Ligia Bahia: Remuneração por cada procedimento médico, alerta vermelho

Ligia Bahia: “O pagamento por cada ação de saúde, na versão sem ou com corrupção, é uma aplicação direta do ensinamento ‘quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo ou não tem arte'”.
por Ligia Bahia, em O Globo, via blog Saúde Brasil, sugestão de Mario Lobato
Esforços para monitorar serviços de saúde não faltam. Têm câmaras nos hospitais ligadas a monitores no gabinete presidencial, indicadores de eficiência, auditorias e outros métodos de controle. Tanta vigilância deveria no mínimo coibir o tráfico de doentes e medicamentos à luz do dia.
Mas, as fraudes continuam à solta. Cobranças falsas para o SUS e decisões de suprimir tratamentos de pacientes com câncer em um serviço privado localizado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, denunciadas no inicio do mês, não foram detectadas por radares da saúde e sim pelas organizações do Ministério Público e Polícia Federal. A acusação é parecida com a da antecipação de mortes de idosos em Curitiba.
Dessa vez a trama teve mais personagens e se desenrolou em vários cenários. Começou com a transferência de pacientes do SUS intermediada por um dono de uma clínica privada. Lá, os pacientes eram tratados ou não de acordo com a racionalidade administrativo-lucrativa. Dependendo de quem era o pagador, remédios caros prescritos eram substituídas por placebos ou se cobrava pelo uso de medicamentos não administrados. Diante da ameaça da investigação, o médico, proprietário, recorreu ao Governador, deixando subentendido que teria poder para pressioná-lo, seu advogado declarou que comprovará que as delações são injustificadas e a promotora do Ministério Público sublinhou a obrigação do poder público de atender a população.
Ambos os episódios, o do CTI de Curitiba e o de tratamento de neoplasias em Campo Grande, parecem ter sido desencadeados por alguns profissionais de saúde impulsionados pela ganância. No entanto, as vias, os atalhos e os jeitos de adulterar ações de saúde precisam ser bem compreendidos para evitar soluções baseadas apenas na introdução de mais controles, que nem sempre são eficazes para deter a banalização de atos de má conduta médica e corrupção.
No Brasil, predomina o pagamento por procedimento, modalidade de remuneração que estimula a decomposição de ações assistenciais e o interesse na realização ou cobrança de exames e tratamentos caros. Países que adotaram o sistema de remuneração per capita ou prospectivo incentivam uma abordagem mais integrada das necessidades de saúde.
A diferença é que aqui o pagamento é realizado para cada remédio prescrito, equipamento utilizado, de forma que esse parcelamento condensa e gera articulações entre os produtores e distribuidores de insumos, hospitais, clinicas e médicos. Além disso, o valor pago pelo atendimento de pacientes do SUS é, em média, menor do que o correspondente a casos idênticos de clientes de planos e seguros de saúde. Portanto, procedimentos melhor remunerados, que permitem a cobrança direta e indireta de medicamentos, e a divisão do tratamento em sessões e os pacientes de planos e seguros, especialmente aqueles com coberturas mais abrangentes, tendem a ser mais atraentes.
Ainda que não exista corrupção, o pagamento por produção de procedimentos descaracteriza a finalidade das atividades de saúde porque a variação dos valores de remuneração tem efeitos imediatos sobre a oferta e demanda. Como os problemas de saúde não podem esperar preços baixarem, quem atua na saúde pode desempenhar um duplo papel: o assistencial propriamente dito e o de vendedor ou intermediador do uso de insumos e medicamentos. Nem sempre as permutas são permeadas pela corrupção. O que choca e confunde é que o uso de um serviço de saúde é trocado pura e simplesmente por um valor ajustado, entre outras circunstâncias, ao risco de vida.
Atualmente, cerca de cem mil brasileiros são renais crônicos (cujos rins deixaram de funcionar) e dependem de máquinas que realizam a filtragem do sangue. O SUS paga quase todos esses tratamentos, incluindo medicamentos. Em 2012, as despesas do Ministério da Saúde com pacientes renais crônicos atingiram R$ 2 bilhões. Cada paciente realiza três sessões por semana e o valor de cada uma é de aproximadamente R$ 200,00. Mais de 90% das clínicas de hemodiálise são privadas.
Os serviços de nefrologia de hospitais universitários e de ensino, foram desativados e, cederam espaço a clinicas privadas, lideradas pelos mesmos médicos que organizaram os serviços públicos. Atualmente, esses estabelecimentos conveniados com o SUS, mediante articulações com fornecedores, portadores de doenças renais e parlamentares, influenciam a definição de preços, quantidade, qualidade do atendimento.
Nem as clínicas de hemodiálise, nem seus usuários estão inteiramente satisfeitos. Os primeiros exigem respostas do governo às mudanças cambiais, valores de pagamento próximos ao de custo, critérios de elegibilidade de novos pacientes, regras para o descarte e reaproveitamento de membranas dialíticas e renovação das máquinas.
Os pacientes, necessariamente reféns dos processos de ajustes de preços não sabem se os aumentos trarão melhor qualidade, demoram a ter acesso ao tratamento porque as “portas de entrada” ainda são as emergências e não a atenção básica (a maioria dos renais crônicos são hipertensos e diabéticos), as “janelas” para o uso de outros serviços, inclusive terapia intensiva, estão fechadas e as “portas de saída” os transplantes, permanecem distantes e estreitas.
O pagamento por cada ação de saúde, na versão sem ou com corrupção, é uma aplicação direta do ensinamento “quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo ou não tem arte”.
Desde os anos 1970, a compra de atos médicos é criticada por especialistas em saúde pública. Quem telefonava para Carlos Gentile de Mello, médico que inspirou a aprovação do SUS pela Constituição de 1988, ouvia a seguinte mensagem: o pagamento por procedimento é um fator incontrolável de corrupção.
Até hoje, o sistema público de qualidade não foi implementado. Batalhas voltadas exclusivamente ao monitoramento de indicadores de produtividade agravam o problema ao habilitar credenciais falsificadas de conservadores que se proclamam modernizantes. Os alertas vermelhos indicam objetivamente a necessidade de democratização das decisões e investimentos na rede pública para permitir mudanças na essência atrasada e ineficiente da fragmentação de seres humanos e mercantilização da saúde.
Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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2 Comentários para “Ligia Bahia: Remuneração por cada procedimento médico, alerta vermelho”
A questão da remuneração dos procedimentos e serviços de saúde é MUITO pertinente.
No mundo inteiro (em especial onde reinam os seguros saúde) a remuneração por procedimento (ffs – “fee for service”) foi praticamente abandonada. Isto por conta de que o “ffs” é inflacionário (quanto mais fizer, precisando ou não, mais recebe), estimula fraude e é difícil de regular/fiscalizar/controlar.
Há muitas décadas os americanos adotaram o pagamento “por pacote”. A nossa anciã “AIH” foi concebida com base na experiência americana. O problema é que isto aconteceu na década de 80 do século passado…
Já faz algum tempo que o preconizado (por conta de ser mais “econômico”) é a chamada “capitação”. Paga-se pelo atendimento a uma parcela da população (per capita) e adiciona-se penduricalhos de estímulo baseados em resultados, cobertura, produtividade etc. etc. etc.
O que me parece que a professora Lígia destaca neste excelente artigo é que aqui no Brasil a gente tem feito a coisa ao contrário do que manda a boa prática de controle e regulação.
Vejamos:
A gente paga “per capita” (em valores ainda baixos) a Atenção Primária, que atende mais gente, que resolve mais coisas e que tem mais impacto positivo.
A gente continua pagando as internações hospitalares por “pacote” (em moldes ainda muito semelhantes ao que fazíamos a quase 30 anos nos tempos do INAMPS).
E, o pior de tudo, a gente paga “por procedimento” os procedimentos de alto custo/complexidade, que atendem uma parcela muito restrita da população, gastando quase 2/3 do dinheiro e sendo fonte inesgotável de fraudes, de seleção de pacientes (quem pode mais “usa” mais), de desova de pacientes de planos de saúde e – em alguns casos – com uma altíssima taxa de “normalidade” (de indicação e de necessidade discutíveis).
Coisas da macroeconomia da saúde.
Muito bom texto da Lígia. Concordo integralmente. Nessa modalidade de gestão, nem com todos as formas de controle você consegue estancar a sangria de dinheiro público e a sanha corruptora de prestadores de serviço.