Professora da USP lança nesta sexta, às 19h, Fragmentos de humor, na Livraria da Travessa, em SP

Tempo de leitura: 10 min
A professora da USP Cilaine Alves Cunha. Foto: Arquivo pessoal

Por Redação

A professora de Literatura Brasileira da USP, Cilaine Alves Cunha, lança nesta sexta-feira, 26, às 19h, na Livraria da Travessa, o livro Fragmentos de humor, da Edusp, a Editora da Universidade de São Paulo.

A Livraria da Travessa está localizada da rua dos Pinheiros, 513, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. Haverá conversa com a autora.

A seguir, artigo da professora a respeito da publicação.

Fragmentos de humor

Apresentação pela autora do livro recém-lançado

Por Cilaine Alves Cunha*, em A Terra é Redonda

1.

Os textos deste livro [Fragmentos de humor] perguntam pela natureza e pela forma da sátira e do humor no interior do romantismo brasileiro, especialmente nas obras de Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães e Manuel Antônio de Almeida.

Identificam nessas obras evidências de que o romantismo no Brasil não se furtou a realizar uma crítica a seu tempo artístico e a seu contexto histórico: ao racionalismo, ao nacionalismo oficial, ao indianismo e à ordem social e política estabelecida.

Naqueles três escritores, a sátira e o humor miram, sobretudo, o campo artístico então em processo de especialização. Tomam por alvo certo fingimento ficcional em curso, dizendo que, se tornando brasileira, a literatura aqui produzida já se diferenciava do sistema cultural português, e já figurava, num regime poético próprio, hábitos e costumes locais, sem a possibilidade de trocas culturais com Portugal.

Tal como aqui se propõe, a obra de Manuel Antônio de Almeida e parcela da de Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo, deixando ver a natureza heterogênea do romantismo, procuram realizar, como foi norma na teoria estética produzida na Europa na passagem do século xviii para o xix, uma inversão paródica de ideologias e princípios éticos, políticos e artísticos que se queriam graves e sérios, satiricamente concebidos como se caminhassem para se tornar lugar-comum, como se estivessem em vias de um processo de esvaziamento de seu significado e de perda de seu sentido.

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O verossímil constituído nessas obras se vale do historicismo moderno e se aproxima de seu presente histórico. Ainda assim, a sátira desses escritores não leva obviamente em conta o pressuposto da metade final do século xix, segundo o qual a literatura deve imitar o discurso da psicologia moderna, da sociologia e mesmo do cientificismo para figurar os efeitos das adversidades e das contradições do sistema econômico de produção de mercadorias na consciência problemática de seus personagens.

A sátira ao presente histórico, efetivada por Álvares de Azevedo, Manuel Antônio de Almeida e Bernardo Guimarães, não prioriza – embora o faça de maneira discreta e a seu modo poético próprio – as contradições sociais perpetradas pela expansão do moderno sistema de produção de mercadorias, especialmente, no Brasil, a preservação da escravidão, a informalidade do trabalho dito “livre” e a mercantilização das relações sociais. Vale aqui lembrar que esse matéria generaliza-se no campo artístico apenas a partir da segunda metade do século XIX.

Em seu tempo histórico, o pressuposto básico do humor e da sátira desses três escritores é o de que, tendo fim nela mesma, a arte pode representar ou expressar o sentimento próprio de seu tempo, especialmente o de que as instituições monárquicas escravocratas, com sua hierarquia herdada do sistema colonial, que se queriam naturais, tornaram-se excrescência na primeira metade do século e já se encontravam em desagregação.

De um ponto de vista incertamente burguês, contraditoriamente liberal e que, no Brasil, ainda não havia dominado o Estado-nação, então nas mãos do estamento político, esses escritores valem-se de Herder, Lamennais, Byron, Musset, entre outros.

Adotam como ponto de partida o princípio de que os sistemas ético, filosófico e cultural não são produtos de uma instância atemporal, sendo particularmente determinados por forças humanas que emergem em um dado lugar e em um tempo específico. Secularizando a história, reconhecem que esses três sistemas tendem a ser instrumentalizados por forças políticas dominantes, decorrendo assim de interesses particulares.

A arte pode, nessa óptica, estimular internamente o ódio e a revolta social, entendida por eles não como uma paixão inferior ou vício, como diziam seus detratores, mas como resultado da vontade livre do escritor, capaz de supostamente despertar a consciência política da corporação de letrados e autodeterminar a própria consciência artística e social. Assim, a novidade, em seu tempo, da sátira desses escritores reside em seu distanciamento da ideia de que esse gênero deve corrigir e repor a ordem moral e social vigente.

2.

Uma vez que, para esses escritores, a arte, concorrendo com a filosofia, é uma esfera legítima de manifestação da dúvida e do ceticismo, o estudioso dessa literatura não pode descartar, de antemão e sem mais, a evidência de que a obra deles figura, a seu modo próprio, suas discordâncias com a monarquia escravocrata do Brasil.

Nem deixar de considerar a contradição, como a de Álvares de Azevedo, que se opôs ao racionalismo e ao mundo administrado, mas anseia pela afirmação da originalidade autoral, um fenômeno que emerge na cultura com a expansão do mercado editorial. Conforme lembra Eric Hobsbawm[i] (e tantos outros estudiosos do período), o fim da utopia de um mundo humano “primitivo”, delimitado por relações humanas comunitárias e solidárias, dissemina-se a partir de 1830 com a ascensão da monarquia burguesa, levando à derrocada dos ideais de igualdade social e de um regime social e político que considerasse a nação como um bem comum, e os trabalhadores como sujeitos históricos de direitos sociais.

Como se sabe, a obra dos três escritores em pauta neste trabalho foi produzida num momento de forte estabilização do regime monárquico, durante o processo de centralização do poder político na Corte e quando, logo em seguida à morte de Álvares de Azevedo, a oposição liberal se deixa cooptar pelos quadros institucionais do Estado nacional, pelo regime de favor, pela instituição do mecenato e pela distribuição de cargos, títulos e prebendas.

Em certos momentos pontuais e às vezes denotativamente em toda uma narrativa ou poema, o alvo da sátira produzida durante a vigência da estética romântica no Brasil pode problematizar a hierarquia social dividida entre proprietários brancos, negros escravizados e pobres “livres” despossuídos, como se observa em Manuel Antônio de Almeida e em Meditação (1850) de Gonçalves Dias.

Em Almeida, Guimarães e Azevedo, a figuração das discordâncias com seu tempo histórico realiza-se por meio de cenas, imagens e discursos densamente metafóricos. Nesse sentido, como ocorre na recepção do gênero satírico, a natureza desse humor demanda do estudioso uma aproximação aos discursos cotidianos de seu tempo e a observação de que a sátira não imita o referente, mas formaliza os discursos sobre ele num sistema poético próprio.

Em Memórias de Sargento de Milícias, a natureza contraditória da sátira posta em prática nas duas diferentes partes, mais livremente bem-humorada e em seguida mais carrancuda e corretiva, não impede que se observe a figuração performática e plástica de cenas que evidenciam a reflexão de seu narrador acerca das consequências do trabalho escravizado no trabalho dito livre dos funcionários públicos e na informalidade dos bicos e pequenos serviços dependentes do favor.

De Bernardo Guimarães, a despeito do infeliz A Escrava Isaura, que merece ser reavaliado, as poesias de juventude e contos da maturidade (que não são objeto deste trabalho) demandam um olhar do estudioso atento para a sua crítica cifrada, visual, plástica e alegórica.

Nas narrativas curtas produzidas após a tentativa desse escritor pobre e afrodescendente de se inserir no restrito mercado editorial e profissional, após constituir família, observa-se o dilema do narrador preocupado em repor a ideologia oficial do nacionalismo monárquico, enquanto deixa escapar uma ambígua heroicização do quilombola, por exemplo. Em o Pão de Ouro, Bernardo Guimarães realiza uma inversão da figura do “selvagem” nativo, representado como um indivíduo branco devorador do branco colonizador.

A posição política de Álvares de Azevedo, por sua vez, pode ser melhor apreendida na figuração dos agentes sociais, das práticas e do modo de vida da nobreza como uma ordem indiferente a valores éticos cristãos, distantes da soberania popular e dos direitos liberais; e em seu lamento, no poema “O Canto do Século”, de que a glória dos valentes e o nome de guerreiros não ecoavam mais naqueles tempos de “esperança morta” nas “praças de sangue ainda quentes”, o que, nessa óptica, impossibilitava a atualização da epopeia em sua época.

Sua literatura assenta-se numa concepção do fluxo histórico, bebida em Herder, que prevê que qualquer regime político opressivo, qualquer imperialismo encontra nele mesmo as forças internas de sua dissolução. Ainda que em sua obra seja quase rara a crítica à escravidão, seus discursos, sua prosa de teoria e crítica da literatura se deixam atravessar pela defesa do regime republicano, às vezes elogiando princípios do socialismo utópico.

3.

Na Parte I, “Romantismo Plural”, procuro problematizar o lugar-comum de algumas histórias da literatura brasileira de que o romantismo no Brasil se reduz a um estilo único, configurado pelo sentimentalismo, pelo exotismo, pela fuga da realidade, por um patriotismo oficial etc. etc. etc. Essencialmente contraditório, o romantismo não forma unidade também no Brasil. Predominantemente traço aí uma comparação entre a sátira de Álvares de Azevedo e a de Bernardo Guimarães, procurando realçar suas formas, temas e estilos afins, as diferenças entre eles e em relação ao indianismo.

Em A Era do Capital, Eric Hobsbawm[ii] afirma que, na primeira metade do século XIX, a Inglaterra se ocupou em estabilizar o seu poder na economia mundial e em expandir o moderno sistema de produção de mercadorias, a França em instituir um novo regime político mundial, enquanto a Alemanha procurou formular as bases culturais e teóricas das transformações em curso.

Como digo em algum momento deste trabalho, embora o romantismo tenha emergido afirmando uma radical originalidade, ele também construiu, com os escritores do romantismo de Jena, uma sólida teoria estética que forneceu e inclusive codificou as bases para essa afirmação de originalidade. Ressalte-se aqui que, sendo linguagem, o discurso romântico dito “espontâneo” também possui seu código retórico e poético próprio para que possa, entre outros aspectos, criar o efeito de sinceridade e novidade.

A Parte II deste trabalho, “Ironias Literárias”, procura discutir a natureza da sátira produzida nesse momento a partir dos pressupostos da teoria da ironia romântica. Trata-se da sátira concebida como uma estrutura enunciativa e formal que, valendo-se da contradição, da contrariedade, da ironia verbal, hipérbole, oximoro, quiasma, eufemismo, tautologia, antítese etc., pressupõe uma interpretação rebaixada dos idealismos e dos sublimes alheios, bem como daquele do próprio sujeito enunciador.

Essa teoria define um sistema enunciativo eminentemente contraditório que alcança a consciência narrante, a relação entre esta e suas personagens, o conjunto e as partes da obra, desestabilizando os sistemas filosóficos e artísticos em voga, bem como a doxa. A construção das teorias românticas do discurso literário irônico, desenvolvidas por Schlegel, Solger e Jean Paul Richter, leva em conta o jogo entre as três críticas de Kant, bem como a teoria da consciência efetivada por Fichte.

Tendo em vista a natureza teórica deste meu texto, o leitor pode ficar à vontade, caso queira, para ir direto aos outros estudos sobre a poesia e a narrativa dos escritores brasileiros, sem prejuízo de sua compreensão.

As Partes III, IV e V deste trabalho – dedicadas a poesias satíricas de Álvares de Azevedo, de Bernardo Guimarães e ao único romance de Manuel Antônio de Almeida – analisam a concepção de história, de nacionalismo e o pensamento artístico, ético e político que norteia a obra deles.

Nos capítulos 3 e 8 dedicados aos dois primeiros poetas, inicio essa discussão com uma leitura dois textos em prosa de, respectivamente Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, respectivamente Literatura e Civilização em Portugal e Reflexões Sobre a Literatura Brasileira, que podem evidenciar aqueles aspectos.

No interior de cada uma dessas duas primeiras partes, procuro analisar poemas de Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães que deixam evidente o exercício reflexivo e metarreflexivo da prática e dos discursos artísticos do tempo e da própria prática individual de cada um deles. Sátiras de vetor duplo, crítico e metacrítico, elas tomam por alvo gêneros, personagens, estilos, tópicas e temas candentes no contexto artístico de então, compreendidos por eles como lugares-comuns que poderiam, nessa óptica, abalar a conquista da originalidade individual e local.

Ainda nas Partes III e IV, analiso, em seus respectivos capítulos a estilização do ócio e da preguiça em Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães. Naquele momento de profunda modificação, na Europa, das relações e do modo de trabalho e, no Brasil, de debates sobre a urgência do fim da escravidão, o tema é recorrente ao longo do romantismo europeu, nas distintas partes e em um número considerável de poemas desses dois poetas, quer naqueles que priorizam o estilo grave, quer em outros em que o humor predomina.

Nessas obras, a abordagem poética do ócio parte de seu elogio e o distingue da preguiça tal como foi codificada pelo catolicismo. Mas nesses dois poetas, ocorre também uma operação semântica que leva o ócio a se transmutar em preguiça, associada ao efeito da recepção de traços recorrentes das práticas artísticas em voga. Em Álvares de Azevedo, o culto do ócio em alguns momentos contradiz outros de sua obra que tomam a sua abordagem como um bordão que deveria naufragar.

4.

Nos capítulos 4 e 6, da Parte III: Álvares de Azevedo, a discussão sobre seus poemas “Ideias Íntimas” e “Luar de Verão” procura evidenciar respectivamente seu exercício de reflexão sobre sua consciência poética e a derrisão do idílio romântico, de certa maneira implicada a uma crítica ao culto da natureza tropical.

Mas é em sua novela gótica, Noite na Taverna, tratada no capítulo 7, da Parte III, que melhor se evidencia sua reação contrária à ordem social e política herdada da Colônia, assim como suas inquietações em torno de um novo tipo de arte que pudesse expressar a queda dessa ordem como um processo em curso.

Em “A Heterogeneidade Cultural do Brasil. ‘Orgia dos Duendes’”, no capítulo 9, da Parte IV, proponho que, nesse poema, as notas de rodapé são partes integrantes e coagem com a significação do conjunto. Na polêmica travada com Gonçalves Dias, o poema concretiza uma interpretação da cultura brasileira que privilegia o sincretismo cultural e religioso.

Os textos da Parte Vanalisam as concepções vigentes em Memórias de um Sargento de Milícias acerca da cultura popular e a identificação que o narrador forja entre essa categoria e uma notável compreensão do “espírito” do brasileiro –, encarnado na figura de Leonardo Filho e nos nativos pobres e livres em geral. Lendo crônicas jornalísticas do autor, destaco aí a defesa da abolição e do regime republicano. A seção procura recuperar também a discussão, levada a cabo por sua fortuna crítica, sobre o posicionamento do narrador diante das contradições sociais de seu presente histórico.

A distribuição do estudo da obra desses escritores pelas partes distintas deste livro não pressupõe a compreensão de que haja qualquer tipo de evolução ou herança da sátira dos dois primeiros poetas no romance de Manuel Antônio de Almeida. Compreendo que essas três obras foram produzidas quase concomitantemente, não em diferentes fases.

A decisão por seguir essa ordem foi inicialmente aleatória; alguma ordenação haveria de existir. Porém, num segundo momento, a confirmação da decisão de manter a organização deste trabalho tal como está derivou da evidência de que, na primeira metade do século XIX, a poesia lírica e, de certa forma, o poema narrativo ganharam a preferência da maior parte da produção dos letrados.

A década de 1850 marca o início da ascensão do romance no Brasil como gênero predominante que, como se sabe, nele incorporou estratégias e procedimentos satíricos, invertendo a hierarquia que o concebia como gênero inferior à lírica, passando a lhe destinar um estilo médio. Obviamente que essa ascensão não teve em Manuel Antônio de Almeida o seu inaugurador, mas a sua forma romântica mais bem realizada de acordo com o gosto contemporâneo.

Notas

[i] Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções. Europa, 1789-1848.

[ii] Eric Hobsbawm, A Era do Capital. 1848-1875.

Referência

Cilaine Alves Cunha. Fragmentos de humor: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida. São Paulo, Edusp, 2025, 380 págs. [https://amzn.to/4mDAEp9]

*Cilaine Alves Cunha é professora de Literatura Brasileira na USP. Autora entre outros livros, de Estranhezas do século romântico: Gonçalves Dias, Sousândrade e Gonçalves de Magalhães (Edusp) [https://amzn.to/3GWN78m]

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