Patrick Mariano: Aos ricos, benesses, aos pobres, rigor da lei

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José Rainha Júnior

Aos pobres, o rigor da lei

por Patrick Mariano, especial para o Viomundo

O capixaba José Rainha Júnior foi condenado pela 5ª Vara da Justiça Federal de Presidente Prudente a 31 anos de prisão por formação de quadrilha e extorsão.

Conhecido como Zé Rainha, é o líder popular e ativista social mais perseguido da história recente do Brasil. Responde a centenas de inquéritos, processos e já foi vítima de inúmeras prisões preventivas e condenações em vários estados do país.

Para parte do ministério público e do poder judiciário brasileiro, um criminoso. Para a história, uma das grandes lideranças dos trabalhadores rurais dos últimos 25 anos. Zé Rainha tem como frase sempre utilizada em seus discursos o título que ilustra esse artigo. Aos ricos, as benesses, aos pobres o rigor da lei.  É uma adaptação, com acréscimo da questão de classe, da frase atribuída a Arthur Bernardes e Getúlio Vargas.

A afirmação é de uma precisão cirúrgica e, no caso de José Rainha, quase autobiográfica. Pude acompanhar ainda estudante de Direito e depois como seu advogado, muitos desses processos e, em todos eles, é claro o recorte de classe e o uso do direito para refrear a própria luta pela reforma agrária. O objetivo claro dessas ações judiciais é político e fruto da incompreensão dos atores jurídicos quanto à Constituição da República e quanto própria realidade social do país.

Zé Rainha começou sua militância nas comunidades eclesiais de base no Espírito Santo e foi um dos fundadores do MST em muitos estados do nordeste, onde teve atuação destacada. Depois foi para o Pontal do Paranapanema, interior de São Paulo, onde contribuiu para o assentamento de mais de 6 mil famílias sem terra e para sua posterior organização produtiva.

Sua militância política rendeu-lhe muitos prêmios internacionais e reconhecimento por parte de intelectuais e figuras públicas em todo o mundo. No ano de 2000, ao final de processo judicial cheio de falhas e inconsistências, foi absolvido pelo Tribunal do Júri de Vitória/ES. Na sua defesa estava o advogado Evandro Lins e Silva, atendendo ao pedido do prêmio Nobel de literatura, José Saramago e de sua companheira Pilar Del Río.

De família muito pobre, não teve tempo nem condições para concluir os estudos. A lida da roça completou sua rotina antes de qualquer coisa. Foi através da participação nas reuniões das Comunidades Eclesiais, do Sindicato e do MST que despertou a consciência de classe e a partir daí, direcionou sua indignação contra as mazelas sociais que sofreu na pele. É um autodidata que supre a falta de estudos com uma genialidade e astúcia política impressionante.

Outro autodidata e filho de pobres camponeses foi José Saramago. Nascido em Azinhaga do Ribatejo, freguesia portuguesa do concelho da Golegã, escreveu um livro belíssimo chamado Levantado do Chão, em que narra a trajetória dos Mau-Tempo, família de lavradores do Alentejo, do início do século XX até a década de 1970.

A história contada por Saramago poderia ser a de milhões de camponeses sem terra brasileiros que campeiam país afora em busca da dignidade uma vida menos severina. Poderia ser a do próprio José Rainha e, talvez daí a ação política de solidariedade em sua defesa.

A insistência na ação de criminalizar a luta pela terra vai contra a remansosa jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros. Em julgamento do habeas corpus nº 27.856, oriundo do Pontal do Paranapanema, o ministro do STJ, Paulo Medina, fez constar em seu acórdão que os integrantes do MST que estavam presos:

“são obreiros rurais integrantes do MST, que lutam e sacrificam-se por mais razoável meio de vida, onde a dignidade social somente pode ser restaurada no momento em que se fizer a verdadeira, necessária e indispensável reforma agrária no País”.

Segundo o ministro, “enquanto campear a incerteza de seus resultados e for incerta a atuação política, encontrar-se-á a revolta justa e a insatisfação crescente dos menos favorecidos nos contextos econômico, social e político do Brasil”.

Outro acórdão paradigmático do Superior Tribunal de Justiça é o do ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (HC 5574/SP):

“Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático”.

Se os tribunais superiores repudiam a criminalização dos movimentos sociais, por que se insiste nesta tese? É que a propriedade privada é um dogma sacrossanto do capitalismo e, mesmo tendo a Constituição de 1988, expressamente, estabelecido os seus limites em uma sociedade democrática, muitos juízes e promotores não conseguem se desvencilhar de evidente conteúdo de classe ao julgar processos em que figuram como parte, integrantes de movimentos sociais que questionam a absurda distribuição da terra no Brasil.

Calamandrei [1] já nos alertava sobre as dificuldades de certos magistrados de afastarem-se de seus preconceitos quando no exercício da magistratura:

“De um juiz que, por herança paterna, era proprietário de terras, dizia o presidente do seu tribunal: raras vezes encontrei um magistrado da sua seriedade e do seu equilíbrio. Convém apenas evitar confiar-lhe a decisão de controvérsias agrárias, porque esta matéria o faz perder o brilho dos olhos e o torna feroz contra os camponeses.”

Criminalizar a luta pela reforma agrária e de pobres camponeses não é novidade ao longo da história. Foi ao se indignar contra uma Lei de 1842 que tornava crime a extração gravetos e madeira (utilizados para proteção do frio) e fazia ladrões da noite para o dia os pobres camponeses da Renânia que surgiu, nas palavras de Gramsci “a entrada da inteligência na história da humanidade”. Karl Marx despertou seu olhar para a injustiça social, após esse episódio.

Em 24 de março do ano de 1886, na província italiana de Mântua, região cortada pelo rio Pó, o advogado e professor Enrico Ferri [2] defendeu 22 camponeses sem terra que foram presos por reivindicarem melhoria das condições de vida no campo. Pesava sobre eles a acusação de formação de bando e quadrilha, atentado e conspiração por terem incitado outros trabalhadores a um protesto político contra o injusto sistema fundiário italiano.

Passados mais de um século, o célebre processo movido contra os sem terra de Mântua, encontra paralelo histórico interessantíssimo com a realidade de milhares de sem terra espalhados em acampamentos pelo país:

“Algumas testemunhas nos falaram da fome que dilacera o camponês, ao mesmo tempo que o rigor invernal do frio tortura-lhe os membros exangues, e elas nos falaram do alimento que o desespero os impele a buscar entre as raízes dos bosques, para enganar, ao menos, o estômago vazio. Vistes essas prugnes, que os porcos recusam e que os camponeses comem … as casas de moradia … uma única peça térrea, úmida, com paredes de tijolo cru, serve de habitação promíscua aos membros da família: em certas regiões de Ostiglia, vêem-se casas cobertas de juncos, com paredes também de junco, rebocadas de barro”.

A nova condenação de José Rainha é uma vergonha não só para o Poder Judiciário quanto para o próprio país. Demonstra a insensibilidade de um poder que ainda não se formatou a democracia. É um poder ainda fechado, praticamente impermeável às demandas sociais de um Brasil que infelizmente não ultrapassou a herança escravocrata da desigual distribuição da terra.

A frase que tanto ouvi ser pronunciada em discursos em cima de caminhões e em assembleias acampamentos a fora não só parece ser autobiográfica, como premonitória. Parece ser a crônica de um destino anunciado.

A reforma agrária, tão necessária quanto postergada ainda não veio e sobra, para quem se insurge contra o vergonhoso quadro social, o processo e o cárcere.

Para terminar, retiro do prefácio de Terra, livro/CD do fotógrafo Sebastião Salgado, Saramago e Chico Buarque, algumas palavras:

“Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende”. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece.” E Deus: “Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.”

Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas”.

[1] CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, Visto por um Advogado, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997, pp. 245/246.

[2]  FERRI, Enrico. Defesas Penais e Estudos de Jurisprudência, Editora Bookseller, p. 73, 2002.

Patrick Mariano é advogado, doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP,

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Comentários

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Urbano

O pior é que a burrice, até porque não se precisa ser um gênio para perceber, embota situações e mais situações que campeiam desde sempre no Brasil. Imagine-se o que há de grileiros assassinos e escravagistas aos montes por esse Brasil afora, totalmente leves e soltos e ainda por cima a posar de latifundiário correto e honrado…

O Mar da Silva

Abandonado por todos que poderia apoiá-lo, o MST segue como o mais importante e necessário movimento social brasileiro. Não é fácil ser essencial no Brasil.

Toda solidariedade ao José Rainha Jr.

Enquanto isso, seguimos observando e combatendo os novos cruzados – tucanos, pigais e evangélicos – e sua agenda adoradora do atraso.

    Roberto Locatelli

    Assino embaixo! O MST é o mais importante – e por isso o mais perseguido – movimento social do Brasil.

Luiz

Admiro a coragem desse advogado em escrever sobre Rainha. A mídia faz parecer que o MST é um movimento violento e cruel, apenas. A frase ” o judiciário é um poder ainda fechado, praticamente impermeável às demandas sociais de um Brasil que infelizmente não ultrapassou a herança escravocrata da desigual distribuição da terra” diz tudo.

Francisco

O Aécio vai visitar ele no presidio…

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