Nélio Reis e Rogério Souza: Quem quer o negro pobre, morto ou preso são as classes recalcadas

Tempo de leitura: 6 min

Consciência negra e as classes recalcadas

 por Nelio Fernando dos Reis e Rogério Souza Silva, especial para o Viomundo

Dia Nacional da Consciência Negra, instituído pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Ocasião que se dedica à reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira.

“Acolhidos” pela escravidão, instituição que assolou milhões de famílias, os negros sofrem ainda hoje com situações e práticas comuns nos distantes períodos colonial e imperial, continuidade perfeita de uma economia escravagista.

Depois que você ler esse texto e tomar um cappuccino, uma jovem vida humana (negra) terá sido interrompida no Brasil via homicídio. Um verdadeiro genocídio da população negra é a expressão que melhor se enquadra à realidade atual do Brasil.

Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala enfatiza a formação da sociedade brasileira no contexto de miscigenação entre brancos, indígenas e negros de várias nações africanas.

Apesar da obra destacar a contribuição do negro na constituição da nossa sociedade, transmite a ideia de uma democracia racial, isto é, que o racismo aqui foi ameno.

Considerado um dos principais intérpretes da identidade nacional, as teses de Freyre são difundidas nas escolas e livros didáticos do Brasil afora, “fazendo” a cabeça de muitos indivíduos.

Já na obra de Martiniano Silva, Racismo à Brasileira: raízes históricas, ressalta-se que a maioria dos “senhores” de escravos tinha à sua disposição o corpo das escravas que eram consideradas “coisas”, obrigadas a aceitar o furor sexual dos proprietários e seus descendentes. Crianças eram concebidas legalmente sem pai. Monoparental.

Já Claudete Alves em seu livro Negros: o Brasil nos deve milhões, diz que pessoas negras eram vendidas e negociadas como mercadorias descartáveis, espancadas, marcadas a ferro em brasa, assassinadas, vítimas de açoite e escravizadas. Cruel e aberrante.

É necessário frisar que a maioria dos donos de escravos estava longe de fazer parte somente de uma aristocracia senhorial, segundo afirma o pesquisador americano B.J. Barickman, um dos principais brasilianistas da atualidade, em sua obra lançada originalmente nos EUA – O Contraponto Baiano.

“A maioria deles era de classe média, que não conseguia comprar muitos cativos e tinha que trabalhar lado a lado com seus escravos para conseguir manter seu lucro”, reforça Barickman.

Ainda vai mais longe ao afirmar que: “nem na roça, onde empunha uma enxada, nem à mesa de jantar, onde come com as mãos e depois lambe os dedos, poderia se fazer passar por um grande e altivo senhor do tipo descrito por Gilberto Freyre”. Igual a muitos, hoje em dia. Só embuste.

A escravidão é caracterizada como prática social em que uma pessoa assume direitos de propriedade sobre outra, por meio da força.

Em 1872, como parte das políticas inovadoras de D. Pedro II, foi feito um Censo no Brasil.

O registro aponta para 10 milhões de habitantes, no qual 1,5 milhão eram escravos e 382.132 eram estrangeiros. Destes, 125.876 portugueses, 40.456 alemães e 8.222 italianos, entre outras nacionalidades.

Segundo, José Luis Petrucceli, pesquisador do IBGE, “entre 1870 e 1930 vieram morar aqui praticamente 4 milhões de imigrantes europeus. População negra era tida como um problema”.

Influenciados pelas teorias racistas que assolavam a Europa, parte da população brasileira associava os negros à indolência e à preguiça. “Escravo e produtivo? Valha-me Deus!”

Por isso, a elite do atraso atraía trabalhadores europeus para substituir os escravos. Dessa forma, após o Golpe da Maioridade e o início do Segundo Reinado, a imigração passou a fazer parte da política Imperial, pois o Sul do Brasil era pouco povoado e alvo da cobiça de países vizinhos.

O governo incentivou a implantação de núcleo de colonos estrangeiros. Esparramaram-se pelo país e receberam financiamentos para fundar centenas de cidades, cujas ruas, praças e monumentos recebem seus nomes, formas de reconhecimento social e cultural.

Recebiam cotas de terras, cerca de 27 hectares, onde podiam se dedicar à agricultura, possibilitando a ascensão de pessoas que hoje fazem parte da classe média.

Portanto, o imigrante e sua família recebiam o salário misto, entre dinheiro e um bom pedaço de terra para plantar. Hoje esta terra é a herança que constitui a riqueza de muitos da classe média.

Segundo Ângelo Trento em seu livro Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, as jornadas de trabalho extenuantes e o sentimento de exploração por parte dos fazendeiros forçaram os imigrantes a deixarem as áreas rurais e seguirem para as cidades, onde se tornaram empreendedores no comércio e na indústria.

Nesse contexto, a elite do atraso infere: “imigrantes eram preguiçosos? Não, características seletivas apenas da escória”.

Atualmente vemos que em nossa matriz econômica a continuidade desse cenário salta aos olhos.

“Pancadão de novos escravos”, explorados pela elite e classe média “ampliada” (agora com os descendentes dos imigrantes).

Segundo o “presidente” brasileiro, Michel Temer, as micros e pequenas empresas representam mais de 98% das organizações brasileiras, 27% do PIB e são responsáveis por quase 60% do emprego.

“São pessoas que não saem na TV, não dão entrevistas, mas trabalham, cada um, 24 horas por dia por uma vida melhor. E coletivamente por um Brasil melhor. Vamos comemorar o que todo brasileiro quer e merece: o Brasil, definitivamente, voltou a empregar”, disse.

Contudo, cerca de 46 milhões de pessoas que trabalham especialmente nessas micro e pequenas empresas, chefiadas por membros da classe média, ganham menos que um salário mínimo. Exploração evidente, condenando os estratos mais baixos à reprodução de sua miséria.

Os descendentes de escravos são hoje na sua grande maioria pobres. Atualmente, o país possui 22 milhões de pessoas pobres. É uma população de pretos e pardos que tem mais dificuldade de conseguir emprego e, quando consegue, seus salários são menores do que a de brancos, segundo os dados da pesquisa nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A renda média recebida pelas pessoas ocupadas no país foi estimada em R$ 2.043,00, em 2016. A renda dos que se declaram brancos foi calculada em R$ 2.660,00 (acima da média nacional), enquanto a dos que se afirmam pardos ficou em apenas R$ 1.480,00 e a dos trabalhadores que se declaram pretos esteve em R$ 1.461,00.

Sem falar no preconceito. O presidente da multinacional Bayer no Brasil, Theo Van der Loo, relatou recentemente o seguinte: “um conhecido meu, afrodescendente, com uma excelente formação e currículo, foi fazer uma entrevista. Quando o entrevistador viu sua origem étnica, disse à pessoa de RH que ele não sabia deste detalhe e que não entrevistava negros!”. Realidade inaceitável e amplamente revoltante.

A pobreza e o desemprego não são as únicas heranças da escravidão. O Brasil possui cerca de 33 milhões de pessoas sem moradia, segundo o relatório lançado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos.

Desse número, cerca de 24 milhões não possuem habitação adequada ou não têm onde morar, vivem nos grandes centros urbanos. A população favelada no Brasil alcança quase 11 milhões de pessoas, segundo análise do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE).

Onde estão as terras para construção de casas? Atlas da Violência 2017 divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país.

Em 2016 foram mais de 59.000 homicídios. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. A cada 12 minutos um negro é morto. Genocídio. Mães choram. Ninguém protesta.

Para esse importante grupo social, que representa mais de 50% da população brasileira (IBGE), não se incentivou a ocupação de regiões não povoadas e/ou doou-se terras. Ao contrário, alguns membros da elite apontaram o negro como a principal causa das mazelas da nação. Defenderam, inclusive, a extinção do negro brasileiro através da teoria do embranquecimento.

A classe média, agora formada por descendentes de colonos luso-brasileiros e imigrantes da passagem do século XX, vítima de um sistema excludente, transformou-se, ao longo do tempo, em camada que amortece as críticas que podem abalar a estrutura de desigualdade da sociedade brasileira. Infelizmente tornou-se algoz.

Enfim, a escravidão forçou a miscigenação que resultou em uma hibridização racial e cultural, mas de forma brutal contra a dignidade da mulher.

Foram cometidos crimes contra a humanidade. A substituição da mão-de-obra escrava pela imigrante, através de políticas de incentivos fundiários, resulta hoje numa monumental desigualdade social.

A herança da maioria da elite e classe média, terras doadas pelo governo, hoje é sinônimo de concentração de riqueza.

Ampla gama das camadas aquinhoadas gostou de usar o Estado para seus fins, continua usando, mas bate panela contra políticas públicas de inclusão e igualdade social. Muitos não querem ver a população negra em postos de liderança, tais como presidente, ministro, almirante, governador, prefeito, juiz, executivo de empresa, etc. Os dados disponíveis mostram isso.

Muitos não querem que o filho do pobre tenha condições de se formar médico ou outra profissão bem remunerada como o seu, que o funcionário pobre da sua “firma” tenha um imóvel ou carro próximo ao seu, que o filho do pobre estude no exterior e domine línguas estrangeiras como o seu, que o pobre frequente restaurantes, hotéis, shows, cinema, teatro requintados, pois geram fila e consomem seu tempo.

Muitos querem ver o pobre, morto ou preso.

Sob a égide do “pago muito imposto” continuam a explorar o trabalho escravo, quer seja:

*não registrando sua carteira de trabalho;

*pagando um salário fixo e outro “por fora”;

*não depositando FGTS; não pagando a previdência;

*não permitindo que o pobre se aposente;

*evitando que o pobre tenha direitos trabalhistas;

*usando financiamentos públicos através do BNDES (fundo de amparo ao trabalhador) e dando calotes através do REFIS (perdão da dívida por parte do governo);

* não ofertando higiene e segurança do trabalho (700 mil acidentes de trabalho por ano, com 13 mil mortes entre 2012 e 2016).

Destroem sonhos. Reprimem desejos e felicidade alheia. Pertencem a uma classe “recalcada”.

Nelio Fernando dos Reis, doutor em engenharia de produção, e Rogério Souza Silva. doutor em  Sociologia

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Comentários

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Raul Capablanca

me veio a iluminação do que está ocorrendo:
a direita quer reduzir o numero de pobres, pretos etc.
é que o quinhão total vai ser dividido por menos habitantes.
para reduzir os tais p… a direita vai matando-nos aos poucos
com as reformas e leis restritivas etc.

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