Uma reportagem recente da Folha de S. Paulo sobre a menina que ficou presa em uma cela com quase 30 homens, no Pará, deu o que falar. Reproduzo um conjunto de textos para a avaliação dos comentaristas:
Vida em looping
Folha de S. Paulo, 05.08.2010
A vida da menina L., que ganhou notoriedade ao ficar presa numa cela com homens, ficou marcada por fugas, pequenos furtos e episódios de prostituição para bancar o vício em crack
ELIANE TRINDADE
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
Os dreadlocks no cabelo são só uma nova etapa na vida de L., 18. Foi assim que a garota, que ganhou notoriedade ao ficar presa 26 dias numa cela com 26 homens no Pará, deixou a comunidade terapêutica em que cumpriu 18 meses de medida socioeducativa, a 35 km de Brasília.
A maioridade é mais um início numa trajetória vivida em looping constante, plena de manobras e acrobacias — quase sempre na vertical.
A última vez que ela havia deixado os muros e as ce rcas eletrificadas para trás foi numa fuga no final de 2009. Uma entre tantas escapadas da garota que, há três anos, está no Programa de Proteção a Crianças eAdolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República.
Apesar do sigilo que cerca o programa por questões de segurança, a Folha comprovou que ao longo dos últimos dois anos e meio, a trajetória de L. ficou marcada por fugas, pequenos furtos e episódios de prostituição para bancar o vício em crack.
Sempre que escapava, L. vagava pelas cidades-satélites em busca da droga. Assim foi parar numa maloca na cracolândia da Ceilândia.
Apoie o VIOMUNDO
Na tarde de terça, a “tia” que controla a área, conhecida como Castelinho, baixou a guarda ao ouvir o nome de L. Ela não sabe precisar a data, mas se recorda de que o primeiro contato com a menina “mirradinha e bonitinha” foi no final de 2008.
“Aquela ratazana era maior que as outras”, c onta ela sobre sua reação diante da garota que se escondia em um dos becos pichados. O espaço de uns cinco metros quadrados, com paredes arrebentadas e lixo espalhado, fica em uma das extremidades da obra abandonada.
Não demorou muito para “noias” e traficantes descobrirem que a desconhecida era a “garota do Pará, aquela que apareceu na televisão”. Era assim que L., contrariando todas as regras do esquema de proteção, apresentava-se à galera do crack.
“É por isso que levaram ela para a clínica. Querem ela bem caladinha”, diz a “tia”.
Refere-se à Mansão Vida, clínica de reabilitação de luxo em Santo Antônio do Descoberto, a 35 km de Brasília.
A diária varia de R$ 150 a R$ 300. L. fugiu pelo menos três vezes da clínica com piscina, sauna, salão de jogos e cinco refeições por dia.
Tomava oito remédios por dia. Mais simples, a comunidade terapêutica, a 10 km da clínica, é confortável, mas sem luxos. Ali, dividia o alojamento com outras 11 dependentes químicas. Não estava só em tratamento, mas cumprindo pena por furto.
Em fevereiro de 2009, a sequência de fugas de L. foi interrompida, quando, então com 17 anos, foi presa na cidade-satélite do Guará. Com uma faca, tentou furtar uma jovem, mas acabou presa.
Por determinação da Justiça, L. foi mandada para o Caje (Centro de Atendimento Juvenil Especializado), a unidade de internação para menores infratores do DF.
De lá, foi levada para a comunidade terapêutica.
Ao completar a maioridade em 10 de dezembro de 2009, o destino de L. voltou a ser debatido pelas autoridades. Deve trocar o PPCAAM, pelo similar para adultos, o Provita. Um novo recomeço.
Quando chegou ao Distrito Federal, ela já era uma dor de cabeça para as autoridades. Ela foi recusada por vários Estados. A fama de que ela havia “tocado o terror” no Rio se espalhou, segundo um profissional que acompanhou a vinda dela para o DF.
A primeira estratégia foi a mãe. Não funcionou.
Na saga para definir quem iria ficar com ela, técnicos do governo descobriram que o homem que a registrara como filha não era o pai biológico. Feito um exame de DNA, o pai verdadeiro foi aceito no programa, e L. passou a viver com ele e a madrasta em uma chácara.
A menina novamente não se adaptou à vida familiar. Cresceu sem pai nem mãe e não gostava do mato. “Gastaram muito tempo e dinheiro com ela, mas L. não sabe o que fará da vida. Nesses três anos, o que foi construído?”, indaga uma amiga dela.
*****
O direito à recuperação
Na Folha, em 10.08.2010
CARMEN SILVEIRA DE OLIVEIRA
Meninas e meninos nessa situação têm suas vidas marcadas pela ausência de oportunidades de estudo, lazer e convivência familiar
Esta Folha resgatou na quinta-feira (5/8) o caso da menina detida ilegalmente em novembro de 2007, aos 15 anos, numa cela, na cadeia de Abaetetuba (PA), com quase 30 homens, onde foi vítima de violência sexual e tortura.
A ocorrência teve ampla repercussão na mídia nacional e internacional e chocou a sociedade. Imediatamente assistida, a adolescente e seus familiares ingressaram no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAAM), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, onde permaneceu nos últimos três anos.
A matéria “Vida em looping”, de Eliane Trindade, pretendeu demonstrar a impossibilidade de sua recuperação, descrevendo-a como drogada irrecuperável que, para sustent ar o “vício”, se prostituía pelas ruas do Distrito Federal como “uma ratazana”.
Além disso, sugere sua criminalização e a transforma em algoz do seu próprio destino, desqualificando a sua condição de vítima e de reiteradas violações de seus direitos.
Eliane oculta o fato de que meninas e meninos nessa situação têm suas vidas marcadas pela ausência de oportunidades de estudo, lazer e convivência familiar e suas trajetórias são caracterizadas, em geral, pela situação de rua e violência sexual, ou seja, acabam condenados a vivências que comprometem todo seu processo de desenvolvimento.
Essa realidade, inclusive, foi retratada pela mesma jornalista em seu livro “As Meninas da Esquina”, em abordagem completamente diferente. No livro, a repórter aborda temas como trajetória de rua, violência sexual e o uso de álcool e de drogas que, segundo ela, estabelecem entre si um “ciclo vicioso, já que a dependência de álcool e drogas torna mais di fícil a saída de uma situação de exploração”, aumentando o risco de morte, em função das relações estabelecidas na rua, com o crime organizado e o narcotráfico.
Apesar de ter entrevistado diversos profissionais envolvidos com o atendimento da adolescente, o texto se apoia nos relatos de uma “amiga” e de uma traficante.
Ao não levar em consideração outras fontes de informação, deixou margem para que o caso fosse apresentado de maneira preconceituosa e estigmatizante. Ao descrever o percurso da menina dessa forma, também deslocou o foco da imperiosa necessidade de responsabilização dos agentes públicos e demais envolvidos.
Desconsiderando o fato de que a adolescente se encontrava em programa de proteção, a jornalista ignorou os alertas reiterados da Secretaria de Direitos Humanos feitos à Folha, desde o final de 2009, de que a exposição da menina a levaria a uma nova situação de vitimização, revivendo atrocidades per petradas em sua história.
Ademais, a revelação de informações acerca de supostos atos praticados por ela fere o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por fim, mensura os “gastos” feitos com o atendimento da jovem e os considera desperdício de recursos públicos, dado o pouco retorno. No entanto, é importante deixar claro que a criação do Programa de Proteção, em 2003, veio saldar minimamente a dívida histórica do Estado brasileiro com a infância e a adolescência com direitos violados.
Diante dos dramáticos índices de homicídios nessa faixa etária, é nossa prioridade garantir o direito à vida, sem medir recursos e esforços. O que não se pode desperdiçar são vidas. A aposta em resgatar crianças e adolescentes nessas situações deve ser uma missão permanente de toda a sociedade, inclusive da mídia.
CARMEN SILVEIRA DE OLIVEIRA, doutora em psicologia clínica, é secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
*****
A VOLTA DA MENINA DO PARÁ
da Ombudsman da Folha, em 15.08.2010
Jornal se limita a contar história de garota, sem mostrar por que programas de governo falharam
NA TERÇA-FEIRA passada, a Folha foi acusada na própria Folha de ter publicado uma reportagem que atenta contra os direitos de crianças e adolescentes. O alvo da crítica era o texto “Vida em looping”, que descrevia a saga de L., a garota presa durante semanas em uma cela com 26 homens, em 2007, no Pará.
Nos três últimos anos, L. tentou viver com a família, mas não deu certo, passou por vários Estados, ficou viciada em crack, prostituiu-se para conseguir a droga, foi internada para tratamento, fugiu, furtou, foi presa e internada, de novo, à força. Durante todo esse período, esteve sob as asas do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal.
A repórter refez os passos de L. falando com pessoas que a atenderam, delegados, amigas e traficantes. Foi um furo. Vários jornalistas tentam levantar a história dessa garota, que virou símbolo dos descalabros do sistema prisional brasileiro.
As críticas à reportagem partiram de Carmen Silveira de Oliveira, secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, que publicou artigo na seção “Tendências/Debates”, e de organizações não governamentais.
Para a secretária, a reportagem peca por descrever L. como uma viciada irrecuperável que se prostituía “como uma ratazana”. O texto, “preconceituoso e estigmatizante”, teria transformado a garota em “algoz do seu próprio destino, desqualificando sua posição de vítima”.
Não foi a repórter que comparou L. a um a ratazana, foi a traficante que toma conta de uma “boca” que a menina frequentava (“Aquela ratazana era maior do que as outras”). O texto não emite juízo de valor, só descreve os percalços da ex-detenta. E reside aí o seu maior erro.
A reportagem se limita a contar a vida de um “personagem” do noticiário, sem abrir o leque. O texto deveria ter mostrado por que os programas do governo falharam, como deixaram uma adolescente, sob proteção do Estado, ir parar numa cracolândia nos arredores de Brasília.
Como diz a própria secretária, a reportagem tirou “o foco da imperiosa necessidade de responsabilização dos agentes públicos e demais envolvidos”. Pródiga em críticas à repórter, Carmen emudece a respeito da responsabilidade do órgão que dirige. Se L. é vítima, quem são os culpados pela sua situação?
A Folha foi acusada ainda de dar pistas que ajudariam a localizar a garota, ameaçada de morte. A repórter afirma que, ant es da publicação do texto, certificou-se de que L. seria transferida para outro Estado.
Se não tivesse fechado tanto o foco, a Folha teria mais legitimidade para falar do caso. A reportagem não seria mais “a triste história de L., drogada e prostituída”, mas um exemplo de como os agentes públicos não sabem lidar com crianças e adolescentes em situações de risco.
*****
Agência de Notícias dos Direitos da Infância
Em 06/08/2010
A ANDI lamenta que a Folha de S. Paulo – veículo reconhecido por seu compromisso com um jornalismo de qualidade – tenha publicado com destaque de capa uma matéria com problemas tão evidentes.
A preocupação é maior pelo fato de que o texto traz a assinatura de Eliane Trindade, profissional com larga experiência na cobertura de temáticas da agenda social. Na construção da reportagem, chamam a atenção pelos menos dois aspectos:
(1) o conjunto de informações que facilita a identificação da jovem e, além disso, oferece pistas de sua localização. A soma e a correlação desses dados podem facilitar que ela venha a ser encontrada por aqueles que a ameaçam de morte;
(2) em sua longa descrição dos problemas enfrentados pela jovem, a matéria não garante espaço, uma única vez, à opinião de especialistas no tema da justiça juvenil (psicólogos, assistentes sociais ou gestores públicos responsáveis pelo caso, por exemplo).
Ao optar por este caminho, a Folha não só compromete a segurança da jovem e contribui para estigmatizá-la. Impede também que o leitor acesse informação qualificada sobre os encaminhamentos do caso – cuja gravidade v em chamando a atenção da sociedade brasileira – e em relação a diversas políticas públicas voltadas à ressocialização de jovens e adolescentes.
*****
Nota pública da ANCED
Em 06/08/2010
“A Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED, organização da sociedade civil de defesa de direitos humanos que agrega cerca de 30 Cedecas em todo Brasil, vem por meio desta Nota Pública manifestar o seu repúdio à matéria intitulada “Vida em Looping” publicada na versão impressa do jornal Folha de São Paulo do dia 05 de agosto de 2010.
A matéria trata, de forma extremamente preconceituosa e machista, o caso de uma jovem que aos seus quinze anos teve todos os seus direitos, enquanto ser humano, violados, após ser presa, ilegalmente, por agentes do Estado, em uma cela de delegacia com 26 homens por mais de 20 dias, no município de Abaetetuba – PA, em 2007.
Cumpre destacar que a jovem, em virtude desta violação e da repercussão que o caso teve nacional e internacionalmente, passou a ser ameaçada de morte por autoridades no Estado do Pará, o que lhe rendeu a inserção no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte – PPCAAM, no qual se encontra até o momento. A revelação do local de proteção desta jovem pela reportagem do jornal, independente de quem tenha informado, se torna irresponsável na medida em que expõe a jovem novamente ao risco de morte, uma vez que, estando num programa de proteção, o sigilo do seu pouso é pressuposto de sua segurança.
Entendemos que os meios de comunicação devem assumir o compromisso com a promoção dos direitos humanos. No entanto o conteúdo da matéria contribui para a construção de uma imagem social de estigmatização e criminalização da pobreza e da juventude. Para que serviu, por exemplo, reproduzir a opinião de que a menina é “uma ratazana”? E o objetivo de reproduzir a outra opinião de que o dinheiro empregado no tratamento para tratar a drogadição e atenuar os dramas acumulados foi perdido? Reproduzir opiniões com estas e outras sem citar fontes qualificadas nos parece um equivoco e um risco.
O conteúdo da matéria ainda contribui para a legitimação de uma ação violadora de direitos por parte do Estado e seus agentes, uma vez que atribui a conduta dos delegados e demais servidores públicos envolvidos no caso, ao fato de a jovem ser usuária de drogas. Ademais, a redação do referido jornal, ao dar ênfase em declarações que desqualificam a jovem, sujeito de direitos, justifica, mesmo que implicitamente, a violência e o descaso que a acompanha desde o trágico episódio.
Em que pese a reportagem tender a indicar que a responsabilidade dos fatos se dá ao comportamento da adolescente, vale destacar que o Estado é o grande responsável pelas violações de direito que acompanham esta jovem, e grande parte das crianças e adolescentes em nosso país, por não oferecer políticas sociais básicas de defesa e promoção dos direitos humanos.
Só a partir de um entendimento mais amplo do que representa uma democracia, teremos avançado para não mais tolerar que o Estado brasileiro permita que uma menina de 15 anos, sob a sua tutela, seja estuprada por quase um mês, sem nenhuma atenção daqueles que deveriam protegê-la. Também evitaremos torturas e homicídios por grupos de extermínios, ou o controle discriminatório sobre os adolescentes, personificado nos toques de recolher e em tantas outras violações que ainda, infelizmente, se reproduzem diariamente e aos olhos de todos em nosso país.
Anced – São Paulo, 5 de Agosto de 2010
*****
NOTA PÚBLICA
Em 05/08/2010
A Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lamenta a matéria veiculada no jornal Folha de S. Paulo na data de hoje, intitulada “Vida em looping”, pela forma equivocada e estigmatizante como se refere à jovem L.A.B., inserida no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) em novembro 2007, após ter sido vítima de violência sexual, tortura e prisão ilegal na cadeia de Abaetetuba, estado do Pará. Ameaçada por denunciar seus agressores, a jovem é exposta no texto não como se não fosse vítima e sim algoz de seu próprio destino. Cabe esclarecer:
1. Desde dezembro de 2009, o jornal foi alertado de que a exposição pública da adolescente significaria risco ao seu processo de recuperação e de sua própria vida;
2. O texto publicado na edição de hoje coloca em risco o processo de recuperação da jovem e impõe-lhe uma nova vitimização;
3. A tese da matéria colabora para dificultar a responsabilização de seus agressores, na medida em que a desqualifica como vítima;
4. A revelação de informações acerca de atos praticados por L.A.B. à época em que ainda era adolescente fere dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre eles os Artigos 143 e 247, que asseguram o sigilo dos atos judiciais e o direito da adolescente a não ter sua identidade revelada nos meios de comunicação;
5. O PPCAAM, no qual a adolescente foi inicialmente acolhida, tem como objetivos principais a preservação da integridade física e a proteção integral, como estabelece o ECA, o que efetivamente foi assegurado ao longo de sua permanência no Programa. Atualmente a jovem e seus familiares encontram-se em segurança no sistema de proteção a pessoas ameaçadas da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência.
Brasília, 05 de agosto de 2010




Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!