Stephan Sperling: “De Braços Abertos”, uma política de saúde acertada para os usuários de drogas

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braços abertas

por Stephan Sperling, especial para o Blog da Saúde

O programa De Braços Abertos, política intersetorial e multidisciplinar embrionária da última Gestão Municipal (Fernando Haddad – PT), assumiu, especificamente para o cuidado de quem convive com uso de substâncias psicoativas, um dos principais desafios contemporâneos, colocado para os Sistemas Nacionais de Saúde universalistas: a elaboração de uma política de saúde que dê conta da assistência de suas usuárias e de seus usuários, e igualmente capaz de modificar os fatores que condicionam aquela sua realidade sanitária, em diálogo com o território e com as comunidades afetadas.

Um dos elementos de insucesso para qualquer política sanitária é sequestrar pautas socioeconômicas e, através de um diagnóstico eminentemente clínico, isto é, centrado exclusivamente no repertório biomédico, negar as demais contradições estruturais envolvidas no adoecimento de pessoas.

Isto diminui a efetividade das ações pretendidas, por serem políticas segmentadoras, portanto negligentes quanto à integralidade do cuidado; e extremamente custosas ao Sistema de Saúde, impedindo que outras pastas produzam investimento em políticas intersetoriais, as quais, muitas vezes, são até mesmo mais importantes para a salubridade do que a política de saúde per si.

Neste cenário, as políticas públicas de reabilitação de usuárias e usuários de substâncias psicoativas – verdade seja dita, de qualquer uma ou de qualquer um que conviva com necessidades em saúde mental – a grosso modo, desde o início do século XX, destinaram-se unicamente às contenções biológica (nosocomialização, intervenção medicamentosa, terapias psíquicas) e política (isolamento social, rotulação e classificação de funcionalidade e periculosidade) dos “pacientes”.

Não dialogando com as contradições sociais e econômicas que tanto têm produzido sofrimento no seio da sociedade moderna, então, e contemporânea, por ora, figuram sempre como higienistas (recordando ser este o movimento sanitário de maior expressão até meados do século passado: o Movimento Eugenista e Higienista, responsável, inclusive, pela formação de ambientes universitários, como a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Instituto de Higiene, atual Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo).

O programa De Braços Abertos, propondo não apenas oferecimento de assistência sanitária, senão também maior compreensão territorial e comunitária a respeito do consumo de substâncias psicoativas, atualizou a Política de Saúde Municipal, colocando-a em diálogo com as principais evidências científicas disponíveis (consolidadas na proposta de seguimento conhecida por Redução de Danos), e destacou a necessidade de transformar as formas como a usuária e o usuário dialogam com o espaço urbano, como dispõem seus corpos no território e, assim, produzem suas intervenções, interagem e respondem à política pública.

Os investimentos feitos pela gestão Fernando Haddad objetivaram, portanto, cuidar das demandas clínicas, significando, através da oferta de oportunidades para realização de atividades variadas, de habitação minimamente digna, de inserção em alguma rotina produtiva, o próprio cuidado.

Este é um ponto de conflito inconciliável com as forças opositoras, quer seja do capital, quer seja da medicina: para estas é inadmissível o Estado invista em vidas que, mantendo consumo assistido de substâncias psicoativas, com projeto terapêutico pautado pelo uso seguro, produzam auto-cuidado, política e modos de ser em meio à sociedade que não aqueles postos pelo binarismo internação / abstinência ou regime empregatício produtivo / desocupação por improdutividade.

Obviamente o De Braços Abertos tratava-se de um programa incipiente, com desafios concretos importantes, não obstante as auditorias positivas a seu respeito.

Era preciso melhorar o uso das hospedagens pelas usuárias e pelos usuários, ampliar as possibilidades de atividades rotineiras e fortalecer o acolhimento para vítimas e autores de violências. Nenhum destes desafios, entretanto, altera o fato de que a política fora acertada e de que a evolução intersetorial e multidisciplinar de sua gestão obteria surpreendentes desfechos.

Stephan Sperling, 29 anos, é médico de família e comunidade especializado pela Faculdade de Medicina da USP, onde é preceptor de ensino.


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