Fátima Oliveira: Bastidores de uma pesquisa antiética

Tempo de leitura: 3 min

cobaia humana

Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas

Fátima Oliveira, em OTEMPO

[email protected] @oliveirafatima_

Em “Tributo ao dr. Adib Jatene, um humanista de muitos dons” declarei: “Se não fosse o dr. Jatene, até hoje a pesquisa em seres humanos no Brasil seria ‘terra de ninguém’!” (O TEMPO, 18.11.2014). Abaixo, tópicos dos bastidores da Resolução 196/1996: “Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos”, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e porque o ministro Jatene foi corajoso ao bancá-la.

Grandes universidades declinaram integrar o Grupo de Experimentação em Seres Humanos (GET), alegando falta de clima consensual sobre o tema. A UFMG e a UFRJ sediaram seminários de suporte à revisão da Resolução 01/1988, primeira diretriz brasileira sobre pesquisas em seres humanos, pouco cumprida!

Houve muito trabalho de sapa contra a 196/1996. Após aprovação no CNS (10.10.1996) e a saída do ministro Jatene (6.11.1996), medalhões da medicina, em audiência com o novo ministro, Carlos Albuquerque, pediram a sua revogação, acusando-a de stalinista: contra a liberdade da ciência! O ministro não caiu na lorota.

O GET foi instituído pela Resolução CNS 170/1995 e eu o integrei. Após aprovada a 196/1996, o GET assumiu, por 180 dias, atribuições da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e acolheu a denúncia sobre um estudo do laboratório Merck, Sharp & Dohme (MSD), em curso em São Paulo (Hospital Emílio Ribas, HC-USP, EPM, Unicamp e CRT-Aids), desde abril de 1995, com 900 participantes, em três grupos de 300: o que só tomava AZT; o que tomava AZT + indinavir; e o que tomava só o indinavir (a droga em ensaio), monitorados pelo Data Safety Committee Board  (DSCB) – comitê de especialistas contratados pelo MSD para revisão de condutas médicas e aspectos éticos.

Em março de 1996, a monoterapia com AZT foi abolida da rede pública, mas a pesquisa insistia nela! Só em agosto de 1996, acrescentou a droga 3TC (epivir) aos dois primeiros grupos e manteve a monoterapia com o indinavir! Fui designada, pela Conep, para elaborar um parecer no prazo de até um mês.

Coisas estranhas aconteceram. Sofri perseguição sem paralelo em minha vida laboral. Telefonemas durante a madrugada que atendia e só ouvia risadas. Passaram a telefonar a qualquer hora: “Não tem medo de amanhecer com a boca cheia de formiga? Seu prédio é inseguro! Não teme sofrer um acidente?”. A “voz” dizia saber onde meus filhos estudavam. E a última cartada foi direta: qual o meu preço para não “prejudicar” a pesquisa. Havia milhões e milhões de dólares em jogo. A “voz” sabia que eu não aliviaria nas conclusões. Bati o telefone. Até hoje não sei quem tocava o terror!

Em 7.12.1996, apresentei o parecer na Conep, com a recomendação de fechar/interromper a pesquisa por ser antiética, aprovada por unanimidade. Deixei uma cópia impressa na Conep. Havia um disquete que, por precaução, não entreguei!

Duas semanas depois, eu estava deitada, lendo, quando alguém, em nome do DSCB, comunicou na TV a “descontinuidade” da pesquisa! Os argumentos/justificativas eram os que embasavam o meu parecer, na ordem em que os escrevi! Nem sequer se deu ao trabalho de mudar a ordem e/ou as palavras! Sem chão, telefonei para Sérgio Ibiapina, representante do CFM na Conep, que bradou possesso: “Vazou, Fátima! Que nojo! Deram o parecer e ‘eles’ fecharam a pesquisa antes da Conep”. E nos perguntávamos: Quem? Mistério, até hoje!

“Eles” agiram antes para blindar as ações do laboratório na Bolsa! Uma coisa é um laboratório alegar questões éticas para “descontinuar” uma pesquisa, outra é um país fechá-la!

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Comentários

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Alberto

Conceição, há como descobrir quem eram o integrantes do Data Safety Committee Board do Laboratório Merck, Sharp & Dohme em 1995, exatamente na pesquisa citada?
Não há vestígios na internet. Fucei no google mais de duas horas e não encontrei nada.
Será que o pessoal ativista da luta contra a aids não sabe? Sem nenhuma sombra de dúvida deveriam ser figurões da medicina paulista em sua maioria.
Quem vazou o parecer da Conep, o fez para proteger colegas médicos figurões da medicina. Médicos de renome ganharam rios de dinheiro nas pesquisas iniciais da epidemia. Quem vazou o parecer ficou milionário. Lógico que recebeu o dinheiro que a Dra. Fátima Oliveira recusou.

    Aracy

    Isso mesmo. Tem corrupto na penumbra do CONEP daquela ocasião. Será que já saiu de lá?

Carla

Se havia uma única cópia do documento na CONEP, a responsabilidade pelo vazamento é da presidência, o que não significa que foi a presidência quem vazou. Mas a responsabilidade é dela!

AlvaroTadeu

Como dizia aquela propaganda: “você pode até brincar de médico, mas Saúde é coisa séria!”. O comunicado/artigo da Dra. Fátima Oliveira é chocante, para dizer o mínimo. Mas isso explica a postura antiética dos médicos-coxinhas”, aqueles que se reuniram no aeroporto de Fortaleza para vaiar médicos cubanos, provavelmente muitos deles estavam em plena hora do expediente. E os demais, que se juntaram no CFM, como se fossem da Máfia, para tentar impedir o “Mais Médicos”. Médicos-criminosos continuam clinicando pelo interior do Brasil, talvez até em grandes cidades. A última que ouvi: uma senhora de 70 anos estava com dor nos dedos do pé. Uma vizinha aconselhou-a a botar os pés no azeite de dendê bem quente. Resultado: quase cozinharam os pés da senhora. Levada ao hospital de sua pequena cidade, teve os pés amputados. Esse é o nível da medicina praticada no Brasil no Século XXI.

O Mar da Silva

Quem vazou? Ué, quantas pessoas tiveram acesso ao relatório entregue pela sra. Fátima?

Não havia controle para evitar esse tipo de acontecimento?

    Carla

    Fui pesquisar quem fazia parte do GET, que assumiu as funções da CONEP por 180 dias:
    Composição do GET/Experimentações em Seres Humanos:
    Consta na Portaria que criou o GET:
    1. William Saad Hossne (coordenador) – (SP) – médico (presidente da Sociedade Brasileira de Bioética – SBB);
    2. Corina Duca de Freitas (Secretária Executiva) – DF – médica;
    3. Arthur Custódio Moreira de Souza (RJ) – representante de usuário no CNS;
    4. Fátima Oliveira (MG) – médica (Comissão de Cidadania e Reprodução e Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos );
    5. Jorge Bermudez (RJ) – médico (Fiocruz);
    6. Léo Pessini (SP) – padre (Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde da CNBB);
    7. Márcio Fabri (SP) – padre (teólogo);
    8. Roque Monteleone (SP) – médico (CRM/SP); 9. Sérgio Ibiapina Ferreira Costa (PI) – médico (CFM);
    04 membros da Comissão Intersetorial de Ciência e Tecnologia (CICT) do CNS;
    01 famacólogo clínico (designado pelo CNS, indicado por entidades representativas do setor;
    01 empresário designado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

    Assinam a Resolução 196/96 como elaboradores (poque eram do GET):
    Eis a sua composição: Albanita V. de Oliveira, Álvaro Antônio S. Ferreira, Antonio F. Infantosi, Artur Custódio M. de Souza, Corina Bontempo D. de Freitas, Elisaldo Carlini, Fátima Oliveira, Jorge Bermudez, Leocir Pessini, Márcio Fabri dos Anjos, Marília B. Marques, Omilton Visconde, Roque Monteleone, Sérgio Ibiapina F. Costa, Simone Nogueira e William Saad Hossne, que o presidiu.

    196/96, de 10 de outubro de 1996,
    http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/normas_pesquisa_sereshumanos.pdf

marcelo

Nossa, impressionante essa história! Achei tão cuiriosa que pensei que daria um bm roteiro de filme “pesquisa humana”…rs

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