Urariano Mota: Cheque em branco, Millôr e o barato do cassino do Chacrinha

Tempo de leitura: 2 min

Millor

chacrinha

por Urariano Mota

Ontem, na tevê passavam ao mesmo tempo Lili Marlene e um documentário sobre Chacrinha.

Eu tinha interesse nos dois, apesar de já ter visto Lili Marlene no cinema. É de Fassbinder.

Mas eu estava (ainda estou) sob o impacto de “É isto um homem?”, de Primo Levi, e senti perder o entusiasmo pelo bom filme de Fassbinder, que me pareceu ontem à noite como uma versão da má consciência diante do nazismo.

Como uma remissão de um crime feita por um privilegiado, de um patriota arrependido.

Então fui pro Chacrinha. Não me arrependo. O documentário é um hit parade da angústia dos marginalizados na ditadura.

Um desfile debochado, baixo, do mundo da feira da carne humana. Chega  a ser cruel e brutal, insensível, quando casa as imagens das jovens dançarinas no Cassino do Chacrinha com as das presentes das chacretes. O documentário chega à finura de um escarro ao exigir que as senhoras sessentonas ponham biquínis e se rebolem cantando o som do programa dos anos 60 e 70.

Tem um momento cômico, quando Aguinaldo Timóteo fala que João Gilberto não tem voz, não sabe cantar, é feio e de cara amarrada, como pode se perfeito?

Mas no ponto culminante, na entrevista com uma chacrete, ela conta que recusou “cheque em branco” pra um encontro com um ricaço. Ela é evangélica agora, mas comenta: “se fosse hoje…”.

Então hoje de manhã, no café, lembrei à minha mulher um caso semelhante ocorrido com Millôr. Na época do Pasquim, Roberto Marinho convidou Millôr para a Globo, e lhe enviou o famoso “cheque em branco”. Que faz Millôr? Tira uma foto do cheque assinado por Marinho e publica nas páginas de O Pasquim. Com a legenda:  “A minha prostituição não vale tão pouco”.

Genial. Mas muitos anos depois Millôr foi trabalhar para a Veja, enquanto chamava Lula de analfabeto. Não, não é o caso de lembrar a tirada de Billy Wilder em Quanto Mais Quente Melhor, de que “ninguém é perfeito”. Não foi bem por dinheiro.

Não foi isso, amigos. Foi a idade, é a idade  que exige pagamento de pedágio. Poucos, poucos e raros, seguem a dignidade na velhice, como Niemeyer, Tolstói, o Barão de Itararé, Graciliano Ramos ou Sobral Pinto.

É a idade. “É a cabeça, irmão”, cantava Silvio Brito. Abelardo Barbosa, é um barato o cassino do Chacrinha. Ô Terezinha, ô Terezinha….

PS do Viomundo: Millôr Fernandes faleceu em 27 de março de 2012, no Rio de Janeiro. Ele havia iniciado ação contra a Editora Abril, pois a Veja, sem sua autorização,incluiu as suas obras no acervo digital da revista.  Millôr queria impedir a reprodução. No mesmo ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou improcedente a ação indenizatória pleiteada por Millôr, depois por seu espólio.

 Leia também:

Emanuel Cancella: Que tal iniciarmos movimento  contra a sonegação fiscal da Globo?


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Comentários

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sergio ribeiro

Várias pessoas pessoas chamavam Lula de analfabeto; Paulo Francis chegou a dizer que se Lula fosse presidente, o Brasil viraria o Sudão.
Como se vê, se enganaram redondamente.

Nelson

Também acho que o Millôr acabou degringolando em sua decrepitude.

Porém, o que ele fez antes desse período é coisa para poucos, de gênio, mesmo.

Lembro de uma entrevista em que perguntaram a ele o motivo de sua saída da Istoé. Genial, Millôr respondeu:

“Já estava na hora de o navio abandonar os ratos”

Marat

Rapaz… que texto… estonteante… fantástico!!!
A do cheque em branco do (racional) Millôr foi um direto (de esquerda!)

    JC

    E fulminante, Marat!

Rodrigo

Para alguns basta criticar Lula e a pessoa já se transforma automaticamente num pária.

Se Jesus voltasse a terra e dissesse que Lula não é lá essas coisas provavelmente seria crucificado novamente por alguns militantes cegos que não conseguem engolir opiniões contrárias as suas.

ana s.

“É a cabeça, irmão” não seria daquela canção de Walter Franco?

98% do que li de Millôr foi na Veja, a antiga Veja. Não me lembro de Millôr brilhar no Pasquim como brilhava naquelas duas páginas semanais geniais da Veja. Quando ele estava no fim da vida, li algumas coisas dele em jornais e não percebi mais o antigo brilho. Não sabia, entretanto, que ele tinha voltado à Veja, já então na sua fase esgoto. É fato?

    José Roberto

    Vale a pena (e muito) vc procurar edições de O Pasquim, talvez na Biblioteca Nacional. Mas o Millôr tem vários livros, todos geniais, alguns de frases, outros de texto de teatro. Destaco como dos mais divertido ” O Livro Vermelho doa Pensamentos do Millôr.

    Rossi

    Não só o melhor do Millôr estava no Pasquim, como também o do Francis, do Ziraldo, do Henfil, do Lessa, do Fausto Wolf….na verdade, o melhor do que toda a nossa imprensa produziu até hoje foi no revolucionário(epa!)e velho Pasca.

paulo roberto

Para alguns a idade traz sabedoria, para outros, apenas a decadência…

    Nat

    Falou tudo! Vide alguns exemplos de “décadence sans élégance”: Zé Ramalho, Ney Matogrosso. Caetano Veloso, Roger Moreira, Lobão, Faustão, Jô Soares…se bem que o Jô merece um credito, depois que levou um “susto” da vida, anda correndo atrás da dignidade perdida há anos, lá na Globo. Sempre é tempo, né Jô?

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