suas orientações sobre atuação em situações de eventos traumáticos, grandes desastres e tragédias aponta alguns critérios que não podemos deixar de ressaltar como sinais de alerta para uma assistência especializada, tais como:

a) prolongamento do tempo;

b) sofrimento intenso;

c) complicações associadas (p.ex. conduta suicida);

d) comprometimento significativo do funcionamento social e cotidiano (ressalvada a condição específica que tratamos ser o próprio isolamento como orientação de prevenção).

Para finalizar, retomo a questão inicial sobre a importância de se compreender o sofrimento psíquico originado neste contexto como fruto de diversos determinantes e não sendo um evento inerente ao indivíduo e sua predisposição genética.

Desta forma, as ações necessárias são de ordem intersetorial pautadas em análises que considerem as condições de vida da população e as obrigações do Estado na garantia do bem estar de seu povo.

* Ana Paula Guljor é psiquiatra, PhD em Saúde Pública e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Fiocruz.


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Zé Maria

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