Marcelo Semer lança 34 crônicas sobre o cotidiano das audiências de um juiz criminal; leia uma delas aqui

Tempo de leitura: 4 min

 Da Redação

Marcelo Semer lança nesta quarta-feira (22/11), a partir das 18h30, no Ateliê do Bexiga, em São Paulo, o livro Entre Salas e Celas (Dor e esperança nas crônicas de um juiz criminal).

Semer é juiz de Direito e Entre Salas e Celas, sob a forma de crônicas, um retrato do cotidiano de audiências criminais sob a sua visão.

“São 34 crônicas, a maioria delas inéditas”, conta-nos Semer.

O livro apresenta uma coletânea de personagens que a própria ficção não seria capaz de reunir.

Por exemplo, o bilheteiro fanho do cine pornô que é testemunha chave de um crime, a vítima que sobrevive com uma faca cravada na garganta, o bom ladrão que alerta a polícia sobre a fuga do preso que assiste do banco dos réus. Mulheres estraçalhadas pelas violências da vida e da lei.

O prefácio é de Roger Franchini:

“Impossível o retrato fidedigno, exato e transparente de um acontecimento, uma vez que a acusação e a defesa são incapazes de recontar uma história exatamente como ela aconteceu, sem deixar de influenciar a narrativa com suas vontades de induzir o juiz a atendê-los.

O anseio por uma experiência perfeita do passado não é muito diferente do ideal platônico. Resta, ao juiz, a frustração de nunca atingi-lo, mesmo após caminhar pelo diáfano espectro lançado entre os árticos contraditórios de verdades que lhe foram apresentadas durante a instrução para, ao final, reconstruir o que aconteceu e definir o destino dos atores envolvidos no litígio.

Mas não é o caso de Marcelo Semer. A simbologia presente no título deste livro não é apenas uma conveniente aliteração, mas a melhor tradução da naturalidade com que o autor passeia pelas salas do mundo civilizado e celas da barbárie carcerária.

O Ateliê do Bexiga  fica na Rua Conselheiro Ramalho, 945, São Paulo.

O livro já está à venda no site da Editora (http://autonomialiteraria.com.br/loja/cronicas/entre-salas-e-celas-dor-e-esperanca/ ).

A pedido do Viomundo, Marcelo Semer selecionou a  crônica Atitude Suspeita, para publicarmos aqui. Postada originalmente no Blog Sem Juízo, em junho de 2011, ela é bem atual. Vale a pena lê-la.

“Atitude Suspeita”

Uma coisa que eu sempre tive curiosidade de entender é a “atitude suspeita”, o que leva policiais em patrulhamento a abordar certas pessoas, e não outras.

Quando ouvimos os relatos no Fórum, temos a nítida impressão de que eles sempre acertam –afinal, se virou um processo, a atitude era mesmo suspeita.

Não levamos em conta, lógico, todo aquele contingente de pessoas vigiadas, abordadas, revistadas que não resulta em prisão nem em processo.

Muitas vezes eu pergunto aos policiais: mas qual era a atitude suspeita?

As respostas são as mais diversas e até contraditórias.

O sujeito estava andando em uma direção e passou a andar em outra. Ele estava parado e, então, começou a andar, ao vir a viatura. Quando nós passamos, ficou completamente parado e não saiu do lugar.

A reação facial também é determinante da suspeita: seus olhos mostravam nervosismo, quando nos viu.

Ele abaixou a cabeça quando olhamos para ele. Fingiu que não era com ele e continuou olhando para outro lado. O rapaz me encarou de frente, doutor, quando o encarei. E por aí vai.

O medo parece ser o principal combustível da suspeita, segundo o tão comentado “tirocínio policial”. Mas será que em certas situações, o medo não é provocado pelo próprio tirocínio?

Marcos Roberto não foi abordado por um policial. Mas por um agente de segurança ferroviário. Algo como um ‘policial’ da companhia de trens. Talvez sem o mesmo tirocínio. Talvez exatamente com ele.

Foi no mesmo contexto em que Suzana, uma mulher de trinta, se tanto, foi encontrada com uma porção de cocaína do tamanho de uma bola de tênis dentro de sua bolsa.

Eu não consegui saber se Suzana e Marcos se conheciam. Os agentes ferroviários também não.

Suzana entrou em um vagão de trem. Os agentes entraram atrás. Antes que o trem desembarcasse, ela mudou de vagão, despertando a suspeita dos seguranças e disparando o alarme do tirocínio.

Na estação seguinte, os agentes mudam de vagão e encontram Suzana sentada. Encaram-na e recebem como resposta um abaixar de olhos. O comportamento estranho de trocar de vagão, o medo no olhar e pronto, a decisão de abordá-la estava tomada. Na revista da bolsa, bingo, a droga, que ela afirmava portar para uso pessoal.

Mas o leitor pode estar se perguntando a essa altura: e Marcos Roberto, o que tem a ver com isso?

Foi exatamente o que eu perguntei.

Marcos não estava conversando com Suzana.

Não estavam sentados juntos.

Não estavam se olhando, enquanto o trem andava.

Abordado com os olhos, Marcos Roberto não abaixou a cabeça. Encarou os agentes, assim, como quem não tem medo nem nada a dever.

Por que, então, a atenção dos seguranças?

-Bom, doutor, começou um dos agentes, ele era negro, né, ..?

Diante do olhar estupefato de todos nós e depois de um constrangedor minuto de silêncio, o segurança emendou com explicações desencontradas:

-Estava no vagão, estava meio próximo dela assim, o senhor sabe como é, pareceu intranquilo, olha, doutor, mesmo se fosse branco…

O outro agente, mais discreto ou mais precavido talvez, disse que o que chamou mesmo a atenção da segurança foi o fato dele estar … suando.

Marcos Roberto foi abordado, revistado e, depois de descoberto que já tinha passagens pela polícia, encaminhado à delegacia, de onde foi finalmente liberado.

Até uma próxima abordagem, onde continue despertando “suspeitas”…

Gostou? Pois Atitude suspeita é apenas um aperitivo do que vai ler Entre Salas e Celas.

Parece, mas não é ficção, não. É a nossa trágica realidade.


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