Mirmila Muse: Os 13 Porquês, clichê do suicídio de adolescentes

Tempo de leitura: 4 min

Os 13 Porquês: O clichê do suicídio adolescente

por Mirmila Musse, especial para o Viomundo

A série do Netflix, Os 13 Porquês, poderia ser mais uma narrativa despretensiosa e tola, que trata de temas complexos da adolescência, se não fosse apelativa.

Numa narração que romantiza o sofrimento experimentado no corpo pela imposição biológica e cultural de se tornar adulta, uma menina explica os treze motivos que a levaram ao suicídio.

O enredo da série lembra alguns aspectos de outras que tratam dessa mesma fase da vida, como Gossip Girl e Pretty Little Liars: a técnica do suspense, o tipo de narrador, predominantemente em primeira pessoa, a morte que ronda e assombra o fantasma de cada integrante do grupo, a vingança e a disputa por reconhecimento, a dificuldade dos pais em acessar o mundo adolescente, problemas com drogas, a descoberta da sexualidade etc.

Mas, em cada um dos treze episódios de Os 13 Porquês, forjam-se um sentimento de culpa e um julgamento moral de e por cada um dos personagens a respeito de seus atos que, assim, são cruelmente rotulados: a amiga que transa com mais de um colega torna-se puta; o amigo tímido é tachado de omisso; o psicopedagogo da escola é profissionalmente desqualificado, condenado por não saber ouvir; a família é culpada por não estar atenta ao sofrimento da filha.

Não há diálogo possível para tratar da angústia dos personagens.

A série não deixa escolha. Visto como último recurso da existência, o suicídio implica uma questão ética e moral. Suicidar-se é uma escolha daquele que não vê escolha.

Os 13 Porquês arma o conflito de tal modo a não deixar opção nem para a personagem, nem para o jovem telespectador. Este, se vivenciar questões como as tratadas na série, pode não perceber saída alguma para elas.

Em uma escola secundária dos Estados Unidos, aumentaram em 445% pedidos de socorro ao CVV (Centro de Valorização da Vida), feito por jovens que assistiram à série. Para alguém que se encontra em situação de sofrimento, o estímulo pode vir da cena em que, não por acaso, se ouve a mesma música citada na carta suicida de Kurt Cobain. Ou quando, contra a recomendação da Organização Mundial da Saúde, encena-se explicitamente o suicídio.

Werther foi publicado em 1744 e causou uma onda de comoção por toda a Europa e o aumento da taxa de suicídio entre os jovens.

Em 1995, o filme Kids polemizou questões existenciais da adolescência.

As duas obras tratam de valores, sentimentos e conflitos próprios da condição existencial dessa fase da idade e de seu tempo histórico.

Hoje é preciso reinventar um discurso para dialogar com essa geração, levando em conta o mal-estar contemporâneo.

Mas é necessário que a indústria cultural e a mídia parem de naturalizar e banalizar temas complexos ao desafio nada fácil, rejeitado por alguns, de ingresso na vida adulta.

Há uma tendência para que se aceitem, sem mais, episódios absurdos da contemporaneidade adolescente, tal como faz Os 13 Porquês que, assim, valida situações extremas.

As difíceis questões da adolescência contemporânea não são mero objeto de pedagogia de reforço negativo ou positivo. É estranho que se viralize, pelas redes sociais, uma criança de 4, 5 ou 6 anos de idade afirmando sua convicção sexual, antes que se pergunte se há ou não a possibilidade de escolha de gênero nessa fase da vida.

É preciso questionar a normatização das diversas tensões sociais entre os adolescentes, muitas vezes cruéis, na etiqueta bullyng. Não são românticas as mutilações corporais dos jovens, nem simples resultado de quem quer chamar a atenção.

A medicina deve ser responsabilizada pelo estrago que banalizou e generalizou a medicamentalização de crianças e adolescentes, em geral de natureza agitada, inquietude muitas vezes diagnosticada como doença. Não é invasão de privacidade entrar no quarto de um filho que passa o dia trancado. É inaceitável que o Estado queira julgar um adolescente de 16 anos como julga um adulto.

Os 13 Porquês reforça positivamente muitos fatores da condição de vida contemporânea e que são fontes dos sintomas da adolescência.

Entre as identificações forjadas pela cultura globalizada e aquelas oferecidas na infância pelos pais como verdades, há um hiato vivido pelo adolescente e com o qual os adultos precisam aprender a lidar. É clichê dizer que a adolescência é uma fase difícil. Quando não há diálogo, o suicídio pode surgir como alternativa ao sofrimento.

Enquanto a cultura continuar julgando moralmente a difícil experiência da adolescência, fixando culpados e perseguindo assuntos de ordem existencial, ela, continuará endossando os índices que classificam o suicídio como a segunda maior causa de morte entre os jovens. O sofrimento é singular, e a angústia pode ser desesperadora.

Se não há palavra para descrevê-los e, mais grave ainda, se não há a escuta, há o ato que pode ser fatal. A discussão sobre a adolescência não pode ser adolescente, caso se queira construir novas narrativas que ofereçam aos jovens outras estratégias para lidar com seus conflitos.

Mirmila Musse é psicanalista. Foi uma das coordenadoras do programa Braços Abertos, do governo do prefeito Fernando Haddad (PT-SP).

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Comentários

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Edgar Rocha

Estranho um tema como este não receber nenhum comentário até agora. Talvez a pauta política e as demandas de quem a propõe não tenham ligação direta com questões deste tipo (deveriam ter, creio eu).
Uma série de TV que, de forma subliminar, proponha o suicídio como alternativa aos dilemas da juventude, me parece algo bastante sintomático. O vácuo criado pelo desinteresse sobre o assunto por parte dos que se dizem preocupados com o futuro do país, cria uma seara de manipulação amplamente utilizada por um sistema cruel e desumano que pesa estrategicamente na manutenção da vidam humana ou não, e decidem pragmaticamente quem deve viver ou morrer para o bem de seus interesses. Jovens, quando em estado de crise, sempre foram um perigo ao statu quo. A “força da juventude” sempre é aclamada enquanto massa manobrada em rédea curta a serviço deste ou daquele lado. Moleque em crise, pensando, criticando, não interessa aos que conseguiram se alçar à maturidade às custas de sua consciência, de seus valores e ideais. É preciso fazer concessões aos que sabotam as utopias e as empurram para um horizonte inalcançável se quiserem participar da vida em sociedade. Aos que sofrem com as contradições impostas, o suicídio, consciente ou não, é o quinhão que a vida lhes reserva. São fracos, dizem.
O mais incômodo destes tempos, na minha humilde opinião, é o cinismo dos que entregam o jovem à sua própria imaturidade natural, alegando o direito à liberdade de escolha, ao arbítrio de quem está sem rumo porque lhe negam justamente um rumo visível. A auto destruição é um direito e a consequência final é de sua inteira responsabilidade. O mundo adulto se exime da responsabilidade de educar, e da obrigação de oferecer soluções e alternativas, já que a ele pertence os instrumentos para tal, não ao jovem. Conduzem, manipulam, instrumentalizam e, por fim, descartam quando se descobrem logrados e reclamam por coerência. Este é um material que o mundo não está disposto a oferecer. Dizem que não existem mais, que a realidade é assim e que a regra do jogo é a traição e o pragmatismo. Quem reclama é perdedor. E perdedor tem mais é que se ferrar. “Pede pra sair! Se mata, nóia, traste, inútil, folgado, safado, vagabundo. OTÁRIO!” O esquema é este. Quem não entra nele é carta fora do baralho.
Aproveita a vida, meu filho! Viva a vida loka. Tu vai morrer um dia, mesmo. A única dignidade que lhe resta é cair atirando. Taí o resultado: Columbine, Realengo e tantos, tantos casos similares ocorridos sob a mesma sombra do descaso.
E assim, pulveriza-se a violência, isolam-se os fatos e ninguém precisa analisar conjunturalmente. Ninguém precisa se preocupar com o micro. O macro é o que faz sair às ruas. O grito de justiça já virou jargão de pobre na enchente. Ninguém mais repara no que compõe a paisagem. A não ser os que se interessam em canalizar esta força pra algo mais espetaculoso. Assim nascem homens-bom, blackblocs, juventudes hitleristas, bolsonaristas, meninos do PCC, etc.

Viviane

Talvez os próprios adolescentes percebam o exagero da série, ao apontarem a culpabilização maniqueísta (até para eles) de todos os personagens fora a protagonista. Mais uma produção “que discute adolescência sendo mais ‘adolescente’ que os próprios”, para usar as palavras da autora.

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