Patrick Mariano: Quando Jean Wyllys ou Ivan Valente se aproximam de Bolsonaro

Tempo de leitura: 7 min

tavoras-2010-09-03

Sobre o processo dos Távoras, leis penais e a “esquerda”

por Patrick Mariano, especial para o Viomundo

Muitas das centenas de turistas que todos os dias se dirigem ao bairro de Belém para comer os famosos pasteizinhos com canela e a fim de visitar o padrão dos descobrimentos e o monumental Mosteiro dos Jerônimos sequer se dá conta de que num beco escondido, praticamente do lado de onde se come o pastel, há um monumento discreto e quase consumido por construções. Discreto e desapercebido, porém significativo da história de Portugal.

O Beco do Chão Salgado é marcado por um obelisco em pedra e, em sua base, os seguintes dizeres:

“Aqui foram arrasadas e salgadas as casas de José de Mascarenhas, exautorado das honras de Duque de Aveiro e outras condemnado por sentença proferida na Suprema Juncta de Inconfidência em 12 de janeiro de 1759. Justiçado como um dos chefes do bárbaro e execrando desacato que na noite de 3 de setembro de 1758 se havia cometido contra a real e sagrada pessoa de D. José I. Neste terreno infame se não poderá edificar em tempo algum”.

O Duque de Aveiro e a família dos Távoras, representantes profundos da nobreza de Portugal da época, foram torturados por dias e envolvidos em processo forjado pelo Marques de Pombal para dar-lhes cabo.

Algumas centenas de metros de onde se come o pastel, na praça Afonso de Albuquerque, foi realizada a dantesca execução dessas famílias – cuja ilustração acima consta do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa – com requintes de extrema crueldade. Depois, foram os corpos queimados e as cinzas jogadas ao Tejo.

O pano de fundo do processo é a disputa política entre a visão iluminista de Sebastião José Carvalho e Melo (Marquês de Pombal) e a resistência da velha nobreza aos novos ventos de mudança.

Para criar algum tipo de envolvimento dos Távoras no crime de atentado à vida do rei, muitas torturas foram cometidas e até um decreto régio foi editado para conferir título de nobreza a quem desse qualquer informação sobre o acontecido.

A literatura é farta sobre este processo e vale a curiosidade em aprofundar, mas a premiação a quem desse qualquer informação, ainda que falsa sobre o acontecido, é um dos pontos que liga aquele sistema de julgamento ao nosso processo penal dos dias de hoje.

Séculos se passaram desde o tortuoso processo, mas a delação premiada esta aí em nossos textos normativos a evocar a degradação do nosso sistema processual e, por consequência a da nossa própria sociedade.

Dirão os entusiastas que ela contribui para a busca da verdade. Mas, qual verdade? A verdade do quadro mental paranoico do juiz, que bem nos diz Franco Cordero e Jacinto Coutinho? A imposição da prisão preventiva sem justificativa legal por meses para forçar que o acusado faça a delação premiada nos coloca em um patamar de ofensa à dignidade humana que uma vez transposto, não se tem volta.

A situação de parte da burguesia nacional aprisionada em Curitiba faz render aplausos da imprensa e até mesmo de parcela da população. Ricos estão na cadeia é o que se ouve. O sistema penal então, feito para os pobres, finalmente atinge os ricos. Ledo engano.

Zaffaroni espanca essa possibilidade:

“Sim. O rico, às vezes, vai para a cadeia também. Isso acontece quando ele se confronta com outro rico, e perde a briga. Tiram a cobertura dele. É uma briga entre piratas. Nesse caso, o sistema usa o rico que perdeu. E, excepcionalmente, o derrotado acaba na cadeia. Mas ter um VIP na prisão é usado pela mídia para comprovar que o sistema penal é igualitário. É a contra-cara do self-made man”.

A “eficiência” das técnicas de investigação que as alterações legislativas mais recentes trouxeram ao sistema será estendida a outros crimes e, depois, mais e mais. Não obstante o notório fracasso da Lei dos Crimes Hediondos, acabamos recentemente por ampliá-la e, novamente, sob os aplausos dos incautos. Ou seja, a sanha punitiva seduz irremediavelmente e quem pagará essa conta serão os de sempre: os mais pobres.

Ao invés de ampliarmos as garantias individuais ou mesmo lutar por sua efetividade, estamos por sobrepujá-las, nos reduzindo cada vez mais aos poderes do estado.

A ampliação do estado policial no atual estado das coisas se apresenta como um caminho só de ida. Até mesmo o PSOL , partido que se tem mostrado como defensor das liberdades individuais e da pauta de direitos humanos apresentou sua solução legislativa para a corrupção e, dentre os projetos apresentados pelos parlamentares Jean Wyllys, Ivan Valente e Chico Alencar está um que é notável como simbologia de uma esquerda que, se por inocência ou estupidez, acaba por reforçar o estado policial.

O PL 315/2015 torna crime o enriquecimento ilícito. Na justificativa do projeto se lê:

“O texto acima proposto reflete a posição adotada por juristas responsáveis pela reforma do Código Penal em Comissão instituída no âmbito do Senado Federal”.

Ora, a proposta de reforma de penal apresentada no Senado é criticada por 10 entre 10 pesquisadores sérios do direito penal pelo seu conteúdo altamente punitivista, atentatório à dignidade da pessoa humana, violador das técnicas mínimas da ciência penal e capaz de tornar ainda mais trágico o sistema carcerário brasileiro.

Basta ler ou assistir as palestras dos professores Nilo Batista, Juarez Tavares e Juarez Cirino, os três maiores juristas penais do nosso tempo, para saber que este projeto de novo Código Penal é um terrível e perigoso regresso à barbárie.

A proposta dos parlamentares torna crime de 2 a 5 anos de reclusão a conduta de ter patrimônio incompatível com a renda. Ou seja, há aqui uma perigosa inversão do ônus da prova, sendo que é o acusado quem terá que provar que aquele bem é compatível com o quanto ganha. Nada mais torpe, constitucionalmente falando.

Não perderei tempo a espancar a estultice da proposta legislativa, basta a preocupante afinidade de pensamento entre três parlamentares (que respeito e admiro), com a proposta de novo Código Penal.

Repito, não sei por estupidez ou inocência (quero crer na última hipótese), não percebem eles que ao optar por essa via punitiva vão ao encontro do pensamento ideológico de Bolsonaro ou de Demóstenes Torres (de triste lembrança). Ou seja, é cada vez mais tênue, infelizmente, a distância ideológica no que tange a questões penais entre o parlamentar do Rio de Janeiro e parte da esquerda.

Por evidente, a saída para diminuir ou acabar com a corrupção não passa pelo sistema penal, mas sim pelo sistema político. Inocentes úteis os que apostam na via penal quando o STF simplesmente não coloca para julgamento o financiamento público de campanha. Da mesma forma, os setores mais reacionários do Congresso tomam a frente no processo de reforma política para não reformar nada.

Enquanto tudo isso acontece diante dos nossos olhos, parte da esquerda aposta na via penal.

Por óbvio, não se trata apenas do PSOL. O PT vai na mesma onda e o governo Dilma também, daí que não se deveria estranhar o que se passa na Operação Lava Jato, na Penitenciária de Pedrinhas no Maranhão, nas favelas do Rio ou no julgamento da ação penal 470.

Esse caminho de redução das liberdades individuais foi construído tijolo a tijolo por projetos de lei como esse que nos apresenta o PSOL.

Ainda sobre a sedução do punitivismo que contamina a esquerda, válido lembrar o discurso do então deputado do PT, Plínio de Arruda Sampaio , quando da votação da Lei dos Crimes Hediondos:

“(…) Por uma questão de consciência, fico um pouco preocupado em dar meu voto a uma legislação que não pude examinar. (…) Tenho todo o interesse em votar a proposição, mas não quero fazê-lo sob a ameaça de, hoje à noite, na TV Globo, ser acusado de estar a favor do sequestro. Isso certamente acontecerá se eu pedir adiamento da votação.” – Deputado Plínio de Arruda Sampaio (PT)”.

O deputado Plínio construiu toda sua trajetória na defesa dos direitos humanos e foi um dos grandes nomes da política nacional, mas nem mesmo ele conseguiu, frente à forte pressão da mídia, ver se livre do senso comum que dita o trato das questões penais.

Essa ampliação contínua do estado policial nos cobra e haverá de nos cobrar um preço ainda maior. Se enraizou a frase de que o juiz deve combater a corrupção, esquecendo de que seu papel institucional seria o de julgar a corrupção.

Ao mandar instaurar inquéritos contra políticos, o ilustre Procurador-Geral da República saiu do seu gabinete e posou para fotos com um cartaz escrito: “Janot, vc é a esperança do Brasil”.

A cena é tão patética quanto a do juiz que saiu pelas ruas do Rio com o carro de um cidadão que iria julgar.

Bem disse Lula em seu discurso no sindicato dos petroleiros ao lembrar que a operação mãos limpas na Itália, da qual se jactam muitos juízes, resultou em vários suicídios dos acusados e, politicamente, em Berlusconi. Raciocínio correto, porém, talvez tenha chegado meio tarde.

Parte da esquerda partidária lutou contra a ditadura, passou pelo cárcere e foi torturada, mas não foi capaz de entender que ampliar o estado policial, ainda que na inocência de “pegar” os mais ricos é um terrível caminho sem passagem de volta. Basta a tanto perceber que a Lei das chamadas “organizações criminosas”, aplaudida pelo governo e por todos os partidos, terminou por encarcerar muitos manifestantes de junho e ainda colocará muitos outros militantes de esquerda na cadeia por exercerem a cidadania.

Voltando aos Távoras, o assombro que causou a injusta execução do processo contra eles instaurado contribuiu para que Portugal, décadas depois e, já no reinado de D. Luís I, fosse um dos primeiros países a acabar com a pena de morte, reformulando sua legislação sob inspiração de Beccaria, ademais de ter possibilitado as reformas pombalinas.

Entre nós, com raras exceções, as prisões preventivas para extrair delações premiadas não andam a nos causar tanto assombro, assim como expulsar advogado da sala de julgamento, posar com cartazes ao pedir abertura de inquéritos ou dizer que o juiz deve combater o crime.

É justamente essa assimilação acrítica e apática desses sinais simbólicos e concretos da ampliação do estado policial e o louvor ao punitivismo que nos preocupa. Quando um parlamentar como Jean Wyllys ou Ivan Valente se aproxima ideologicamente de Jair Bolsonaro é sinal de que “alguma coisa está fora da ordem”.

Patrick Mariano é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP, do coletivo Diálogos Lyrianos da UnB e autor do livro 11 Retratos por 20 Contos

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Comentários

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Mark Twain

Este foi um cidadão português nos explicando que um julgamento nem sempre necessariamente termina em condenação.

Oóóó!

Se a explanação pareceu longa, confusa, truncada, burocrática e ainda assim profundamente familiar, não é mera coincidência.
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A certeza da punição do corrupto se constrói a partir da transparência das instituições. Ou seja o cidadão deve ter por exemplo, o direito de consultar documentos públicos e definir prioridades orçamentárias.

Viram?
Não era preciso citar o reacionarismo de certo político (Mais uma vez!), ou mesmo sistemas de governo ultrapassados.

marcelo

Em relação a criminalizar a conduta de ter patrimônio incompatível com a renda, mesmo sendo uma perigosa inversão do ônus da prova, apesar de leigo neste assunto quero fazer uma observação. Nos Estados Unidos mostrou-se que para processar alguns chefões da máfia, o exemplo clássico é o Al Capone, o sistema judicial tradicional é falho e aberto a várias brechas que os advogados exploram muito bem. Foi na análise da renda, bens e declaração de impostos que os promotores conseguiram encurralar alguns dos chefões do chamado crime organizado.

Leo V

Fundamental leitura num tempo de uma sociedade e de uma esquerda cada vez mais punitivas.

Há um artigo quase já clássico de Maria Lucia Karam chamado “A esquerda punitiva” sobre o mesmo tema: http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/

E ainda essa reflexão sobre a lei do feminicídio recentemente aprovada que vai na mesam linha: http://mairakubik.cartacapital.com.br/2015/03/04/deveriam-as-feministas-apoiar-a-criminalizacao-do-feminicidio/

renato

Este cara não é fraco..

valdir freire

Nestes tempos bicudos em que tentam fazer de todo mal feito um “crime hediondo” e de tanta busca pela VINGANÇA em vez de JUSTIÇA, ainda quando assistimos a todo tipo de LINCHAMENTO, ver os senhores Jean e Ivan apoiando estas teses é desanimador!
Parabéns Sr. Patrick Mariano.

Carlos de Sá

Muito claro o texto!!
Leitura obrigatória para militantes dos movimentos sociais e populares!!

O Mar da Silva

Momentos como esse que vivemos exige, além de coragem, uma firme posição em conformidade com princípios norteadores de nossa formação. O que esse momento de curvamento de parte da esquerda às proposições de um enfraquecimento do estado de direito é a falta de convicção aos valores supremos da democracia, da liberdade e justiça.

Edgar Rocha

Bravo! Princípios, princípios! Onde estão? Um político não pode ter espasmos, não pode deixar-se levar pela corrente, somente por ser mais conveniente. Também não pode ser aconselhado pelo fígado. Que seja pelo coração ou pela razão, mas nunca pelo fígado! O PSOL, por ser dissidência do PT, deveria ter a obrigação moral de avaliar certos erros históricos da esquerda. Ao contrário, muitas vezes, comprovam a tese de que saíram para que o PT amadurecesse.

    Lucas

    como é isso, amigo? o PSOL é que repete erros históricos da esquerda abandonando princípios e o PT é que amadureceu?
    você deve morar no Congo, ou talvez na Ásia.

    marcelo

    O PT amadureceu???
    Acho que quem amadureceu foi quem saiu do PT… O PT está apodrecendo…

    Edgar Rocha

    Provocações, amigos. Quem nunca? Mas, tem muito de sinceridade no que eu disse. Se o PSOL se deixar levar pela onda, não vai fazer diferença, vai?

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