Urariano Mota: 12 Anos de Escravidão e o Brasil

Tempo de leitura: 3 min

por Urariano Mota, em Direto da Redação

Recife (PE) – Mais de um crítico já observou que o filme 12 Anos de Escravidão,  para historiadores norte-americanos, delimita um marco no conhecimento da escravidão. Falemos agora do que esse filme representa para os brasileiros.

Na última sexta-feira, na fila do cinema aonde fui, não havia um só negro. Minto: havia só este mulato que agora escreve. Ao procurar outro na fila, recebi dos cidadãos de pele mais clara uns olhos envergonhados, que se baixavam até o chão. Tão Brasil. Tão brasileiro é o pudor educado para o que não se enfrenta. Mas o filme na tela nos pagaria. Lá, podemos ver o retrato da casa-grande: a indiferença de todos ante a tortura. Linda, a sinhá olha da varanda o negro ser torturado e nada vê, melhor, assiste ao espetáculo obsceno como uma liberalidade do senhor, o seu marido. Que aula. É um filme quase didático da infâmia, do que no Brasil está encoberto até hoje.

Para a nossa própria história, a do Nordeste do açúcar em especial, para o que não se destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade no filme mostra um escravo na forca, pendurado por horas em uma árvore, enquanto a rotina da fazenda segue sem distúrbio, sem assaltos de horror ou de repulsa. Mas isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, na sua,  jovens são amarrados em postes, os velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento.

Se houvesse uma só imagem a destacar, eu destacaria a tortura de uma escrava sob o chicote. Por um lado, lembrei o comportamento da sobrevivência sob os torturadores na ditadura brasileira.  Por outro, se fosse desenvolvida ao nível do real, do histórico, a cena daria vômitos pela agonia da dor, apesar de apenas representada. Porque a realidade é ainda mais cruel que o mostrado na tela. E os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidos por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi.

Poupemos o domingo. Mas de passagem menciono que  negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes da fazenda. Eles não tinham a marca do dono por uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon no filme.

É estranho, é sintomático da crueldade brasileira, que os melhores relatos sobre a nossa escravidão (nossa aí em mais de um sentido, de falta de espírito liberto e de herança cultural) venham de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife.

De Vauthier cito:

Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas contá-las… Que mulher! Que alma!… Hoje o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente.

Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em civilização”.

Saímos do cinema com uma frase do personagem na memória:  “Eu sou a prova de que não existe justiça na terra”. Brancos, negros e mestiços de todas as cores bem compreendemos.

Enquanto os miseráveis continuarem a ser presuntos, presidiários, enquanto não for vista a pele mais negra no topo da sociedade, em um papel que não seja o de capitão-do-mato, como Joaquim Barbosa, não existe justiça no Brasil. Mas podíamos começar pela conhecimento real da nossa história.

É necessário que esse filme se prolongue em artigos e discussões entre os brasileiros. Ele é o vislumbre do que temos sepultado. Vejam o filme e releiam a história escura, oculta da escravidão. O filme é melhor do que os livros de sociologia escritos no Brasil até hoje.

 Leia também:

Fátima Oliveira: Brasil tem compromisso muito baixo em dar fim ao racismo


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Urbano

O revoltante é que ainda existam muitas vítimas do racismo que apoiam os seus algozes, sendo que uma boa parte chega mesmo a fazer os serviços sujos deles…

Zé Ninguém

Urariano, lutamos muito para ter um presidente que brotou do seio dos “humildes”, metalúrgico, nordestino e pobre. Não cumpriu o que me prometeu em seus comícios que comecei a assistir desde os idos anos 70.

Agora, com certeza não tenho mais forças para ajudar na tua luta: “Enquanto os miseráveis…enquanto não for vista a pele mais negra no topo da sociedade… não existe justiça no Brasil.” Mas rogo que concentre todos os seus esforços para esse fim, pois para muitos de nós só a experiência pessoal é real, tudo a nossa volta é fantasia. Um presidente negro comandando a fúria devastadora dos EUA é apenas um sonho. Um ser do gênero feminino se esforçando arduamente para manter o pais da 6º economia, campeão de concentração de renda não nos convence que o problema não é a ausência de mulheres em postos de poder, mas sim o uso disfuncional do poder.

Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detêm o poder, quando não o conferes a importantes mal-intencionados, mais poder ainda para te representarem.
E só demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais.
Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que faz de ti «membro do povo». Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas. Ouvi então os
teus prantos e lamúrias, ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te:
És o «homem médio», o «homem comum». Repara bem no significado destas palavras: «médio» e «comum». Não fujas. Tem ânimo e contempla-te. «Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?» Leio esta pergunta nos teus olhos amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém. Dizes: «Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir da minha própria vida e ter o mundo por meu?» E tens razão: Quem és tu para reclamar direitos sobre a tua vida?

Isidoro Guedes

Enganam-se os que acham que as marcas da escravidão estão superadas no Brasil. O racismo aberto de certos círculos elitistas ou o preconceito velado e envergonhado dos que temem expor seu racismo mais diretamente, estão aí para confirmar o que dizemos.
Mas isso fica patente quando olhamos para a sociedade real e vemos que nos presídios a esmagadora maioria é formada por negros e mulatos. Negros e mulatos também compõem o nosso mosaico de analfabetismo (clássico e funcional), de evasão escolar, de desemprego e subemprego, de baixos salários…
São essas populações as maiores vítimas de um sistema de Saúde ainda muito deficiente (apesar de sensíveis avanços dos últimos anos). De uma Educação que não atende suas expectativas (além de não valorizar professores e não incentivar a dialogicidade entre escola-família-sociedade). Todo o resto, a baixa escolaridade que reforça a falta de oportunidades, o desemprego, o subemprego e os baixos salários vem por acréscimo.
Não custa nada lembrar o grande antropólogo e educador Darcy Ribeiro, para quem negros, mestiços e indígenas sempre foram tratados como uma espécie de carvão nesse “moinho de gastar gente” que ainda é o Brasil. Um carvão que se usa e joga fora quando não mais serve…
Muitas décadas e séculos ainda serão necessários para que as diferenças de pele no país não signifiquem diferença de tratamento, diferença de oportunidades, má vontade ou preconceito…
Afinal nossas marcas culturais do racismo e do preconceito não se desfarão apenas com belas palavras ou belas intenções… Elas estão entranhadas ainda no nosso inconsciente coletivo… E isso demanda muito tempo e muitas ações e políticas afirmativas para se superar…
Entretanto, se olharmos para trás, podemos observar que comparativamente com décadas recentes, estamos no rumo certo… A cultura negra está se afirmando… E o racismo e preconceito tem perdido cada vez mais espaço…
Mas essa não é uma luta qualquer, e todos sabemos que essa luta só será vencida se nós mesmos nos despojarmos de preconceitos e ódios que foram construídos e afirmados em nós. Sem isso nada mudará… Sem isso nada se fará…

Leonardo M. G.

“Quando leio sobre essas coisas que os negros fazem nos Estados Unidos fico arrepiado. Graças a Deus o negro aqui conhece seu lugar.”
“Estás virando racista agora, Tibé?”
“Qual nada! Eu conheço minha negrada. Eu me criei no meio deles, eles me adoram e eu adoro eles!”

Diálogo (é de cabeça, pessoal então é impreciso) que mostra como era a elite escravocrata no interior do RS. Escrito magistralmente por Luís Fernando Veríssimo em “Incidente em Antares”, sua obra mais política, com uma pitadinha de realismo fantástico. Recomendo!

anac

“os negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidos por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi.”

A Casagrande continua torturando.

FrancoAtirador

.
.
A afro-latina LUPITA AMONDI NYONG’O, nascida no México,
ganhou o prêmio Óscar de Melhor Atriz Coadjuvante,
o vigésimo sexto entre premiações nacionais e internacionais,
pela magnífica interpretação em ’12 Anos de Escravidão’.

SIMPLESMENTE E ADMIRAVELMENTE MARAVILHOSA

http://superselected.com/lupita-nyongo-wins-the-oscar-for-best-supporting-actress-watch-her-acceptance-speech/#more-12176

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Lupita_Nyong'o)
.
.

Francisco

Fico assombrado de cada ministério não ter recursos para financiar filmes através de editais públicos.

Há a Secretaria da Mulher, do Negro, Direitos Humanos… Horror não é ver a barbárie feita nos EEUU. Horror é não ver a nossa, pela nossa lente.

Já repararam que até hoje não tivemos uma descrição sistemática de tortura no regime militar? Do papel que o estupro de jovens estudantes desempenhou no “combate ao comunismo”?

Já reparou que ninguém sabe das oligarquias brasileiras, quantas delas tiveram a origem da fortuna na escravidão. Que nunca tivemos um posicionamento claro delas quanto à segregação?

No governo da Bahia, dois ou três negros no secretariado, em posição de destaque, a massa, na faxina e na portaria…

Danilo Morais

O texto é quase todo muito bom. Mas para exaltar o didatismo de “12 anos de escravidão”, que pode ajudar a desnudar melhor entre nós a brutalidade da escravização da população de origem africana, não precisava dizer que o filme é “melhor que a sociologia”. Certamente é melhor que Freyre, mas é melhor que CLovis Moura, Florestan Fernandes, Guerreiro Ramos, Nelson do Vale e Silva, no sentido de deixar à luz do dia a manutenção da desigualdade racial ou a resistência negra contra a escravização no Brasil? Certamente o filme pode ser um instrumento muito apropriado para começar uma conversa sobre o tema, mas o que ocorre muitas vezes com filmes sobre o período de escravidão formal (daqui ou dos EUA) é as pessoas (usualmente brancas, sem dúvida) dizerem: “Ah, como era cruel esta época…”; sem se dar conta que, de maneira atualizada ainda hoje a brutalidade se reveste de legalidade em nossas prisões, nos empregos precários, na discriminação cotidiana contra a população negra. E nisso certamente uma sociologia crítica – que os autores que citei fizeram – é muito melhor que o filme.

    anac

    Nisso o texto pecou. No mundo hoje quase inteiramente audiovisual em que poucos têm o habito da leitura, o didatismo do filme está no fato de que para alguns a imagem as vezes fala mais do que mil palavras.

doutor natas

minas e manos,
o chato de tudo isso eh que com “prata da casa” conseguiriamos muito mais efeito. bastaria fazer um filme sobre a vida de luiz gama. o diabo eh que como somos abolicionistas desde 1500, para que revolver o nosso passado? melhor discutir o longuinquo mississipi ou seja la onde for para ficar com a impressao de que lah longe sempre foi pior…

lukas

12 Anos de Escravidão é A Escrava Isaura americano. Se no livro brasileiro o”problema” era que Isaura tinha a pele branca, no filme estadunidense o “problema” era que ele era livre e foi escravizado.

Não fosse Isaura branca e não fosse ele um escravo liberto, não haveria “problema”.

Tanto o livro quanto o filme seriam mais contundentes se os personagens fossem escravos “comuns”.

José Souza

Se o filme fosse brasileiro não chegaria à lista dos indicados ao Oscar. Em termos de Brasil, o Porto do Valongo, no Rio de Janeiro, recebeu mais de um milhão de negros africanos. Quantas histórias poderiam ser contadas a partir desse fato. O cinema brasileiro deveria contar algumas delas.

    abolicionista

    Excelente comentário. Assino embaixo.

Alexandre Tambelli

Um dado interessante sobre 12 Anos de Escravidão.

É a primeira vez na História do Oscar que um Diretor negro ganha o prêmio de melhor FILME.

Britânico Steve McQueen, de 44 anos, que dirigiu apenas 3 filmes de longa-metragem.

    claudia

    Pois ele deveria ter recebido o prêmio de melhor diretor também. Incoerência premiar 12 anos de escravidão como melhor filme, porém o melhor direto Alfonso Cuarón por Gravity. Assisti nesse final de semana gravity. Em duas partes pq dormi durante o filme. Chato demais. O prêmio de melhor filme é amplo.Premia, principalmente, os produtores! Não é de natureza pessoal como o premio de melhor diretor. Steve Mcqueen merecia ser premiado individualmente por seu trabalho como melhor diretor!

Deixe seu comentário

Leia também