José do Vale e João Leonel: Privatização da logística das vacinas por Ricardo Barros precisa ser investigada pela CPI

Tempo de leitura: 7 min
Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, na CPI da Covid. Foto: Pedro França/Agência Senado

EX-MINISTRO DA SAÚDE DE MICHEL TEMER, RICARDO BARROS, PRIVATIZOU A LOGÍSTICA DAS VACINAS NO BRASIL

Por José do Vale Pinheiro Feitosa e João Leonel Estery*, especial para o Viomundo

Ao longo de 2021, certamente você viu reportagens ou sentiu na própria pele os efeitos do caos na logística do Ministério da Saúde, que prejudicou muito a distribuição das vacinas contra a covid-19 em todo o País.

Pois saiba que por trás desse desastre está a extinção da Central Nacional de Distribuição de Imunobiológicos (Cenadi), cujas atividades foram entregues à iniciativa privada.

Imunobiológicos é o termo técnico que nós usamos para as vacinas.

A Cenadi foi privatizada pelo ministro da Saúde no governo Michel Temer, o engenheiro Ricardo Barros, que a exterminou em dezembro de 2018.

Ricardo Barros, atual líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, entregou a logística das vacinas no Brasil a uma empresa sediada em São Paulo, a VTCLog, atualmente alvo da CPI da Pandemia no Senado.

Nós acompanhamos bem essa história desde 1997, quando assumimos funções na Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Eu, José do Vale, na coordenação de Vigilância Epidemiológica.

E, eu, João Leonel, na chefia da Cenadi.

Era o governo Fernando Henrique e o professor Adib Jatene, o ministro da Saúde.

Jatene nomeou Maria de Lourdes Maia, para chefiar o Programa Nacional de Imunização (PNI), e Cláudio Amaral, para comandar o Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi) da Funasa.

Resolvemos fazer este texto para alertar principalmente sobre dois pontos:

1) A privatização de uma instituição qualificada de distribuição e conservação de imunobiológicos pode ser apenas um biombo ideológico para esconder saques ao patrimônio do povo brasileiro, ignorando os impactos negativos sobre a capacidade do Estado garantir o direito à Saúde.

2) A importância de o povo brasileiro preservar suas conquistas, participar do seu controle social e ter consciência clara de que não pode embarcar em “aproveitadores” das dificuldades conjunturais para extrair vantagens e causando prejuízos a todos.

Outra questão que torna o tema Cenadi relevante são as falhas e suspeitas já descobertas pela CPI da Pandemia sobre as operações da empresa que ocupou o papel do órgão público de maneira privada.

HISTÓRIA DA CENADI

A Cenadi foi fundada em 1982.

Foi na época da abertura do regime militar e por decorrência da importância que os imunobiológicos de uso universal passaram a ter para a saúde pública.

A necessidade de coberturas vacinais em todas as regiões do país, como forma de controlar surtos e doenças: varíola, meningite, tuberculose, sarampo, poliomielite, tétano, coqueluche, gripe, etc.

Incialmente instalada no campus da Fiocruz, ficou lá até 1990, quando foi assumida pela Funasa.

A Cenadi era um órgão executivo do PNI, justamente o programa que traça as normas técnicas das vacinas a serem aplicadas nos brasileiros, adquire e determina quantidades, como e quando devem ser distribuídas por estados e municípios.

Em 1993, a Cenadi participou da capacitação de técnicos de 25 estados da federação sobre Rede de Frio, necessária ao transporte, conservação e aplicação das vacinas de qualidade.

Em 1994, ela foi transferida para um prédio do 14º Batalhão de Suprimento do Exército na cidade do Rio de Janeiro, onde existiu até dezembro de 2018, quando Ricardo Barros privatizou-a.

A Cenadi realizava tudo o que dizia respeito aos imunobiológicos:

* desembaraço alfandegário das remessas dos fornecedores privados;

*avaliação das condições de transporte;

* envio, em veículo próprio, de amostras de lotes das vacinas para o Instituto Nacional de Controle de Qualidade (INCQS), também no Rio de Janeiro, para realização dos testes necessários;

* guarda como fiel depositária de tais imunobiológicos até que, uma vez aprovados nos testes feitos pelo INCQS, eram distribuídos a todos os estados.

QUALIFICAÇÃO TÉCNICA DOS IMUNOBIOLÓGICOS

A principal característica dos imunobiológicos é a sua conservação em baixas temperaturas, padronizadas conforme especificações técnicas próprias.

Os imunobiológicos devem ser preservados desde o estoque até ao posto de vacinação.

A Cenadi, uma vez informada por fabricantes e normas do PNI sobre tais especificações, serviu como referência nacional para padronização técnica, capacitação e controle de qualidade da Rede de Frio no país inteiro.

Foram criados Manuais de Rede de Frio.

Na segunda edição, foi realizada uma avaliação da realidade da rede de frio para saber se, de fato, as normas e atitudes em relação a ela estavam sendo praticadas em todos os níveis, de modo a gerar um novo conhecimento que aproximasse mais a relação entre norma e execução dela segundo a realidade brasileira.

A padronização técnica da rede de frio era feita com técnicos e cientistas brasileiros, empresa públicas nacionais que produzem imunobiológicos (Biomanguinhos, TecPar, Vital Brasil, Butantan, FUNDES, FAP), tendo a cooperação da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial de Saúde (OMS) e de redes de frio de diversos países.

Havia, então, no país, uma gestão técnica da rede de frio de forma centralizada a partir das normas e padrões nacionais, desdobrado com a mesma qualidade para estados e municípios.

A gestão administrativa era realizada por cada ente federado e pelos respectivos municípios.

A logística de distribuição de vacinas estava estruturada num programa digital, para uso na rede de computadores próprios da administração pública, dos quais participavam o PNI, a Cenadi (na qualidade logística) e os estados pelos seus programas de imunizações estaduais.

COMO ERA O FLUXO DE DISTRIBUIÇÃO

O Estado Brasileiro era o verdadeiro gestor da qualidade da vacina aplicada na população em todo território.

Todos os estudos de doenças, população mais atingida, opções de prevenção por vacina segundo idade e situação de risco, tipos mais eficazes e doses necessárias das vacinas eram feitos pelo PNI.

Na prática, era um sistema de cooperação em rede envolvendo o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais e municipais de Saúde.

O PNI encaminhava para a Cenadi a programação das vacinas adquiridas juntos aos fornecedores, informando datas de recepção dos imunobiológicos que eram entregues pelos próprios fabricantes.

A Cenadi fazia a recepção e estocava tudo isso em câmaras frigoríficas sob rígido controle de temperatura e acesso.

O PNI, então, enviava a programação mensal de distribuição aos estados.

Essa programação era compartilhada com o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de Saúde e Cenadi, que era a responsável para enviar por via aérea as vacinas.

Aí, acontecia o único passo de natureza privada que era dado por uma empresa que prestava serviços de transporte para diversos insumos do Ministério da Saúde, inclusive dos imunobiológicos.

A embalagem e acondicionamento refrigerado, com os respectivos termômetros e relatórios de temperatura, eram feitos pela Cenadi, que informava à empresa transportadora para que o recebesse três a duas horas antes do voo.

As despesas aéreas eram realizadas pela empresa contratada.

A Cenadi informava, então, aos estados o voo e horário de chegada ao destino.

Os imunobiológicos eram entregues pela empresa contratada diretamente nos almoxarifados estaduais já devidamente alertados para a sua recepção.

Assim que os funcionários do estado recebiam os imunobiológicos nos almoxarifados centrais, a Cenadi era informada pelos sistemas sobre a data de recebimento, as condições das caixas térmicas e de temperatura.

Era um sistema de controle de qualidade em todo o território nacional, que hoje desconhecemos como hoje é realizado.

O pagamento da empresa contratada era feito mediante controle da Cenadi a partir de documentos idôneos de embarque nas aeronaves e recepção pelos estados, de modo que o setor de pagamentos do Ministério da Saúde executava a fratura conforme o relatório consolidado.

Há outro fator muito importante: a Cenadi foi criando uma rede de relacionamento nos estados e municípios, evoluindo pela orientação do interesse comum, a vacinação de qualidade, onde se firmaram princípios humanos que iam além do mero interesse de prestígio pessoal ou de vantagens econômicas.

EXTINÇÃO DA CENADI E PRIVATIZAÇÃO DE SUAS ATIVIDADES

Ricardo Barros foi nomeado ministro da Saúde por Michel Temer logo após o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.

De imediato, ele quebrou toda e qualquer relação com a chefia da Cenadi, que, na época, era exercida por mim, João Leonel.

Todos ministros que o antecederam tinham interesse no órgão e nos tratavam respeitosamente: Jatene, Carlos Albuquerque, José Serra, Barjas Negri, Humberto Costa, Saraiva Felipe, José Gomes Temporão, Alexandre Padilha e Marcelo Castro.

Já Ricardo Barros nunca teve o mínimo interesse em entender o papel da Cenadi.

Um belo dia, eu, João Leonel, com mais de 20 anos de trabalho na Cenadi, soube que estava exonerado pelo Diário Oficial.

Na época, a imprensa carioca ventilou a possibilidade da privatização e da transferência da logística para São Paulo.

Bingo.

A Cenadi foi extinta e suas atividades transferidas para a VTCLog, sediada em São Paulo, e que tem sido alvo de inúmeras denúncias na CPI da Pandemia.

Há suspeitas de superfaturamento, corrupção e contratos lesivos ao interesse público.

O mais importante: nós dois [José do Vale e João Leonel] sabemos que nossos papéis, por mais exitosos que tenham sido na gestão pública, são substituíveis politicamente.

Mas o que foi feito com os quadros técnicos da Cenadi é rigorosamente um dano ao conhecimento especializado. É criminoso.

Os técnicos foram dispensados, e a empresa não aproveitou ninguém.

Alguns foram para indústrias privadas e outros perderam a capacitação técnica e experiência na gestão de recursos estratégicos para a saúde.

O DANO AO DEVER COM A SAÚDE

Desconsiderando os dispêndios para aquisição de imunobiológicos, a operação logística global com a guarda e distribuição custava ao governo brasileiro em torno de R$ 92 milhões.

Desse valor, R$ 60 milhões eram custos com a empresa transportadora e R$ 32 milhões para manutenção da Cenadi.

Mesmo com um ministro especializado em logística — era o caso do general Eduardo Pazuello –, soubemos pela grande mídia de problemas na distribuição das vacinas para campanha de vacinação contra covid-19.

E tais problemas foram decorrentes da atividade privada da distribuição de imunobiológicos.

Atualmente, não temos acesso a dados precisos sobre o quanto o Estado dispensa em recursos financeiros com a VTCLog.

Reportagens e falas CPI da Pandemia relatam que os custos da operação de logística da distribuição de imunobiológicos chegariam a aproximadamente R$1,5 bilhão por três anos.

Se for verdade, um salto gigantesco, se comparados com os custos praticados pela extinta Cenadi.

Por isso, é um ponto que precisa ser devidamente apurado pela CPI da Pandemia.

De qualquer modo, mesmo desconhecendo a atual realidade financeira do contrato com a VTCLog, é fundamental o Estado ter autonomia em relação às empresas prestadoras. Precisa também possuir mecanismos de participação social e legal, que inibam a captura de suas atividades por qualquer tipo de aventureiro.

Quando examinamos os grandes países do BRICS, China, Rússia e Índia, assim como os grandes países da Europa Ocidental e até mesmo os Estados Unidos da América, vemos que possuem mecanismos de controle estatal de modo a transformar em bem comum do seu povo o que produz.

Existem mecanismos estatais que inibem as oportunidades de usurpação da vontade popular e de seu patrimônio. E nós precisamos colocá-los em prática. 

*José do Vale Pinheiro Feitosa e João Leonel Estery são médicos sanitaristas


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Comentários

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Zé Maria

A CPI da Pandemia de COVID-19 no Senado detém
uma série de Documentos Probatórios que podem
indiciar os suspeitos de Corrupção na área logística
dentro do Ministério da Saúde, desde a Privatização
da CENADI até os Contratos com a VTCLog.
Aliás, na terça-feira (04/10) na Sessão da CPI COVID
foi revelado pelo Relator que de 2016 a 2018 houve
8 Contratos firmados pelo Ministério da Saúde com
a Empresa VTCLog, Sem Licitação, que totalizaram
o valor de R$ 335,4 Milhões. Na ocasião, o ministro
da Saúde era o Deputado Ricardo Barros (PP-PR),
atual Líder do Governo Bolsonaro na Câmara, que
já é investigado na CPI.

https://domtotal.com/noticia/1543324/2021/10/contratos-sem-licitacao-da-vtclog-com-o-ministerio-da-saude-superam-r-330-milhoes/

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